Maçarico

Por Lucas Bronzatto – Poema extraído do livro Um gosto de vidro e corte (baixe este livro clicando aqui)

 

 

Milhares de braços cruzados na porta da empresa
ninguém entra 
até que readmitam todo mundo
Vinte dias de piquete
Revezamento por turnos
Água café e sanduíches
e uma chama que não apaga


Ombro a ombro
o desespero do desemprego pandêmico
com a certeza de poder ser o próximo
a próxima da lista
Faixas de apoio de sindicatos de outros estados
outros países
Noites em guarda
A solidariedade desperta
e rasga seu atestado de óbito forjado
chama que não apaga


Rotatória de histórias partilhadas
Inventário de absurdos
Crachás arrancados do pescoço no fim do turno
E-mails anunciando a demissão
quando acordou da anestesia de uma cirurgia
quando saiu do banho depois do expediente
quando estava no hospital com covid
quando viu que foi removido do grupo de whatsapp
Humilhação transformada em ação
Crises de choro quando volta pra casa
Luta que faz querer sair da cama
chama que não apaga


Sangue nos olhos que assusta dirigentes
Descrença na decisão judicial a favor
(convicção de quem sabe a quem o martelo serve)
Confrontos com a polícia e com fura-greves
armas apontadas
trabalhadores detidos
e uma chama que não apaga


Notícias da nissan de barcelona
noventa e cinco dias de greve
portões da fábrica ocupados
marchas noturnas de apoio da população
(contra a demissão em massa
                a reação em massa)
uma coleção de nãos para os acordos podres
até a readmissão com garantia dos empregos
inflamam uma chama que não apaga


Camisas de colaboradores que um dia vestiram
rasgadas cuspidas queimadas
por lesionados hospitalizadas afastados
se dando conta de que a “colaboração” dura
até a empresa terminar de espanar seus corpos
de que só lutar por emprego não basta
Barricada-escola que derruba ilusões
e uma chama que não apaga
Acordos podres na calada da noite
Derrotas disfarçadas de vitórias
Os mesmos bombeiros de sempre
e uma chama que não apaga
por mais que tentem


O fogo se espalha
corre fábrica adentro
bate o ponto junto da readmissão capenga
maquina um amanhã maior
forja nas pausas um metal ainda mais cortante
Sobe país adentro a contrapelo
por fora dos noticiários
contorna as mentiras e as desgraças
solta faíscas
atravessa rios e mares
e aporta na minha tela
qual mensagem numa garrafa


ao invés do papel, um pano
ao invés de palavras, o fogo


Aporta na minha desesperança
nos nossos laços frouxos
na busca de saídas individuais
no desconhecimento sobre quantos fomos
se lesionadas hospitalizados afastadas
perseguidos indesejáveis improdutivas
aporta na solidariedade subjugada pelo medo
na certeza de sermos cobaias


tanto aqui quanto lá
desse laboratório da barbárie 5.0
Novo velho normal


Qual mensagem numa garrafa
ao invés do papel, um pano
ao invés de palavras, o fogo
anunciando que não vai ser assim tão fácil
atraca na minha chama branda
e incinera o desamparo

 

(poema feito a partir de notícias, relatos e análises sobre as greves na Renault contra a demissão em massa durante a pandemia de Covid-19, principalmente nos materiais do Centro de Estudos Victor Meyer e da rádio Fala Peão. 747 operários/as tinham sido demitidos/as.)

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