Reforma da Previdência: Nem mais um dia de trabalho
Le Monde Diplomatique Brasil Edição – 150
por Danièle Linhart
7 de Janeiro de 2020
O ambiente corporativo torna-se cada vez mais estressante e, por vezes, letal – um desenvolvimento que contribuiu para explicar por que muitos assalariados rejeitam a ideia de aposentar-se ainda mais tarde
A mobilização de dezembro de 2019 impressionou tanto por sua amplitude quanto por sua diversidade: jovens e idosos, advogados, artistas, professores, estivadores, ferroviários, executivos, funcionários, médicos, enfermeiras, bombeiros, músicos, funcionários dos correios, estudantes, funcionários da alfândega etc. marcharam no mesmo ritmo. Essa febre surge um ano após o aparecimento espetacular dos coletes amarelos, [1] numa época em que o movimento dava sinais de esgotamento. Emmanuel Macron e o governo pensavam que se beneficiariam com a marginalização dos sindicatos, que os coletes amarelos rejeitavam; eles acreditavam ter acalmado a raiva da França popular por meio de medidas financeiras e de consultas públicas. De fato, eles tinham “cedido” 10,3 bilhões de euros – isenção de impostos para horas extras, aceleração do aumento do salário mínimo por meio do bônus de atividade, supressão do aumento da contribuição social geral (CSG) para alguns aposentados – e pago pessoalmente para “ouvir o que os franceses tinham a dizer”?
Raramente um presidente da República terá debatido tanto com os cidadãos. As redes de informação ecoavam a imagem de um homem ostensivamente envolvido, de pé, em mangas de camisa diante de uma assembleia densa; ele ouvia, observava, discutia, trocava e, acima de tudo, explicava. Esperava-se que a opinião dos franceses deveria ressoar através do “grande debate” organizado por meio de contribuições cidadãs em plataformas on-line, reuniões e livros de reclamações criados pelos municípios.
Por que, num tal clima e após dois anos de “consulta” sobre a reforma da previdência, os assalariados se lançam com toda a força numa mobilização de tal magnitude? Por que eles têm o sentimento de que o governo não os respeita?
De fato, muitos franceses descobrem que o “nem direita nem esquerda” de Macron foi substituído por um pensamento puramente tecnocrático, em que o “universal” se refere ao mercado, em que a “mudança” suplanta o progresso e em que os equilíbrios construídos ao longo do tempo não merecem atenção alguma.
Alguns achavam que os sindicatos estavam ultrapassados, em especial aqueles que não são considerados “reformistas”. Eles saíram da caixa. Numa sociedade marcada pela individualização e pela competição sistemática, eles conseguiram superar a armadilha do confronto entre trabalhadores estabelecida pelo governo, que focou sua comunicação na denúncia dos “privilégios” dos funcionários públicos e dos beneficiários de “regimes especiais”.
A maioria dos franceses conhece a utilidade dos serviços públicos, as difíceis condições de trabalho que ali prevalecem, as remunerações modestas. Não somente a divisão não funcionou, mas a raiva parece ter se reforçado com a chamada cláusula “avô”, ou “neto”, ou mesmo “irmão mais velho”, colocada em destaque por diversos ministros para neutralizar a mobilização – como se as mulheres ainda dependessem dos homens de sua família; como se os adultos pudessem conscientemente programar uma degradação social para seus filhos!
Em uma demonstração de força, os sindicatos brandem suas reivindicações e sua intenção de não deixar de se posicionar. Eles apostam em uma capacidade coletiva de defender os interesses de todos. Bem em seu papel, eles, sem dúvida, ganham legitimidade.
3,2 milhões ameaçados de burnout
Nas rotatórias, os coletes amarelos diziam redescobrir certa qualidade de relações sociais, uma felicidade por estarem juntos, compartilharem valores e esperanças. No cerne dos protestos contra a reforma previdenciária, o prazer de reivindicar e de se rebelar juntos é também igualmente palpável. Muitas vezes uma criança boazinha, às vezes enfurecida, sempre determinada, a mobilização mostra um desejo de coesão, atenção aos outros e coragem. Porque é preciso coragem para se manifestar enquanto ficam lhe buzinando nos ouvidos coisas como a presença de black blocs e um alto risco de violência. É preciso coragem para continuar desfilando em meio a nuvens de gás lacrimogêneo e aos disparos de granadas de efeito moral (ler o artigo na pág. 9). Na França de Macron, é preciso de fato coragem para participar de uma manifestação anunciada, em um percurso autorizado, para defender reivindicações que simplesmente se relacionam com o respeito pelos trabalhadores…
Por mais que se repita para elas que estão melhor que seus vizinhos, a grande maioria das pessoas não deseja ser forçada a seguir uma carreira mais longa nem a ver sua pensão diminuir. Elas são constantemente comparadas aos empregados em países onde a vida é ainda mais difícil, onde se trabalha por mais tempo, onde se desfruta de menos proteção social e onde se recebem aposentadorias mais baixas: isso é precisamente o que elas rejeitam. Muitas delas estão ansiosas para deixar o emprego e não querem que a idade de início da aposentadoria seja adiada. leia mais