Qual é a herança da Revolução Russa ?

Nós e a Revolução de Outubro

Essa problemática toda, em que diz respeito à nossa luta? É óbvio que os problemas que enfrentamos atualmente no Brasil são bastante diferentes, mas, assim mesmo, não podemos ficar indiferentes aos caminhos que o processo revolucionário mundial tomou desde 1917. Não podemos ficar indiferentes, em primeiro lugar, porque a Revolução Russa e seu desenvolvimento posterior marcaram profundamente o movimento operário no mundo inteiro, e isso sentimos na própria carne.

Em segundo lugar, a existência da União Soviética e do campo socialista é hoje um dos eixos fundamentais em torno do qual gira a política mundial e que influi nas lutas de classes em escala internacional e, conseqüentemente, nas lutas de classes em cada país.

Finalmente, não podemos ficar indiferentes porque a experiência passada diz respeito ao nosso próprio futuro.

O que não devemos fazer, e isso foi um erro do passado, é ficar em função das lutas de facções de PC’s em outros países (seja do PC soviético ou de qualquer outro – os rótulos podem mudar, mas o sistema é o mesmo). Nossa luta fundamental está em função da emancipação do proletariado em nosso país. Só assim podemos nos tornar um fator político e social nas lutas de classes reais. E é a partir deste ângulo que podemos procurar compreender e absorver a experiência das lutas em outras partes do mundo.

Se nós queremos tirar lições para o futuro, temos de aprender a distinguir os aspectos especificamente russos da Ditadura do Proletariado das formas que ela tomará em outras revoluções, que ocorram em outras circunstâncias. Uma lição já podemos tirar da Revolução Russa: a democracia socialista não é um princípio abstrato, mas necessita de condições materiais criadas antes da revolução, que o proletariado transformado em classe dominante possa aproveitar.

Não se trata propriamente de uma novidade para marxistas. O próprio Marx já salientou: “do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista como se desenvolveu sobre as bases que lhes são próprias, mas, pelo contrário, tal como acaba de sair da sociedade capitalista”. A experiência soviética só nos mostrou concretamente as conseqüências previstas teoricamente. No caso russo, porém, temos de levar em conta o grau incipiente do desenvolvimento do capitalismo: também o proletariado russo herdou “os estigmas da antiga sociedade que o engendrou”.

Nesse sentido, a experiência soviética ainda é a mais rica para nós (mesmo no sentido negativo). A China principiou de um ponto de partida mais baixo ainda. E os países industrializados, como a Alemanha Oriental ou a Tchecoslováquia, onde a revolução e a construção socialista poderiam ter partido de um nível mais alto, não estavam em condições de apresentar uma alternativa, porque desde o início o modelo soviético lhes foi imposto de cima para baixo. Conhecemos os conflitos que esse fenômeno gerou e que o problema está longe de ser superado, como mostra atualmente o caso da Polônia.

Atualmente, e há muito, a União Soviética perdeu a sua força de irradiação revolucionária. Em conseqüência da sua política interna e externa despertou inclusive hostilidade em vastos setores da esquerda mundial, que negam nela qualquer cará- ter socialista (em outros setores da “esquerda” essa hostilidade não passa de um anti-comunismo velado por uma fraseologia radical). Como revolucionários marxistas temos de evitar julgamentos emocionais e simplistas. Não podemos nos colocar no ponto de vista de querer rejeitar uma revolução porque não gostamos da forma que tomou. Não podemos querer elaborar alternativas para fatos históricos. Disso, a própria história terá que se encarregar. A revolução mundial começou em 1917 em Petrogrado e, se ela tomou rumos não previstos pela geração que a fez, nem por isso deixou de ser um fator que mudou a face do globo. E é justamente por isso, pelo fato de o socialismo ter ultrapassado o estágio da propaganda e ter-se materializado em condições concretas, que perdeu a sua imagem imaculada para tomar formas históricas determinadas.

Sob a influência direta da Revolução de Outubro, criou-se um campo socialista que, apesar das suas contradições internas, liquidou o sistema capitalista nos seus domínios e que constitui uma ameaça permanente para o capitalismo e o imperialismo no resto do mundo. Assim como se formou, sob a influência direta e o exemplo da liderança soviética é uma criação com uma cabeça de duas faces. A própria URSS não segue mais uma política de fomentar revoluções no mundo capitalista. Isso os PC’s de orientação soviética demonstram diariamente. Mas, onde revoluções surgem de força própria e criam um fato consumado, a URSS é obrigada a apoiar e sustentá-las. Temos os exemplos de Cuba e Etiópia. São os interesses vitais da União Soviética que a impelem a apoiar a expansão do campo socialista. Também a burocracia não pode ignorar que a vitória definitiva do socialismo no mundo só pode se dar em escala mundial. O intercâmbio comercial com o mundo capitalista não pode substituir a divisão de trabalho socialista internacional. Nesse sentido, a URSS representa um aliado contra o imperialismo, principalmente no campo militar.

Se nós dissemos que a democracia socialista necessita de uma base material, deixada pela sociedade anterior, tocamos num assunto que nos diz particularmente respeito. O que para a Rússia era o atraso e as tradições semi-bárbaras, para nós é o subdesenvolvimento e as estruturas herdadas do passado colonial. Isso quer dizer que a revolução socialista no Brasil estaria condenada de antemão a sofrer degenerescências? Bem, não somos tão pessimistas.

Objetivamente, nenhuma nova revolução, e isso inclui a nossa, se dará em condições tão desfavoráveis como se deu a russa. Nenhuma nova revolução ficará mais isolada no mundo capitalista, pois hoje existe um campo socialista que, direta ou indiretamente, serve como escudo e apoio. Nenhuma nova revolução, inclusive a nossa, estará sob a pressão de precisar industrializar em tempo tão curto e exigir sacrifícios materiais tão grandes, como foi o caso da União Soviética nos anos 20 e 30, sabendo que tinha pouco tempo até enfrentar novamente a agressão imperialista.

Isso, porém, só é o pano de fundo. Especificamente, no que diz respeito ao grau de desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira, já está incomparavelmente superior ao existente na Rússia Czarista. O desenvolvimento brasileiro na indústria e a grandeza numérica do nosso proletariado são mais favoráveis do que tinham sido no reino dos Czares, na véspera da sua derrubada. No momento da Revolução de Outubro, 80% da população viviam ainda no campo. No nosso caso, a população rural não ultrapassa 35%.

No que diz respeito ao campo, não lidamos com o tipo de camponês europeu, individualista. Entre nós, formou-se um proletariado rural, direta ou indiretamente assalariado, para o qual a propriedade individual da terra não terá o peso que teve na Rússia pós-revolucionária. Neste terreno, temos a aprender mais com a revolução cubana do que com a russa.

O nosso proletariado não atingiu ainda o grau de disposição de luta revolucionária que caracterizou o russo sob o czarismo. O caminho da formação da classe operária no Brasil indica outras características. O proletariado brasileiro já dispõe de certa estrutura sindical que, embora atrelada, se tornou um fator social no país, que tem de ser levado em conta pela classe dominante. As lutas coletivas de massas dos últimos anos já mostraram a tendência para o rompimento das cadeias impostas. E isso indica também a importância que esse futuro movimento sindical livre terá para a formação política da classe. Tudo dependerá evidentemente do desenrolar das lutas e do grau de iniciativa e de participação das massas proletárias nelas. São esses os fatores que formam a classe, que desenvolvem a sua experiência coletiva e a sua capacidade de autogestão. São esses os fatores que possibilitam superar a situação na qual as vanguardas, formadas principalmente por elementos vindos da classe média, procuram falar pela classe operária.

É desse desenvolvimento do proletariado brasileiro que dependerá, em última instância, o nível da futura democracia socialista. Não há dúvidas de que a revolução socialista brasileira terá que lidar com a herança do atraso em que a classe dominante nativa e o imperialismo deixarão o país. Não há dúvida também que será preciso de mais de uma geração para levar o seu povo, principalmente do interior, a um nível cultural e técnico que garanta o pleno desenvolvimento de uma democracia socialista, que leve ao definhamento do Estado e, com isso, ao definhamento de qualquer democracia. Mas limitações impostas por condições objetivas ainda não significam degenerescência. Nem o socialismo soviético estava automaticamente condenado à degenerescência. Esta, no caso russo, foi produto de fatores históricos concretos, que procuramos caracterizar.

Finalmente, no nosso caso, há o fator da consciência da problemática, do aproveitamento de uma experiência. “Liberdade é o conhecimento da necessidade”, já disse Hegel, no que foi apoiado reiteradamente por Engels. E esse conhecimento é um fator que evita que os próprios revolucionários se tornem vítimas das forças sociais cegas. E esse conhecimento, essas experiências, têm que ser transmitidas, não só a uma elite, mas à própria classe na medida em que o nível de luta o permita.

Por isso, o atual nível de luta, ainda predominantemente econômico e incipiente do ponto de vista da atividade do nosso proletariado, não nos deve fazer perder de vista os objetivos finais. Foi isso que sempre distinguiu revolucionários de reformistas, mesmo quando se encontravam na mesma trincheira. Por isso, também, essa discussão para nós não é “abstrata”, não é privilégio de “teóricos” que “não têm nada a fazer”. Ela faz parte da formação de comunistas brasileiros, que saibam aplicar a experiência do marxismo vivo à realidade do seu país.

Ernesto Martins

(Escrito por Erico Sachs em 1981, quando foi divulgado em edição mimeografada pela Organização Política Operária. Incluído posteriormente no livro Qual a Herança da Revolução Russa? e Outros Textos, SEGRAC, Belo Horizonte, 1998 e no livro biográfico Érico Sachs / Ernesto Martins: um militante revolucionário entre a Europa e o Brasil, (CVM RJ-2017).

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