Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 3]

 

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Opera Mundi, 30 de março de 2024.

 

 

Pela primeira vez os sionistas perderam o controle da narrativa do que ocorre na Palestina, com a massiva empatia pela causa palestina a nível global

 

1948: o começo do fim?

Desde que começamos a tratar do genocídio que ocorre na Faixa de Gaza aqui neste Opera Mundi, em dezembro de 2023, estivemos preocupados em discernir a estrutura do Estado sionista buscando a compreensão materialista do que lá se passa, “a análise concreta da realidade concreta”. Isso porque, cercado de fetiches e narrativas forjadas numa correlação de forças amplamente desfavorável, a questão palestina tem-se apresentado para o grande público de forma fantasiosa e distorcida. Esta percepção absolutamente idealizada é alimentada pelos sionistas e aliados desde a “independência” do Estado de Israel em 1948, colocando este feito no interior de uma cobertura dourada de legitimidade jurídica, já que outorgada pela Organização das Nações Unidas através da Resolução no. 181, de 29 de novembro de 1947. A reação adversa dos países árabes, contrários a esta resolução – e depois a derrota na guerra de 1948 –, tornou-se em uma espécie de “cláusula pétrea” de que a situação do povo palestino foi produzida pelos erros do mundo árabe, quando não dos próprios palestinos. Mas atentemo-nos para uma indicação pouco considerada e que, certamente, é o início da mistificação de todos os fatos posteriores: a decisão da ONU que foi aprovada impunha à Palestina um “Plano de Partição com União Econômica”.

O mapa abaixo (reparem o título do documento), extraído do texto da resolução, não deixa dúvidas de quais foram as decisões tomadas.

Sendo assim, o que produziu, na longa duração, a atual situação do povo palestino foi uma expectativa inflada de que a questão estava automaticamente resolvida após a Resolução no. 181.  Desta forma, bastava implementar fisicamente a constituição dos dois Estados, que estariam baseados em: partilha territorial e unificação econômica. Esta orientação idealista/kantiana presente no documento oficial considerou que a adversidade no convívio dos dois povos – na realidade do terreno coberto de conflitos –, seria superada com a formação de dois Estados Nacionais que, na prática, funcionariam como apenas um. A condução do processo de “partilha”, nas mãos das potências coloniais, conscientes de que seu reinado absoluto no mundo ásio-africano estava chegando ao fim, produziu uma abordagem que fez sucumbir o problema palestino para o atendimento destes interesses. Daí por diante o mainstream midiático, formador por excelência da consciência sobre o que ocorria na Palestina, tornará eternamente descontextualizada a espoliação dos verdadeiros donos da terra.

Se houvesse uma correlação de forças distinta (favorável ao povo palestino), alguma concessão para os sionistas poderia ser feita com equidade. Isto ocorreria caso o ethos conceitual que determinou este processo estivesse contido na visão realista/morgenthauniana, o que implicaria uma correção dos rumos do processo de ocupação ilegal dos colonos judeus. Nesta clave, deveriam ter sido criados dois Estados Nações com suas respectivas economias nacionais, definindo com clareza que a aquisição de qualquer propriedade territorial estaria congelada e as que foram usurpadas deveriam retornar aos verdadeiros proprietários. Quando a descolonização das metrópoles europeias estava em marcha – criando a sensação equivocada de que o caso do Estado sionista estava inserido neste processo –, a Resolução no. 181 refletiu irrealisticamente o destino dos dois povos, pois favoreceu um deles, o povo judeu.

A “partilha” aprovada (na realidade um projeto, sujeito a reparos antes da divisão final) olhava para o passado, onde impérios multinacionais e multiétnicos perduraram séculos; o mundo pós-guerra será, no entanto, o de predomínio dos Estados Nacionais soberanos. Assim, sem considerar o histórico de expropriações/roubo de terras palestinas que já vinha num crescimento exponencial havia décadas, o texto cândido da Resolução no. 181 parece indicar que houve aposta numa solução mágica para quaisquer entraves políticos: a união econômica. Devemos aqui considerar que no momento da aprovação do texto da resolução não havia nenhuma experiência de estados soberanos com integração econômica de qualquer tipo; a Comunidade Econômica do Carvão e do Aço, embrião da atual União Europeia, a primeira experiência de integração econômica entre Estados Nacionais soberanos, surgiu somente em 1951 e, como está definido no nome da entidade, tratava apenas de duas atividades econômicas. Em segundo lugar, estados “unidos” (como o Reino Unido e os EUA) possuem hegemonia regional e/ou social e/ou étnica para o seu funcionamento; o Reino Unido é dominado pela Inglaterra e os EUA são conduzidos pelos descendentes de europeus (ingleses, irlandeses, alemães e italianos).

Dado o caráter desigual do que foi aprovado[1] – e, ainda, considerando que as independências das antigas colônias e regiões sob mandato no Oriente Médio traziam uma variável de poder político soberano que hostilizava os antigos colonizadores –, a aprovação da Resolução no. 181 acabou por servir de “apito de cachorro” para os sionistas tanto colocarem em prática o Plano Dallet (de expulsão dos habitantes nativos) quanto executar uma função social no novo sistema internacional que estava se formando: a de ser uma espécie de “representante in loco” do imperialismo derrotado no Oriente Médio. Entre novembro de 1947 (aprovação da Resolução no. 181) até maio de 1948 (instituição do novo Estado), os sionistas implementaram o que já havia sido pensado desde os primórdios do movimento nacionalista dos judeus na Europa no século XIX: a expulsão deliberada das populações de centenas de vilas e cidades que, uma vez desocupadas da população nativa, favorecia a tomada da terra pelos novos senhores do poder na região. Nenhuma consideração moderadora do decidido na ONU foi tolerada pelos sionistas, que chegaram a eliminar fisicamente um representante deste organismo multilateral (como apontado nos artigos anteriores), que apenas procurava reparar o excesso de concessões a um dos lados.

Não nos aprofundaremos em detalhes já cobertos pela historiografia sobre o tema, tanto a de origem palestina quanto a de origem israelense, dos chamados “Novos Historiadores”. O que nos move neste momento é refletir sobre porque, após tanta pesquisa e reflexão acadêmicas, resoluções institucionais e investigação jornalística de altíssimo nível – esclarecendo de forma definitiva os caminhos pelos quais os sionistas obtiveram por meio da violência a posse do território – ainda não foi possível alcançar uma correlação de forças que estanque o contínuo movimento de usurpação dos direitos do povo palestino. Mais do que isso, por outro lado, como e porquê a versão sionista das suas ações pérfidas sempre obtêm êxito em conquistar emulação entre parcela significativa da opinião pública que, através de apelos emocionais do tipo “vítimas do holocausto”, conseguem denegar os argumentos válidos do povo palestino para fazer valer os direitos sobre o seu território.

Nossa preocupação se dá em função do que consideramos ser uma carência na forma de abordagem do problema, ao menos no que toca ao senso comum, informado pela mídia e pelas redes sociais, do que se passa nesta parte do Oriente Médio. Mas não apenas o lapso informacional deve ser considerado; temos que também apontar os elementos estruturantes da formação econômico-social predominante na partilha que produziram as devastadoras ações sobre a integridade física e psíquica de uma população violentamente espoliada.

 

2023: o fim do começo?

Não será nosso intuito agora retomar o roteiro de barbaridades que ocorrem (ocorreram) nos dias que correm e nem a luta que a invasão sionista e seu impressionante poderio militar trava com os grupos representantes do islã político, apresentando uma análise que aponte um resultado militar ou político das batalhas. Temos em mente que, neste momento, o mais importante é discernir na ação militar na Faixa de Gaza o que foi transformado ou mantido dos ativos políticos do sionismo ao lidar com a insurgência dos palestinos.

Decorridos seis meses do fatídico 7 de outubro, uma nova conjuntura mundial se abriu para a observação e intervenção na causa palestina, cujo interesse e empatia produziu um dos fenômenos mais importantes neste período: o grande volume de manifestações populares defendendo o encerramento dos bombardeios e a implementação de ajuda humanitária. Estas identificam claramente o agressor sionista como executor de um genocídio. Em cidades importantes vêm ocorrendo comícios e passeatas; manifestações universitárias, de artistas, de políticos, de desportistas, além das de cidadãos comuns, apontando o problema e propondo soluções. Setores da classe operária (portuários) em vários países têm procurado dificultar que o Estado sionista tenha acesso às armas que serão utilizadas no genocídio. Se comparadas com as manifestações públicas homólogas produzidas pelos sionistas, teremos um contraste marcante; estas foram poucas (muito embora no início do ataque tenham ocorrido com frequência) e foram se tornando escassas e esvaziadas ao ficar claro como as forças militares sionistas, seus comandantes e seu governo agem.  Somente nas redes sociais o desempenho do soft power sionista produz resultados no sentido de influenciar a opinião pública. É de amplo conhecimento seu histórico de investimentos em campanhas de “informação”, o hasbará. Estas são organizadas com fartos recursos públicos e privados para sorrateiramente (p. ex., uso de perfis falsos nas redes sociais e manutenção de organizações não-governamentais) participar de debates com argumentos forjados na medida exata para semear um espaço cognitivo próprio, desistoricizando os processos sociais e apresentando uma visão romântica e plasticamente aceitável da relação dos sionistas com os palestinos; se algo der errado, o argumento já possui um piloto automático que faz recair a responsabilidade exclusiva nas vítimas da brutalidade do poder militar quase infinito dos agressores. Afirmações algo paranóicas do tipo “se os palestinos amarem seus filhos mais do que nos odeiam poderemos conviver com eles apesar das diferenças” é uma pedra angular da visão sionista, isto em meio a um oceano de colocações absolutamente alucinadas nesta direção. Transformando o processo de espoliação em uma carência afetiva, os sionistas conseguem viajar num sonho dourado de argumentos que eles tomam como eternamente perfeitos e ungidos de espiritualidade para se afirmarem como “donos da verdade”. Descartam que este é um processo extremamente complexo cuja História possui milhares de nuances… que só eles, por lidarem direta e exclusivamente com a questão (e por serem o “povo escolhido”), são conhecedores da fórmula final de resolução da questão palestina.

De qualquer forma, fica claro que após o início da invasão da Faixa de Gaza a batalha narrativa vai tomando forma numa crescente crítica da “política social genocida” promovida pelo Estado sionista. Isto ocorre porque pela primeira vez (finalmente!) os sionistas perderam o controle direto e total da narrativa do que ocorre nesta parte do Oriente Médio com a formação massiva de empatia pela causa palestina pela cidadania global. Mesmo que tal fato não consiga modificar a realidade imediata, fica aqui uma pequena semente para um afrontamento mais consistente ao sionismo no futuro. Um primeiro revés da orientação sionista para estigmatizar o ocorrido em 7 de outubro é o fim da esperança de replicar o imaginário de um novo “11 de setembro”, agora em pleno coração do Oriente Médio. Este ideal rapidamente perdeu força com a violência sobre os palestinos na Faixa de Gaza; ele até mesmo produziu o esmaecimento das motivações iniciais de vingança ao ocorrido em 7 de outubro de 2023 e do resgate dos detidos nesta data. A legitimidade inicial que o Estado sionista alegava ser possuidor para reagir com ódio e vingança foi sendo paulatinamente corroída pela realidade do que eles estão produzindo: limpeza étnica e/ou genocídio como um fim em si mesmo.

A brutalidade dos bombardeios aéreos, destruindo tudo que eles atingem, é capaz de já ter sacrificado as vidas de inúmeros detidos em 7 de outubro.  Seria patético se ao final de tamanha destruição não fossem encontrados vivos um número de detidos aceitável para as expectativas da sociedade sionista e dos familiares.

Um segundo elemento que indica a corrosão da argumentação defensora do ataque ao povo palestino foi o afastamento (ao menos retórico) dos aliados europeus e o norte-americano, o que tem sido até comemorado como “isolamento” político internacional do Estado de Israel. A violência gratuita e injustificada ficou mais clara do que nunca no alvejamento proposital da população em busca da ajuda humanitária (alimentos) em Gaza no dia 29 de fevereiro, ocasião em que mais de cem cidadãos foram assassinados por tiros de arma de fogo. Vários outros episódios como este têm se repetido; tornaram-se uma sinistra rotina produzida pelos snipers que fazem limpeza étnica cabeça por cabeça (sic). Este procedimento abalou o apoio aos sionistas por parte da comunidade de Estados tradicionalmente pró-Estado de Israel. Ficou claro que a partir daquele momento não mais haveria apoio político público incondicional ao ataque dos sionistas, muito embora a materialização da transferência de bens e serviços para a economia do Estado de Israel através do já analisado “convite” continue a todo vapor.  São vários os exemplos de que o “isolamento” não é real e que o “convite” supera em muito as críticas ao Estado sionista. Um desses casos é a prolixa posição anti-Israel do presidente turco Recep Tayyip Erdogan, que chegou a promover comícios com centenas de milhares  de cidadãos em apoio ao povo de Gaza e contra os sionistas – chamando de genocídio o ataque a Gaza, e comparando o primeiro-ministro sionista à Adolf Hitler –, mas que mantém intacta (e até ampliada) a rede de abastecimento de bens e, principalmente, de energia, que sai da Turquia rumo ao Estado de Israel.

Outros episódios devem ser considerados para análise desta nova conjuntura, entre eles: a) a ação promovida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça; b) o apoio dos Houthis do Iêmen bloqueando a entrada do Mar Vermelho e, daí, do Canal de Suez; e, c) o pronunciamento do presidente Lula na reunião da União Africana, em Adis Abeba, no dia 18 de fevereiro.

O genocídio é uma categoria jurídica e só poderá ser constatado após muito tempo do ocorrido; infelizmente a justiça internacional encontra-se embrionária no sentido de impor punições aos Estados descumpridores de preceitos jurídicos. Mesmo os instrumentos de sanções existentes não serão suficientes para impedir a implementação seja do genocídio seja da limpeza étnica. Mesmo assim, a iniciativa do governo da África do Sul iluminou um campo de questionamentos amplos, fazendo a opinião pública internacional se sensibilizar e repelir a prepotência das ações do Estado de Israel tanto com relação à população da Faixa de Gaza quanto com as regras jurídicas que regulam a vida dos povos. A ação solidária dos Houthis ao atacar navios que adentravam o Mar Vermelho foi o primeiro apoio material de confronto com a rede de alianças vinculada ao sionismo; as consequências deste bloqueio se fizeram sentir na logística econômica e de guerra israelense e, também, na economia mundial. De qualquer forma, mesmo absorvendo custos, a impossibilidade de contornar de imediato o bloqueio no estreito de Bab el Mandeb fez surgirem outras rotas de comércio, que rapidamente foram viabilizadas; a economia do Estado sionista não deve sofrer maiores dificuldades, seja para o esforço de guerra, seja para a reprodução da vida social.

A posição adotada pela política externa brasileira também é digna de nota. Elevando continuamente o tom das críticas que fazia desde o início da invasão da Faixa de Gaza, o presidente Luis Inácio Lula da Silva adotou a posição de condenação total à ação, o que causou reações intensas do governo sionista, da oposição de extrema-direita e da imprensa brasileiras. Apesar de circunscrita na fala do mandatário, a comparação entre os genocídios sofridos por judeus e palestinos adquiriu uma capacidade cognitiva considerável ao desconstruir o que foi aludido acima sobre o poder simbólico dos argumentos dos sionistas. Isto porque a origem da formulação veio de um líder operário de origem humilde (até parecida com a pobreza que existe na Faixa de Gaza) governante de um país periférico relevante no novo cenário internacional que se abre. Nestas condições, ficam expostas as feridas das limitações do imaginário que os sionistas querem criar para si (como um discurso legítimo de consumo interno) e para a cidadania global. A política externa brasileira se colocou na vanguarda da defesa de povos oprimidos, dando voz a um grande grupo de países do mundo ex-colonial que tiveram na dobradinha África do Sul-Brasil uma referência na defesa de valores vinculados aos Direitos Humanos. Tais princípios foram surpreendentemente abandonados na questão palestina pelos seus criadores, os países desenvolvidos da Europa ocidental e os EUA.

Aproveitando a novidade, e temeroso das consequências daí advindas, o ministro das relações exteriores do Estado sionista inaugurou para o hasbará mais uma forma de atuação: a diplomacia de lacração. Ele tentou neutralizar, de forma preconceituosa, a afirmação contundente do presidente Lula, que já havia sido feita por outros atores políticos. Além disso, despudoradamente consorciou suas mensagens na plataforma X à extrema-direita nacional, que é afim ao seu pensamento, cujas ações terroristas contribuíram para criar um clima de instabilidade que levou à tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. Esta batalha diplomática enviesada pela exposição midiática inundou o debate político brasileiro de narrativas tolas de que haveria uma afinidade do presidente Lula, do PT e do seu governo com os representantes do islã político. Pensou o ardiloso ministro que, tentando encurralar o presidente Lula, seria fácil extrair uma retratação do que ele considere ser um mero goyim pobretão que se arvorou a criticar as ações do governo do país onde mora o “povo eleito”. Com firmeza e tranquilidade, o primeiro dirigente do Brasil e a diplomacia profissional de Estado mantiveram o tom forte e equilibrado na resposta às arruaças argumentativas do diplomata fanfarrão. Esta posição estável tornou o Brasil em fiador avalizado da questão para os governos temerosos de retaliações e, por consequência, deu uma invertida no ministro sionista.

 

2024: o começo do começo

De fraude em fraude (ou melhor, como diria George Orwell no romance “1984”, de duplipensar em duplipensar) o sionismo vai se movendo sorrateiramente nas relações políticas internacionais, procurando frestas para se apresentar como válido e aceitável. Como um camaleão, que muda de cor de acordo com a superfície em que se apresenta, o sionismo se exibe como um Estado liberal (“a única democracia do Oriente Médio”) quando o ambiente é propício e/ou conveniente;  quando a crise com a população palestina se avoluma, ele se transforma rapidamente num filhote do nazismo, infringindo todas as regras pactuadas (até pelo Estado sionista). Dentro de instituições multilaterais passam a desdenhar quaisquer considerações sobre respeito a direitos que eles mesmos tanto reclamam de não terem sido considerados quando eram as vítimas. Eles são produto das vítimas do nazismo que não se pouparam de produzir as suas próprias vítimas. Trata-se de uma excrescência na vida política internacional com um papel deletério na perpetuação da desigualdade entre as nações e, dentro delas, das classes sociais.

Jean-Paul Sartre, em lapidar artigo já citado, intitulado “O colonialismo é um sistema”[2], diagnosticou a crise argelina (que era a crise total do colonialismo europeu na Ásia e África) como sendo produto de uma contradição: o estado de bem-estar social na metrópole e o fascismo imposto por esta nas colônias, tensão que foi aguçada na guerra de libertação. Esta contradição foi fatal para a França, em convulsão social por causa da situação em sua colônia. O país, com a guerra contra a Frente de Libertação Nacional argelina, esgotou sua capacidade de manter o processo colonial iniciado um século antes e, em plebiscito no ano de 1962, decidiu encerrar a colonização. No caso do Estado sionista, tal ambiguidade também aparece. Só que, neste caso, o sionismo transformou-se num ente híbrido que antes de apresentar esgotamento expõe com vigor a interligação entre a parte democrática (ao menos para os judeus de origem europeia que a vivem plenamente) e o povo palestino. Do ponto de vista político e argumentativo, quanto mais violência física e verbal do tipo nazista é lançada sobre a população palestina da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, mais o lado democrático do Estado sionista fica realçado. Um sionista religioso fundamenta esta situação algo mágica em uma dimensão espiritual, como sendo a realização do encontro das necessidades do “povo eleito” com D’us; um materialista histórico, ao contrário, define esta propriedade como a capacidade material e imaterial deste ente estatal híbrido de realizar um duplo “aggiornamento”: o material se transmuta em uma necessidade espiritual e vice-versa. Tal propriedade é derivada de uma economia política própria, que é a inserção complexa na divisão da produção e distribuição da riqueza social em que o Estado de Israel obteve pleno êxito em adquirir do exterior rendas parasitárias explorando ao máximo a sua condição sub-imperialista. O papel de “sub” da equação é atenuado pelas facilidades concedidas pelas potências mais desenvolvidas ao “contratar” um Estado para agir em seu nome; o papel “imperialista” é (e está projetado para ser  cada vez mais), aplicado não só para os países do Oriente Médio como também para todo o Sul Global.

Sendo assim, chegamos à conclusão nesta série de três artigos sobre a situação na Faixa de Gaza: não estamos no “fim do começo”, mas no “começo do começo”.[3] A situação na Palestina está se tornando, cremos, (por patrocínio de interesses externos à região), um parâmetro na organização da repressão social, política e ideológica de todos os povos que lutam por desenvolvimento e justiça.

O sionismo superou com eficácia a contradição democracia (welfare-state) x fascismo (genocídio) presente na equação esboçada por Sartre, devido à sua maleabilidade material de se reproduzir sem custos tradicionais presentes em qualquer outra economia periférica. Para o caso da França, a contradição apontada pelo filósofo existencialista se fez sentir fortemente porque havia a necessidade de produzir bens com alto valor agregado necessários tanto à reprodução da sua força de trabalho quanto para a competição econômica internacional.

O sionismo tem sido capaz de suspender e desmaterializar completamente a contradição básica de sua conduta: as vítimas que se tornaram algozes, mas continuam se atribuindo o papel de vítimas eternas. É por esta propriedade sui generis do interior do sionismo que achamos mais do que conveniente chamar a situação da população da Faixa de Gaza de “holocausto”; neste os sionistas procuram se vingar de um povo inteiro, mais do que evitar um novo holocausto. O povo palestino, e nem os diversos impérios árabes onde os judeus se estabeleceram, não tiveram nenhuma participação no martírio por eles sofrido. Afirmam sem pudor que estão em confronto com nazistas (sic), numa conclusão a-histórica, totalmente compatível com uma agenda pós-moderna. Mas é justamente esta visão de mundo insana que viabiliza sua economia, via “convite”. Desde 1947, estão reproduzindo incontinentemente o mesmo processo de extermínio que os motivou a se instalarem em terras pertencentes a outro povo; ao invés de empobrecerem, dados os escassos recursos naturais, a falta de indústrias significativas e matérias-primas, enriqueceram. É por esta capacidade que, metaforicamente, saem de um holocausto para produzir outro, criando um mimetismo delirante entre um e outro. O pudor apresentado pelas autoridades sionistas pela fala do presidente Lula demonstra cabalmente a necessidade forjada dos sionistas se sentirem ameaçados em meio a uma fortaleza praticamente inexpugnável aos inimigos internos, mas não às contradições de classe internas.

Gostaríamos de encerrar este artigo dedicando as palavras e análises desenvolvidas acima aos que, sem sombra de dúvidas, são os NOSSOS mártires, feridos e enlutados na Faixa de Gaza. Temos a certeza que suas experiências de dor, perdas e luta pela sobrevivência ficarão para sempre nos corações e mentes dos bons e dos justos. Allahu Akbar!

Palestina livre do rio ao mar.

 

Notas:

[1] A parte relativa ao “Estado Judeu” correspondia a 52% do território. Neste, a população de judeus era ligeiramente superior à de palestinos.

[2] IN: SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.

[3] Continuaremos a tratar da questão palestina neste Opera Mundi considerando sempre o dantesco grau de destruição física e política que está ocorrendo, utilizando o mesmo título destes artigos para analisar o tema.

LEIA em pdf: GAZA ANO ZERO, PARTE 3

 

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