Qual é a herança da Revolução Russa ?

O papel de Stalin

Stalin, sem dúvidas, foi o líder mais pragmático que a revolução russa produziu. Intelectualmente medíocre, um dos mais “russos” dos dirigentes, era provavelmente o menos influenciado pelo marxismo clássico, ocidental, e essa fraqueza se tornaria sua força nas condições peculiares da construção socialista na Rússia pós-revolucionária. A lenda do sinistro georgiano que planejava a sua ascensão a ditador inconteste da primeira revolução proletária vitoriosa desde o início… isso continua lenda. A personalidade de Stalin, não há dúvidas, marcou profundamente o desenvolvimento e a estrutura da sociedade soviética, até o ponto em que uma personalidade pode influir na História. Mas é preciso ver a figura histórica como produto da História. Stalin não criou a burocracia, nem mesmo a atribuiu o papel que ela teve na Rússia Soviética. Ele foi antes produto e chegou a se tornar prisioneiro da máquina burocrática. Mas, antes de tudo, pelo seu caráter e formação, se prestou melhor para responder às necessidades da realidade soviética naquele período de isolamento do que os seus adversários nas lutas de facções.

O nome de Stalin está estreitamente ligado à chamada “teoria de socialismo num só país”, embora Bukharin apoiasse totalmente aquela fórmula e não faltem autores que atribuíram a este a paternidade. Para nós, isto há de ser um problema secundário. O que importa é o papel que a fórmula desempenhou.

Evidentemente, não se trata de uma teoria. Tratava-se, antes de tudo, de uma palavra-de-ordem, de uma perspectiva apresentada aos trabalhadores soviéticos, numa fase em que as esperanças de uma revolução no Ocidente tiveram de ser congeladas. A única possibilidade real era de prosseguir na construção socialista por força própria, enquanto não mudava a situação internacional. Hoje, visto em retrospectiva, é preciso reconhecer que a palavra-de-ordem teve um papel decisivo, que mobilizou uma geração de trabalhadores soviéticos para um esforço sobre-humano, suportando os sacrifícios de um nível de vida baixíssimo, para transformar um dos países mais atrasados da Europa em potência industrial. Quando foi lançada a palavra-de-ordem, ainda não tinha o conteúdo que mais tarde tomou. No início, a ênfase estava em “socialismo num só país”. Posteriormente, na fase do stalinismo propriamente dito, quando predominaram as considerações de política externa, o acento mudou para “socialismo num só país”. No início, também não se tratou de criar uma sociedade socialista acabada num só país (ou até do comunismo, como Stalin afirmara em 1937). Partiu-se simplesmente da premissa de que o proletariado no poder, mesmo isolado num só país, não poderia deixar de construir o socialismo. Eis a formulação original de Stalin:

Para acabar com o poder da burguesia e estabelecer o poder do proletariado num só país, isso não significa ter chegado à vitória completa do socialismo (…) Para chegar a vitória final do socialismo, para organizar a produção socialista, os esforços de um só país são insuficientes, particularmente de um país camponês como a Rússia; para isso se requer os esforços dos proletários de vários países avançados.

Stalin levou a herança leninista da NEP até às últimas conseqüências compatíveis com o sistema soviético. Quando chegou a ter influência decisiva sobre a política econômica, em 1922 aproximadamente, a NEP mal tinha dado os primeiros passos. Em 1923, a produção industrial atingira 25% do nível de 1913 e isso já foi considerado um sucesso, pois duplicara no prazo de dois anos. Em 1926/1927, o nível de antes da guerra foi atingido. Isso explica, em grande parte, a derrota das oposições.

Completada a fase da reconstrução, e criada dessa maneira a infra-estrutura necessária, colocou-se na prática o problema da superação da NEP e da criação de uma economia planificada. Isso supunha a supressão do setor privado na economia, na cidade e no campo. Lênin já havia assinalado que, com 20 milhões de unidades agrícolas particulares, não era possível planificar a economia soviética. Sokolnikov, atuante no setor de desenvolvimento econômico, posteriormente constatou que a “indústria estava amarrada pelas condições reinantes na economia camponesa”

A coletivização das terras tornou-se condição indispensável para o salto qualitativo em direção de uma economia socialista. Nesse intuito, Stalin encontrou uma nova oposição, a de Bukharin, que apoiara a sua política até então. Bukharin, como o próprio Stalin e, da mesma forma, Trotsky, sabiam muito bem que o futuro da República Soviética dependia da industrialização. Mas, se para Trotsky a industrialização era um princípio que independia das condições concretas, para Bukharin a industrialização intensiva naquele momento punha em perigo as relações entre campo e cidade, entre o operário e o camponês. Propunha como alternativa um “socialismo a passo de lesma”, que não pusesse em risco a aliança operário-camponesa, como havia sido concebida durante a NEP.

Acontece que nessa altura, 1928/1929, as relações entre cidade e campo tinham atingido novamente um ponto crítico, que precipitou os acontecimentos. A autoconfiança dos camponeses tinham crescido com as concessões obtidas no passado. O poder e a influência do kulak havia aumentado. O campo se negava a vender as quantidades necessárias de cereais na base dos preços estabelecidos e ameaçava novamente de fome as cidades.

Para vencer o ponto morto, Stalin propôs originalmente a expropriação dos kulaks (que lideravam a resistência), transformando as suas terras em centros de irradia- ção para uma campanha intensiva de coletivização. Bukharin receava que essa medida não ia se limitar na prática aos kulaks e acabaria por atingir igualmente os camponeses médios, que dispunham de grosso excedente de cereais necessários para a alimentação das cidades. Stalin afirmava que o governo soviético dispunha de recursos para equipar e fornecer créditos para a transformação de 8% das terras cultiváveis em colkoses (cooperativas agrícolas socialistas). Pelos cálculos de Bukharin, os recursos mal chegariam a 6%.

Fato é que, naquela altura dos acontecimentos, a NEP tinha dado o que podia dar para o desenvolvimento econômico e qualquer futuro progresso em direção ao socialismo exigia a sua superação que, por sua vez, pressupunha medidas radicais. Stalin estava preparado para isso, tendo sido o único do velho Politiburo disposto a arcar com as conseqüências em toda sua extensão. Era o único entre essa geração de líderes que não tinha escrúpulos de aplicar os métodos indicados para uma solução rápida do problema.

Silenciada a oposição da direita, lançou-se a campanha da coletivização da agricultura. Foi uma coletivização forçada, e outra não teria sido possível na escala em que foi realizada. O Estado Soviético não tinha recursos para demonstrar aos camponeses a superioridade da agricultura coletivizada. Não houve meias-medidas. Em quatro anos, o campo soviético consistia de colkoses e sovkoses (fazendas estatais). Visto em retrospectiva, surge a impressão de que Stalin estava disposto a quebrar, de uma vez por todas, a resistência do camponês individualista. Os métodos utilizados já antecipavam o Stalin de épocas posteriores. Milhões de camponeses, que resistiam à coletivização, foram mandados para a Sibéria. Planos pré- estabelecidos coletivizaram região por região, com a ajuda de tropas de segurança. O preço foi caro: quase a metade da criação de gado, porcos e cavalos do país foi perdida. Os camponeses abatiam os animais na véspera da entrada nos colkoses.

Hoje, pode-se especular se haveria alternativas a essa política e até que ponto seriam alternativas. Mas isso não passa de especulação. Para nós é importante ter clareza que essa experiência soviética não pode ser generalizada como um princípio para a construção socialista. Outras revoluções, posteriores e que se deram em condições mais favoráveis, seguiram caminhos diferentes para levar o socialismo no campo. Nosso problema aqui é levar em conta as condições particulares da construção socialista na União Soviética. Visto desse ângulo, a história confirmou a justeza da política de Stalin, no final da década de 20 e início da de 30. A coletivização permitiu os Planos Quinquenais e a industrialização. Dez anos mais tarde, a União Soviética estava em condições de enfrentar e derrotar os exércitos do imperialismo mais agressivo e mais poderoso da Europa, o da Alemanha nazista.

Durante os debates dos anos 20, Preobrajenski, um dos teóricos da oposição trotskysta, defendera e fundamentara a teoria da “acumulação socialista primitiva”. Um dos esteios dessa teoria era a afirmação de que a classe operária soviética tinha que explorar o camponês para criar uma industrialização em bases socialistas. Significava que tinha de se apropriar do excedente da produção agrícola, sem poder fornecer valores correspondentes em troca. A maioria do Partido rejeitava essa teoria, considerada inapropriada numa fase em que se procurava contentar o camponês. O próprio Trotsky se distanciava dela, pois não queria fornecer razões para a acusação de “subestimar o papel do camponês”. Mas, agora que a questão da acumulação socialista estava colocada, Stalin pode implantá-la, independentemente de justificações teóricas. Da mesma forma como pôs em prática os conceitos salariais manifestados por Trotsky em 1922 e a estatização dos sindicatos, bem como a militarização de fato do trabalho.

Será justo, portanto, falar – como o próprio Trotsky afirmara – que Stalin teria roubado o programa da oposição? Acreditamos que tal carece de fundamento. Em linhas gerais, toda a liderança bolchevique conhecia as premissas da construção socialista. O problema – como já mencionamos – era do quando e do como.

A começar pelo problema da planificação da economia. Levantado por Trotsky, em 1920, passou-se quase uma década para que as premissas fossem criadas. O mesmo tinha-se dado com a industrialização de base, isto é, a concentração dos esforços na criação de uma indústria pesada. Os recursos de investimentos da NEP eram limitados, e sua utilização precoce na indústria pesada teria privado o camponês dos produtos de consumo que ele esperava em troca dos produtos do seu trabalho. E sem esses fornecimentos agrícolas, a produção industrial teria desmoronado. Era um círculo vicioso, que só podia ser rompido por meios extra-econômicos. Mas mesmo essas medidas extra-econômicas só podiam ser tomadas depois de ser reconstruída a economia destruída pela guerra civil.

Por outro lado, do ponto de vista econômico, a coletivização completou o caráter socialista da revolução. Dali em diante a acumulação podia se dar em bases socialistas, eliminando a economia de mercado. E não foi gratuitamente que, quando esse ponto foi atingido, os antigos porta-vozes da Oposição abandonaram Trotsky. Preobrajenski, Piatakov e Radek – só para citar os mais conhecidos – se colocaram à disposição de Stalin e da maioria do Partido. Isso não pode ser explicado pelas medidas de coação exercidas contra os oposicionistas. Velhos revolucionários, estavam habituados a enfrentar perseguições. O que pesou foi o fato de que estavam sendo postas em prática medidas que eles sempre haviam pleiteado teoricamente, mas tinham pleiteado como princípios, sem levar em conta as condições concretas. Como disse Preobrajenski mais tarde: “A coletivização é o ponto essencial. Será que a previ? Não, não a previ.” (E. H. Carr – “O Interregno”)

Como resultado dessa nova situação, houve a desintegração completa das oposições surgidas durante a NEP. Zinoviev e Kamenev já haviam entregue os pontos. A Oposição Trotskista, apesar de resistir mais tempo, no final do 1° Plano Quinquenal, em 1934, tinha deixado de existir de forma organizada. Daí em diante, o trotskismo na URSS só serviria como bode expiatório de Stalin, em outra fase do stalinismo.

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