Qual é a herança da Revolução Russa ?

1923: o ano decisivo

Mais radical de todas, porém, foi a mudança ocorrida na posição de Trotsky. Todos os historiadores registram um ponto de rompimento, uma “cesura” na sua atuação na fase pós-revolucionária. Há ligeiras divergências quanto ao momento. E. H. Carr, na sua “História da União Soviética” (O Interregno), registrando o caminho de Trotsky para a Oposição, está inclinado a localizar o ponto de rompimento em 1923. Isaac Deutscher, no seu “O Profeta Desarmado”, o coloca no decorrer do ano de 1922:

Ao acompanharmos as dissensões no Politiburo e examinarmos a participação que nelas teve Trotsky, somos surpreendidos pela modificação que ocorreu no próprio Trotsky, em cerca de um ano. Na primeira metade de 1922 ele falava principalmente como o disciplinário bolchevique; na segunda já estava em conflito com os disciplinários. O contraste se evidencia em muitas de suas atitudes, mas torna-se mais evidente quando lembramos que no início do ano ele acusara, em nome do Politiburo, a Oposição dos Trabalhadores, perante o Partido e a Internacional. Não obstante, já no fim do ano ele parecia adotar opiniões até então defendidas pela Oposição (e pelos decemistas)… Trotsky, a princípio, atacou-os e advertiu-os de que os bolcheviques não deviam, em circunstância alguma, opor-se aos líderes do Partido em termos de ‘nós’ e ‘eles’. Não obstante, no curso de 1922, Trotsky parecia ter adotado a maioria de suas idéias e uma atitude que o levava a argumentar contra a maioria do Politiburo em termos de ‘nós’ e ‘eles’.
(Isaac Deutscher, “O Profeta Desarmado”)

No mesmo ano, em 1922, chocara a liderança bolchevique e o próprio Lênin, recusando ser nomeado Vice-presidente do Conselho de Comissários do Povo, isto é, substituto de Lênin na chefia do governo. Muito se especulou sobre as causas dessarenúncia, mas ela só se tornaria compreensível no quadro da futura passagem de Trotsky para a Oposição.

Que se dera com Trotsky? Que foi que provocou esse ponto de ruptura? Não nos podem satisfazer, certamente, as explicações de Deutscher, no sentido de que Trotsky teria vivido um conflito entre “autoridade e liberdade”.

Para nos inteirarmos da situação de Trotsky temos de voltar ao problema fundamental da Revolução Russa – o seu isolamento. A Rússia Soviética tinha de resolver os seus problemas aparentemente insolúveis de força própria, sem o auxílio do proletariado vitorioso de países mais adiantados. O futuro desenvolvimento mostrou que não eram propriamente insolúveis, mas os métodos exigidos nas condições russas para garantir a manutenção do poder e assegurar o salto qualitativo para uma economia em bases coletivistas, assustou a uma geração de líderes comunistas, educados nas tradições do marxismo ocidental. Na medida em que a revolução avançava nesse caminho, surgiram grupos de oposição no seio do Partido, que, ou não se conformavam com o preço e os sacrifícios exigidos por semelhante desenvolvimento, ou que simplesmente não acreditavam mais numa perspectiva socialista sem uma revolução no Ocidente. Trotsky foi um dos primeiros na cúpula do Partido posto diante dessa situação. Não pretendemos explicar a sua atitude pela sua “teoria da revolução permanente”. Ela só é explicável pela realidade russa de então. A teoria da revolução permanente, aliás, não passa de uma tentativa de interpretação do processo revolucionário mundial visto de um ângulo russo. Fato é que há um momento em que Trotsky não queria mais tomar responsabilidades pelo futuro desenvolvimento e destino da revolução. E isso, forçosamente, o levou para o campo da oposição.

Antes de chagar a esse ponto de ruptura definitiva, ocorreu uma evolução no Ocidente que chegou a unir temporariamente as facções hostis do Partido russo. Na segunda metade de 1923, esboçou-se a possibilidade do surgimento de uma situação revolucionária na Alemanha. O futuro desenrolar dos eventos mostrou que essa perspectiva era ilusória, mas por muito tempo a liderança soviética aceitou a ficção do levante dos operários alemães a curto prazo. Quando esse prazo venceu e a realidade não confirmou as expectativas, os comunistas alemães tiveram de bater em retirada, enfrentando uma crise interna. Mas quem mais se apegou à ficção de uma “situação revolucionária” na Alemanha, a ponto de se tornar uma ideia fixa, foi Trotsky. Até hoje, um dos axiomas do trotskismo internacional é constituído pela “situação revolucionária de 1923”, que teria sido jogada fora. Na luta interna no PC soviético, que agora recrudesceu, os acontecimentos alemães tiveram um papel de destaque: “com Lênin, em 1917, a Revolução Russa; com Zinoviev, Kamenev e Stalin, em 1923, o desastre alemão”, este se tornou um dos argumentos favoritos de Trotsky.

Foi justamente o caso alemão que enterrou definitivamente qualquer esperança a médio prazo de poder vencer as dificuldades internas mediante a ajuda do proletariado vitorioso no Ocidente. Se o ponto de ruptura para Trotsky não tinha sido atingido ainda, agora estava.

A primeira Oposição trotskista, que se formara ainda em fins de 1923, em torno da chamada “Plataforma dos 46”, saiu sem a assinatura de Trotsky e sem que interviesse nas discussões. Parecia até que hesitava se valeria a pena levar avante a argumentação na forma como fora formulada no documento. Os líderes mais conhecidos da Oposição, Preobrajenski, Piatakov, Antonov-Ovseenko, defendiam posições originalmente formuladas por Trotsky. Os pontos fundamentais da Plataforma podem ser resumidos no seguinte:

– constata-se a existência de uma crise econômica e financeira, que a maioria do Politiburo não sabe enfrentar, por incapacidade política e econômica;
– constata-se a ausência de uma direção planificada e organizada da indústria;
– constata-se uma crescente burocratização e hierarquização da vida partidária, que paralisa os debates internos. A medida proposta é suprimir novamente a resolução do 10° Congresso do Partido, que diz respeito à proibição de formar facções ou agrupamentos em seu seio.

Pode-se ver que a oposição de 1923 não está disposta a investir contra a burocracia como um todo. Critica a ineficiência burocrática e investe especialmente contra a burocratização da vida partidária. Da mesma maneira, não exige um restabelecimento da democracia operária em geral (como a Oposição Operária), mas exige a abertura de um espaço para si, mediante a revogação das proibições de formar facções, adotadas no 10° Congresso. As críticas são feitas em nome da eficiência do regime (E. H. Carr caracteriza essa oposição como sendo de tecnocratas). É em nome dessa eficiência que se exige planificação e industrialização. Certo ou errado, trata-se ainda da tentativa de elaborar uma alternativa à situação reinante naquele momento.

É o ângulo da crítica – a eficiência – que determina também o caráter social do apoio. A oposição de 1923 tinha as suas bases principalmente entre os quadros intelectuais do Partido, concentrados em Moscou e entre a juventude, principalmente entre estudantes das Escolas Técnicas. No que diz respeito às massas trabalhadoras, a repercussão foi pequena:

“Onde a Oposição teve menos êxito, foi nas fileiras dos operários industriais, pois embora defendesse os interesses da indústria, essa defesa ia mais a favor dos técnicos e dos administradores do que dos proletários da categoria (…) No seu programa político e econômico nem havia o que despertasse o entusiasmo dos operários, nem o que ia ao encontro dos seus interesses imediatos (…).”
(E. H. Carr, “O Interregno”)

A oposição foi derrotada em duas fases. Na ausência de Trotsky, na 13ª Conferência do Partido, em janeiro de 1924, e finalmente com a presença de Trotsky, no 13° Congresso do Partido, em maio de 1924. Mas, com isso, a luta não terminou.

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