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Entrevista com a operária, poeta e militante Golondrina Ferreira

do blog Cem Flores – 06.01.2023

 

A poesia é uma forma de resistência contra a tirania. Para o poeta, o povo deve “defender, mais que a vida, / a canção dentro da vida”. Essa canção, na ditadura militar que Thiago de Mello enfrentou, podia ser “um simples canto de amor. / Mas de amor armado”!

E a poesia é um canto à liberdade. Como Cecília Meireles a define na sua elegia à revolução nas Minas Gerais:

Liberdade – essa palavra,

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!

A poesia é um chamado à luta contra os exploradores. Castro Alves defende a “vingança feroz” das/os escravizadas/os contra os latifundiários. Os/as revolucionários/as de 1917 na Rússia cantavam Maiakóvski durante a tomada do Palácio de Inverno em Petrogrado:

Come ananás, mastiga perdiz.

Teu dia está prestes, burguês.

E a poesia é um canto ao futuro sem exploração. Do socialismo da Cidade Prevista, de Drummond, ou da república proletária, de Brecht:

Pois esta maravilha de construção testemunhava

O que nenhuma das anteriores, em muitas cidades de muitas épocas

Havia testemunhado: os próprios construtores como senhores!

A poesia é uma denúncia das condições de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras exploradas no capitalismo. A Bomba Suja, de Ferreira Gullar, denuncia não só a diarreia que mata crianças Brasil afora, mas também “quem é que faz essa fome”:

Quem é que rouba a esse homem

o cereal que ele planta,

quem come o arroz que ele colhe

se ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólar

e faz arroz virar fome leia mais

Adeus ao velho ciclo

Carlos Mandacuru*

 

 

A lâmina da história

não perdoa nem pune.

Passa precisa e rente;

e serena e indiferente

ceifa, rasga e dilacera

toda carne vã, demente.

E tudo na história renasce

E segue pra próxima crise.

E a carne dilacerada

– classe desorganizada –

sofre, sangra, cicatriza,

e revigora, engrossa, reaviva,

e espera a próxima navalhada.

À classe trabalhadora, a pedagogia dos talhos!

Tomara que as cicatrizes

desvelem o fato central

apreendido na estrada:

tudo se transforma,

do seio do velho, vem o novo,

e o fundamental é não estar tão certo

a ponto de não enxergar

na realidade concreta

o momento propício

a estratégia adequada

perceber, libertar e se dispor

a construir

um novo ciclo.

…..

Perdemos o nexo com a classe

e o novo não vem de outra parte.

Não vem do radicalismo nem do pacifismo

da pequena burguesia de esquerda;

nem de gabinetes ou indivíduos,

por geniais que sejam!

Nem mesmo vem das ruas,

conforme gritamos.

Das ruas têm vindo o cancro

das saídas simplórias do senso comum

[a rua é o espelho do povo

olhai a Ucrânia,

a Venezuela

e nosso próprio umbigo]

O novo vem e virá da classe,

da base da sociedade produtora de mercadorias.

Virá dos produtores de tudo;

produtores sem produto, expropriados

dos meios e ferramentas de sobrevivência.

Nós, que oferecemos a vida em retalhos

aos proprietários privados dos meios de se viver.

Já soubemos este caminho

entre a teoria e a classe,

mas algo se perdeu.

……..

O convés tem ratos mortos, muita ferpa e ferrugem,

mas parece mais limpo que em outros tempos.

No porão, entretanto,

sob a pressão de não parar o barco

a mesma multidão rema como desde sempre

e sobre seu lombo ardem as mesmas chibatadas.

Mas agora podem escolher

– a cada quatro anos –

o nome do feitor

pra aplicar-lhe a chibata.

Pode até indicar um companheiro

desde que cumpra bem o serviço.

…..

O que buscamos nas urnas?

O poder que não organizamos como classe?

Estarmos nós no comando do Estado burguês

– e não a burguesia em pessoa?

Nós quem, no caso?

O que nos aguarda e nos transforma,

na lógica intrínseca desse Estado?

O que de nós já foi moldado?

De que classe, mesmo, falamos?

…….

Em Roma, como os romanos.

Devagar se vai ao longe.

O momento é de descenso, recuo, acúmulo de forças.

E entre sofismas, consolos e lugares comuns,

perdemos a noção materialista mais simples:

a consciência caminha por onde os pés pisam.

E a pragmática

da política

do concílio

da correlação de forças

– sempre sempre desfavorável –

foi deixando nossa cara

(nossa tão cara

cara socialista)

cada vez mais

com jeito,

cheiro

e penteado

da velha socialdemocracia.

…..

Agora aprendemos a vencer

e vencemos

em todas as instâncias

do velho poder estatal.

Jogando o jogo dos abutres,

dos acordos, dos engodos, dos embustes.

Sovando a carne dura da classe explorada

a toques de trabalho e porrada.

Manipulando o sentimento popular

com pão, circo e sobras;

Contendo a revolta,

molhando os pavis,

evitando o perigo

de qualquer mudança.

…..

Conforme a música, é a dança;

Conforme as regras, o jogo.

Aprendemos a jogar

e vencemos

com as armas e os ardis

dos nossos inimigos.

2011/2012

*Jornalista. Militante da INTERSINDICAL – Instrumento de luta e Organização da Classe Trabalhadora. Recife – Pernambuco.

Maçarico

Por Lucas Bronzatto – Poema extraído do livro Um gosto de vidro e corte (baixe este livro clicando aqui)

 

 

Milhares de braços cruzados na porta da empresa
ninguém entra 
até que readmitam todo mundo
Vinte dias de piquete
Revezamento por turnos
Água café e sanduíches
e uma chama que não apaga


Ombro a ombro
o desespero do desemprego pandêmico
com a certeza de poder ser o próximo
a próxima da lista
Faixas de apoio de sindicatos de outros estados
outros países
Noites em guarda
A solidariedade desperta
e rasga seu atestado de óbito forjado
chama que não apaga


Rotatória de histórias partilhadas
Inventário de absurdos
Crachás arrancados do pescoço no fim do turno
E-mails anunciando a demissão
quando acordou da anestesia de uma cirurgia
quando saiu do banho depois do expediente
quando estava no hospital com covid
quando viu que foi removido do grupo de whatsapp
Humilhação transformada em ação
Crises de choro quando volta pra casa
Luta que faz querer sair da cama
chama que não apaga


Sangue nos olhos que assusta dirigentes
Descrença na decisão judicial a favor
(convicção de quem sabe a quem o martelo serve)
Confrontos com a polícia e com fura-greves
armas apontadas
trabalhadores detidos
e uma chama que não apaga


Notícias da nissan de barcelona
noventa e cinco dias de greve
portões da fábrica ocupados
marchas noturnas de apoio da população
(contra a demissão em massa
                a reação em massa)
uma coleção de nãos para os acordos podres
até a readmissão com garantia dos empregos
inflamam uma chama que não apaga


Camisas de colaboradores que um dia vestiram
rasgadas cuspidas queimadas
por lesionados hospitalizadas afastados
se dando conta de que a “colaboração” dura
até a empresa terminar de espanar seus corpos
de que só lutar por emprego não basta
Barricada-escola que derruba ilusões
e uma chama que não apaga
Acordos podres na calada da noite
Derrotas disfarçadas de vitórias
Os mesmos bombeiros de sempre
e uma chama que não apaga
por mais que tentem


O fogo se espalha
corre fábrica adentro
bate o ponto junto da readmissão capenga
maquina um amanhã maior
forja nas pausas um metal ainda mais cortante
Sobe país adentro a contrapelo
por fora dos noticiários
contorna as mentiras e as desgraças
solta faíscas
atravessa rios e mares
e aporta na minha tela
qual mensagem numa garrafa


ao invés do papel, um pano
ao invés de palavras, o fogo


Aporta na minha desesperança
nos nossos laços frouxos
na busca de saídas individuais
no desconhecimento sobre quantos fomos
se lesionadas hospitalizados afastadas
perseguidos indesejáveis improdutivas
aporta na solidariedade subjugada pelo medo
na certeza de sermos cobaias


tanto aqui quanto lá
desse laboratório da barbárie 5.0
Novo velho normal


Qual mensagem numa garrafa
ao invés do papel, um pano
ao invés de palavras, o fogo
anunciando que não vai ser assim tão fácil
atraca na minha chama branda
e incinera o desamparo

 

(poema feito a partir de notícias, relatos e análises sobre as greves na Renault contra a demissão em massa durante a pandemia de Covid-19, principalmente nos materiais do Centro de Estudos Victor Meyer e da rádio Fala Peão. 747 operários/as tinham sido demitidos/as.)

SURTADOS – poema de Golondrina Ferreira

Edições Trunca é um coletivo anticapitalista dedicado a investigar, traduzir e divulgar a literatura “truncada”, “desaparecida”, “apagada” da América Latina, com especial atenção para a poesia.

Redes sociais da Trunca:
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Somos um grupo de artistas trabalhadores/as, que entre outros ofícios da vida estão os de escrever poemas, canções, e traduzir poemas que nos afetam e que achamos que podem contribuir para as lutas sociais e políticas.

Organizamos edições e antologias de poemas, que imprimimos para venda a baixo custo, e disponibilizamos para download gratuitamente nas nossas redes. Até o momento já publicamos os livros: Antologia de Poesias de Luta da América Latina, que é um compilado com poetas militantes de vários países do continente; Cantos à nossa posição, uma antologia de poemas do poeta e guerrilheiro Roque Dalton, de El Salvador; e Poemas para não perder, da poeta e metalúrgica brasileira Golondrina Ferreira.

Com muita alegria e entusiasmo iniciamos essa parceria com o Centro de Estudos Victor Meyer,  cuja forma vai se consolidar ao longo do caminho. A princípio, estaremos aqui espalhando alguns poemas pra alimentar a luta, trazer respiros para dias difíceis, ajudar com esses fragmentos a contar a história da classe trabalhadora e de nossas lutas, em uma outra linguagem.

Começamos essa nossa seção aqui na página do CVM com poemas da Golondrina Ferreira, que foi o último livro que lançamos, no final de 2019. Foi a primeira publicação da Trunca de uma poeta contemporânea, viva, muito viva.

Golondrina é metalúrgica e escreve seus poemas sobre o cotidiano da fábrica, no olho do furacão da exploração capitalista. Sem mais palavreados, pois os poemas falam por si: