Boletim de Conjuntura Internacional

Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 2]

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro

A pretensa superioridade tecnológica e democrática de Israel foi viabilizada pela inserção mais que privilegiada da economia sionista na economia mundial

 

Na Palestina o fim da 1a. Intifada (1987-1993) marcou o início do “ajuste” local com a correlação de forças delineada no final da década de setenta, incorporando a agenda do islã político no interior da sua vida social; esta corrente político-religiosa diferia das forças já existentes por retomar uma visão belicosa para a solução do problema palestino, além da inspiração da religião como inspiração na condução da ação política.

O fim da URSS (1989) também contribuiu para criar um vazio de opções para a situação local, já que o encerramento da bipolaridade das superpotências também pôs fim à “Guerra Fria Árabe”, entre Estados adeptos do pan-arabismo e as “monarquias”. No novo contexto surgido no início da década de 1990, a primeira projeção para a situação palestina era de que o problema foi causado pela sua imersão no interior das tensões da bipolaridade, e, com o fim desta, tornou-se consenso a avaliação de que a paz seria finalmente possível.  Mas esta teoria não logrou êxito na busca da solução através da implementação da fórmula dos “dois Estados”, como ficou claro na fracassada tentativa de encaminhar o problema em negociações conduzidas pela Organização da Libertação da Palestina para a implementação dos Acordos de Oslo, no início dos anos 1990.

A Faixa de Gaza não é causa do conflito regional atual mas, antes, é produto de um confronto que não foi delineado pela História do povo palestino. Encurralada fisicamente (terra, mar e ar) por Israel e Egito, abandonada tanto pela solidariedade árabe (pan-arabismo) e/ou muçulmana (ummah) quanto pela orientação humanista/civilizatória do Ocidente (direitos humanos), inviabilizada politicamente pelo logro de várias resoluções não cumpridas da ONU favoráveis à melhoria das suas condições, restou à sua imensa população, concentrada num pequeno enclave contendo altíssima taxa demográfica, conviver com sua realidade material precária causada pela “prática social genocida” dos sionistas. A única instituição multilateral que presta efetivo apoio às necessidades da população é a UNRWA, criada pela ONU em 1949 para tratar especificamente da sobrevivência material da população palestina, ou seja, para mitigar uma situação criada pela própria instituição criadora! Sobre ela pesa a responsabilidade pela desastrosa proposta de partilha da Palestina, tornada velozmente letra morta pela violência dos sionistas, que implementaram a “sua” divisão territorial pelo uso indiscriminado da violência. A dificuldade deste órgão multilateral em estabelecer sua legitimidade na resolução da questão palestina deu-se desde a tênue tentativa de reformulação do projeto de partilha original, como foi exposto em artigo anterior a este, sobre o assassinato do Conde Folke Bernardotte. Este episódio teve êxito em inviabilizar reparos à Resolução 181. Nenhuma consequência adveio (nem mesmo por parte da própria ONU!) para os executores deste ato terrorista.

A crise atual possui um marco histórico conjuntural basilar: o voto majoritário que o islã político obteve em 2006 nas eleições legislativas. Tomamos em conta que o resultado não foi simplesmente uma opção pela afirmação da religião como condutora da vida pública mas, antes, uma primeira  votação definidora da representatividade política do povo palestino que se tornou plebiscitária, expressando claramente os fracassos de todos os envolvidos nas infrutíferas negociações para a implementação da fórmula dos dois Estados. A vitória do Hamas no pleito não ultrapassou os 45% dos votos, e a derrota do Fatah não foi inferior a 41%. Caso este resultado fosse indicado numa pesquisa de boca de urna, poderia ser considerado um empate técnico, se a margem de erro fosse de 2%. Mesmo considerando que na Faixa de Gaza a densidade eleitoral do Hamas foi mais expressiva do que na Cisjordânia, o pleito foi proposto para escolher representantes para o parlamento como um todo; talvez daí tenha surgido um ódio especial dos dirigentes sionistas para com a população de Gaza e a percepção distorcida que eles desenvolveram de que o islã político seria o marco definidor das perspectivas políticas da sociedade civil no enclave. Não, o resultado eleitoral refletiu uma resposta do eleitor palestino ao cotidiano de “negociações sem solução”, logo seguidas da brutal continuidade da “prática social genocida” sionista. Nesta clave o voto vitorioso do islã político neste pleito representou o “pelo menos eles querem lutar contra a ocupação do Estado de Israel e fazer algo pelos palestinos”, já que a OLP  a) desistiu da orientação de confrontar o sionismo; b) não construiu o Estado da Palestina; e, c) tornou-se um apêndice da política sionista de expansão dos assentamentos na Cisjordânia.  leia mais

O sionismo é um sistema. Introdução à uma análise estruturante da invasão da Faixa de Gaza a partir de outubro de 2023

 

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro, novembro 2023.

Foto: Dois meninos foram retirados dos escombros depois que aviões de guerra israelenses atacaram a Praça Yarmouk, na Rua Jalaa, Cidade de Gaza, em 25 de outubro de 2023. Eles gritaram: ‘Obrigado, defesa civil. Nós te amamos.’ [Abdelhakim Abu Riash/Al Jazeera]

 

Durante a guerra de independência da Argélia, iniciada em 1954, com a dominação colonial francesa em colapso, surgiu na metrópole a percepção de que o problema da rebelião (que levaria a colônia do norte da África à independência em 1962) se devia aos maus colonos enviados pela França.  Como ali a presença de moradores colonizadores era a maior do mundo ásio-africano (1 milhão de europeus em meio à 9 milhões de habitantes locais) esta desproporção  parecia conter algum sentido.  Para contestá-la Jean-Paul Sartre[1], vibrante militante anticolonial, revisou este preceito em texto lapidar sobre o assunto, demonstrando que a rebelião dos colonizados não era contra uma má gestão por parte do colonizador.  Pelo contrário, a colonização foi definida como um sistema, e era justamente este que passava por uma crise terminal devido à nova correlação de forças do pós-guerra, demarcada pela Guerra Fria e, no plano interno europeu, pela construção do Estado de Bem Estar.  Assim, para o filósofo francês, era incompatível a existência da democracia e dos direitos sociais nas metrópoles com a prática de métodos fascistas nas colônias.  Sem sombra de dúvidas foi a declaração de guerra pela Frente Nacional de Libertação argelina que levou o sistema colonial à contradição máxima, corroendo os alicerces da dominação colonial.

A crise argelina expôs, como em nenhum outro sítio dominado pelo imperialismo europeu, o fim do colonialismo iniciado no final do século XIX.  O que demonstra esta tese é o fato de que nas démarches da crise argelina o sistema político francês da IV República também entrou em crise e, surpreendentemente, as forças militares presentes na colônia tentaram interferir (defendendo os interesses dos de colonos) na condução do governo central.  Ou seja, a colônia tentou governar a metrópole!  Este foi o fim do sistema colonial.  Mas, ainda, a independência argelina não foi um fato isolado: junto com a realização da Conferência de Bandung (1955) e a invasão do Canal do Suez (1956) no momento exato da repressão soviética na Hungria – a independência da Argélia constituiu-se num dos focos para a formatação da independência total das colônias asiáticas e africanas.

Malgrado o que tem ocorrido na Palestina desde 1948 seja um caso único, o sionismo também deve ser visto como um sistema.  Afirmo a necessidade de se pensar desta forma, acompanhando Sartre por analogia, já que variados estereótipos têm sido produzidos para caracterizar a brutal tentativa de destruição da população palestina da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e do sul do Líbano.  Tais  caracterizações são apresentadas isoladamente e desprovidas de uma causa para a sua existência no interior de um contexto mais amplo e preciso.  Entre elas citamos: “genocídio”, “apartheid”, “limpeza étnica”, “racismo”, “necropolítica”, “neocolonialismo”, controle do Oriente Médio por uma potência com fortes vínculos com o imperialismo norte-americano, conflito milenar que se torna crônico de tempos em tempos, erro da política de assentamentos por parte de Israel, conflito existencial entre duas culturas, longo governo da extrema-direita israelense (o que inviabilizaria qualquer tentativa de acordo), etc. Todas estas formas de compreensão do problema possuem razões e evidências para serem tomadas como válidas em alguma medida.  Mas nenhuma delas possui alcance para dar aos fatos sob análise o status de “sistema” porque elas “aparecem” funcionando sem uma explicação do que causou a sua aparição.  Sendo assim estas caracterizações propiciam a formatação de soluções paliativas e retóricas além do que (como os fatos tem demonstrado desde o Nakba palestino) não produzem nenhum efeito prático para reverter ou conter o avanço contínuo do sionismo sobre as terras da Palestina. leia mais

DOSSIÊ – A greve nas 3 montadoras e a atuação da UAW

Apresentação

 

Em “Somos parte da revolução mundial”, trecho de Caminho e caráter da revolução brasileira (pg 9.), documento escrito no exílio em 1970, Erico Sachs levantou a possibilidade de que um novo ciclo da revolução mundial viesse a ocorrer nos países industrializados do Ocidente, destacando a Europa Ocidental. Cogitou que o ponto mais baixo da curva parecia superado, com a emergência de crises cujos primeiros sintomas eram a queda de produção e o desemprego seguintes à crise do dólar e do ouro nos EUA e a radicalização do proletariado europeu. Essas previsões não se confirmaram. A luta dos operários para garantir institucionalmente as conquistas parciais – e não um processo revolucionário – foram revertidas depois que a crise econômica aberta com a recessão mundial de 1974 foi superada mediante a chamada “reestruturação produtiva” do capitalismo, permitindo elevar a taxa de exploração da força de trabalho e deprimir os salários reais a partir da década de 1980, até nossos dias.

Os trabalhadores pareciam estar completamente submetidos ao capital, integrados no capitalismo, exprimindo assim o retorno à escravidão assalariada denunciada por Marx na sua época. Contudo, a contradição entre capital e trabalho continuou a se desenvolver nas últimas décadas. Bastou a volta da inflação para o ressurgimento de greves no centro do capitalismo, inicialmente na Europa. A queda do salário real no período apontado constitui um dos motivos da greve que, a partir de 15 de setembro de 2023 tomou conta da indústria automobilística nos EUA, ainda em curso, afetando principalmente as três maiores empresas (GM, Ford, Stellantis). Superar a divisão de dois níveis, entre trabalhadores empregados permanentes e temporários constitui uma razão adicional da mobilização, sobretudo com a expansão dos contratos temporários entre os trabalhadores nas fábricas de veículos elétricos. A sindicalização traduziu o esforço organizativo aí surgido.

A greve tem um sentido internacional pela dimensão contratual que envolve toda a rede de empresas de cada grupo automotivo[1] e por apontar uma direção à luta sindical para o conjunto dos trabalhadores do setor industrial no mundo, inclusive no Brasil, como aliás sugere a participação de delegação da UAW no 14º. Concut.

O que nos importa, desde numa perspectiva revolucionária, é responder às questões aí surgidas. Alguns articulistas de esquerda levantaram a hipótese de que disposição de luta manifestada na paralisação permite falar em militância com sentido de classe. Porém temos de nos perguntar se esse fenômeno está de fato acontecendo. Por outro lado, a combatividade da massa operária nas fábricas nessa direção se encontra bloqueada pela liderança reformista do sindicato?

O presente dossiê traz algumas contribuições[2] para responder a tais questões, com a seleção de artigos e do discurso do dirigente da UAW, para, no final iniciar uma reflexão sobre o que se passa no movimento sindical dos EUA.

Além dessa apresentação, o sumário e a avaliação da atuação da UAW estão publicados a seguir e a versão integral em PDF, com todos os textos podem ser acessados  aqui.

João Ferreira – 23/10/2023

Notas

[1] Enquanto a General Motors e a Ford são empresas americanas que se expandiram mundialmente, a Stellantis é o conglomerado que resultou, em 2021, da fusão da Fiat-Chrysler com o Grupo PSA (Peugeot Société Anonyme), expressando o movimento do grande capital europeu na direção dos EUA. A Stellantis é composta por 14 empresas.

[2] Os textos foram copiados e traduzidos de Jacobin, Labor Notes, WWS e Viento Sur, com sites disponíveis na internet.

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Todo apoio à resistência palestina!

Palestinos da Faixa de Gaza celebram a derrubada do cerco israelense em 7 de outubro, dia de outras inúmeras ações de militares contra a ocupação.

Cem Flores – 11.10.2023

 

No dia 7 de outubro, diversas forças de resistência palestinas realizaram ataques militares com milhares de foguetes e rompimento de cercos contra colonos ilegais e contra militares da ocupação israelense. Essa foi a maior ação palestina em muitas décadas, demonstrando que a resistência continua viva, apesar de toda brutal repressão da ocupação israelense apoiada pelo imperialismo ianque.

A cobertura dos grandes monopólios midiáticos, mais uma vez, busca taxar a justa resistência do povo palestino contra a expansão colonial de Israel como “terrorista”. Ao mesmo tempo em que acobertam todos os crimes humanitários diários de Israel contra os/as palestinos/as. Assim como fazem quando qualquer povo oprimido se rebela contra a dominação! Reforçam tal discurso do regime israelense, não só as lideranças reacionárias, de direita, em todo o mundo, como também vários governos e organizações ditas de “esquerda”, como é o exemplo de Lula e do PT no Brasil. leia mais

Guerra, Paz e Revolução: a propósito da Ucrânia e do mundo hoje

Nuvens carregadas de tempestade obscurecem lenta, mas progressivamente, nosso horizonte temporal. A agressividade da guerra imperialista na Ucrânia, com suas implicações econômicas e a escalada militarista generalizadas, acrescenta agora ameaças mais letais e tornam ainda mais sombrio o destino da humanidade com a perspectiva da sua mundialização.

Para enfrentar esta situação e abrir caminho para outro futuro, a classe operária e os trabalhadores dos países que estão no centro da crise atual precisam entender que as relações internacionais constituem somente a expressão político-estatal da dominação do capital monopolista em sua constante necessidade de redividir o mundo e que a pátria, essa ilusão de unidade nacional em sociedades divididas em classes e controladas pela burguesia, nada significa alguma coisa além de recursos e fronteiras a serem apropriados e rompidas. Mas também não devem iludir-se os trabalhadores que, como nós no Brasil e na América Latina, por estarem longe do epicentro dos conflitos interimperialistas, imaginem eventualmente se beneficiar da neutralidade de seus governos.

A defesa da paz mundial, contra a crescente tendência à guerra, precisa ser, em consequência, assumida como atitude política em favor da revolução socialista, única alternativa capaz de impedir uma nova recaída na barbárie, como foram as décadas de 1914 a 1945, durante as duas guerras mundiais.  Neste sentido vale reler as contribuições dos revolucionários que estiveram no centro dos conflitos há mais de um século. Indicamos aqui o texto “Marrocos” de Rosa Luxemburg, publicado em 1911.

Leia o texto “Marrocos” clicando aqui.

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