Qual é a herança da Revolução Russa ?

A oposição unida

Trotsky não havia sido derrotado há muito tempo, quando surgiu a cisão no seio da “troika”. Zinoviev e Kamenev entraram em oposição a Stalin, que, por sua vez, era apoiado por Bukharin, Rikov e Tomski. Novamente se coloca o problema dos antagonismos pessoais na liderança, mas queremos lembrar que a hostilidade entre Zinoviev e Trotsky, no passado, tinha predominado sobre todas as outras rivalidades no Politiburo. Foram, por exemplo, Zinoviev e Kamenev que tinham exigido a exclusão de Trotsky do Partido, e foi Stalin quem se opôs a essa medida e a impediu. Para compreender a reviravolta de Zinoviev e Kamenev é preciso levar em conta outros fatores. Veremos como Deutscher descreve a situação no 14° Congresso do Partido, na qual a facção dos Lêningradenses (Zinoviev) foi derrotada:

Se Trotsky tivesse mantido abertos os ouvidos para o que os Lêningradenses estavam dizendo, não poderia deixar de perceber imediatamente que estavam defendendo causas que ele próprio defendera e atacando as atitudes que atacara. Como oposicionistas, começavam onde ele parara. Argumentavam a partir de suas premissas, retomavam os seus argumentos para levá-los mais adiante. Ele criticara a falta de iniciativa do Politiburo, sua negligência com a indústria e sua solicitude excessiva para com o setor privado da economia. Os Lêningradenses fizeram o mesmo (…) Trotsky não podia deixar de concordar com os argumentos que apresentavam (…) pois vinham do arsenal do internacionalismo clássico (…) Como ele, falavam da aliança profana entre o homem da NEP, o kulak e o burocrata; e, como ele, faziam um apelo para o renascimento da democracia partidária. Ele advertira o Partido contra a ‘degeneração’ de sua liderança e agora a mesma advertência ressoava de forma ainda mais pungente e alarmante, nos protestos dos Lêningradenses contra o perigo ‘termidoriano’.

Além disso, Trotsky não apoiou a Oposição de Leningrado. As feridas causadas na recente luta de facções ainda eram profundas demais para permitir uma aliança imediata com Zinoviev. Haveria de passar mais de um ano para que se realizasse.

Quando se realizou e se formou finalmente a “Oposição Unida”, a aliança não se limitava às facções de Trotsky e de Zinoviev-Kamenev. Participaram igualmente Shliapnikov, o líder da antiga Oposição Operária, os remanescentes da “Democracia Socialista” e de outras oposições históricas, que continuavam vegetando em situação de semi-clandestinidade.

Qual era o denominador comum desses agrupamentos heterogêneos, que no passado tinham-se combatido mutuamente?

Procurando encontrar uma fórmula sucinta, poderíamos dizer que o denominador comum era o desespero com a realidade da situação pós-revolucionária. Um sintoma disso era o surgimento de uma terminologia de “termidor”, levantada originalmente pela Oposição Operária. O exemplo histórico da Revolução Francesa – a mais radical na história humana até o Outubro Vermelho – sempre estava presente no raciocínio dos bolcheviques. O desenrolar da Revolução Francesa, entretanto, já devido ao caráter de revolução burguesa, tinha de ser diferente da russa. Também na França, uma facção após outra abandonou as fileiras, mas a abandonavam na medida em que a revolução se radicalizava e se aprofundava. Até que o radicalismo chegou aos seus limites possíveis e desembocou no Termidor.

Na União Soviética, o caminho foi diferente. Revolução proletária num país predominantemente camponês, por muito tempo não pôde radicalizar suficientemente para ir ao encontro das aspirações da classe operária. Durante quase uma década, estava empenhada em reconstruir a economia do país, destruída na luta revolucionária, para criar as premissas para um futuro salto qualitativo, que as oposições de esquerda exigiam de imediato. Deutscher assinala na citação acima que Zinoviev, Kamenev, depois de Trotsky, buscavam os seus argumentos no arsenal do “internacionalismo clássico”. Mas esse arsenal estava num nível de abstração que tinha de ser adaptado às condições concretas da realidade soviética.

Está claro, além disso, que parte da Oposição sabia perfeitamente que o caminho da revolução russa não ia conforme os preceitos do “internacionalismo clássico”. O próprio Trotsky, no passado, tinha defendido medidas, como a militarização do trabalho, a estatização dos sindicatos, que teriam horrorizado qualquer “internacionalista clássico” (Stalin, posteriormente, as pôs em prática). Em princípios de 1922, ainda no 12° Congresso, Trotsky dirigia-se da seguinte maneira à classe operária soviética:

Pode haver momentos em que o governo não lhes pagará salários ou em que lhes pagará somente a metade deles, quando os trabalhadores terão de emprestar (a outra metade) ao Estado. (citado por Isaac Deutscher).

Agora, na Plataforma da “Oposição Unida”, o aumento salarial dos operários industriais abria a lista das reivindicações. As concessões mútuas necessárias para encontrar um denominador comum entre os diversos agrupamentos da “Oposição Unida”, por si só, já impediram que essa se apresentasse como alternativa à política da maioria. Para a “Oposição Operária” e grupos similares, a reivindicação salarial era indispensável. Para Zinoviev e Kamenev, era mais expressão de seu imediatismo político. Para Trotsky, deve ter sido indiferente, já que não via mais perspectivas da revolução russa isolada solucionar os seus problemas. Para ele, tratava-se agora de erguer bem alto a bandeira do “internacionalismo clássico”. Anos mais tarde, na sua biografia de Stalin, ele ia admitir que nenhum dirigente trotskista responsável acreditava naquela ocasião ser possível uma vitória da Oposição.

Essa afirmação, aliás, não é de todo correta. Os tecnocratas entre os dirigentes trotskystas, como Preobrajenski e Piatakov, insistiram no seu Programa defendido há muito e algumas reivindicações suas entraram na Plataforma oficial. Assim, por exemplo, exigiam o fechamento de todas as empresas industriais não-rentáveis. Mas qual era a empresa que funcionava rentavelmente sob um ponto de vista econômico? Qualquer operário tinha de sentir seu lugar ameaçado. Tal reivindicação contribuiu para neutralizar os efeitos da campanha salarial e cortou as possibilidades de penetração dos oposicionistas no proletariado.

A luta interna, desta vez, foi caracterizada por uma violência inédita. A Oposição rompeu as regras do jogo, procurando mobilizar o descontentamento latente das massas fora do Partido. O que mais irritou os velhos bolcheviques foram os slogans oposicionistas que falavam de uma “aliança dos burocratas, homens da NEP e kulak” para restabelecer o capitalismo na União Soviética. Os velhos revolucionários (que estavam incluídos entre os “burocratas”), que haviam lutado pela Revolução, que toleravam a NEP por motivos de força maior, mas que estavam procurando um caminho para superá-la, não perdoavam a Trotsky esses métodos de luta interna, e davam carta branca a Stalin para que aplicasse, por sua vez, medidas até então só utilizadas contra os inimigos de classe. Seria todavia totalmente irrealista querer explicar a derrota da Oposição Unida pelos métodos duvidosos do Secretário-Geral. Este teve atrás de si a maioria do Partido e era justamente por este fato que podia usar métodos abertamente discriminatórios e repressivos contra a Oposição. E ele teve cuidado de lançar mão desses métodos só depois de a Oposição ter ficado desmoralizada e isolada no seio do Partido.

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