Qual é a herança da Revolução Russa ?

por Érico Sachs (Ernesto Martins)

Em comemoração aos 100 anos da Revolução Russa, o Centro Victor Meyer publica um dos textos mais relevantes de Érico Sachs, o Ernesto Martins sobre a revolução socialista.  Embora tenha sido escrito em 1981, a análise de Érico Sachs se mantém atual.
O texto pode ser lido também em PDF clicando aqui.

 

“Do que se trata é de uma sociedade comunista não como se desenvolveu sobre as bases que lhe são próprias, mas, pelo contrário, tal como acaba de sair da sociedade capitalista; uma sociedade que, por conseqüência, em todos os aspectos, econômico, moral, intelectual, apresenta ainda os estigmas da antiga sociedade que a engendrou.”
(…)
“Mas esses defeitos são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como acaba de sair da sociedade capitalista, após um longo e doloroso parto. O direito nunca pode ser mais elevado que o estado econômico da sociedade e o grau de civilização que lhe corresponde.”
(K. Marx – “Crítica ao Programa de Gotha”. Portucalense Editora).

 

O que representa hoje a União Soviética para o proletariado mundial? Esta pergunta continua a preocupar as vanguardas teóricas e de luta em quase todos os países, tanto nos que já se livraram do domínio capitalista, como daqueles que ainda aspiram essa meta. As respostas variam de “socialismo” a “capitalismo de Estado”, incluindo até mesmo “potência imperialista igual às outras”. Mas aí se trata de definições de extremos. Entre elas há uma série de nuances.

A União Soviética de hoje, certamente, não corresponde à imagem que os revolucionários marxistas de todas as gerações fizeram de uma sociedade socialista. Trata-se de um sistema burocrático, com uma hierarquia levada ao excesso, com uma carência de democracia socialista em todos os níveis, sistema que deixa pouca ou nenhuma margem para a iniciativa e autogestão das massas trabalhadoras.

Não há dúvidas também que a União Soviética passou por profundas mudanças desde os dias de Lênin. Mas, o que significam essas mudanças, qualitativamente?

A Revolução Russa e a tomada do poder pelos bolcheviques representou uma das transformações mais radicais e mais profundas da história da humanidade. Estudando essa revolução, inclusive a sua fase pós-revolucionária, verifica-se que ela passou por uma série de estágios diferentes, mas nunca sofreu uma contrarrevolução. Surgem dificuldades quando se pretende provar o contrário, de um ponto de vista marxista. Trotsky, em diversas versões, afirmara que a Revolução Russa sofrera um “terminador”. Mas o terminador – paralelo tirado da Revolução Francesa e que marca o fim do domínio dos jacobinos – implicou na passagem do poder da pequena-burguesia para as mãos da burguesia propriamente dita, isto é, significou uma mudança do regime de classes. E quem teria realizado esse “terminador” na União Soviética? A burocracia? Neste caso, a burocracia seria uma classe – afirmação que o próprio Trotsky sempre rejeitou. Essa contradição no seu esquema interpretativo do desenvolvimento pós-revolucionário da URSS, ele nunca chegou a superar.

Mais frágil ainda é o esquema dos maoístas. Segundo eles, houve uma contrarrevolução por ocasião da morte de Stalin. A burocracia representa a “nova classe”, que tomou o poder e restaurou o capitalismo na União Soviética. Trata-se, aí, de afirmações puramente polêmicas, sem nenhuma tentativa analítica.

Todos esses esquemas explicativos (há outros) não nos podem satisfazer e não satisfarão a ninguém habituado a raciocinar com categorias marxistas. Já salientamos que não encontramos na história da URSS nenhum momento de contra-revolução, que tenha alterado as bases de classes da sociedade. Isso poderá parecer estranho, em vista das críticas ao sistema soviético atual que esboçamos no início. Mas, para compreender o fenômeno da União Soviética de hoje, não se pode partir de esquemas preconcebidos de revolução e de socialismo (esquemas que, na maioria das vezes, em nenhum lugar foram comprovados). Para compreender o desenrolar da Revolução Russa é preciso, antes de tudo, estudar as suas particularidades, as condições concretas nas quais se realizou. Tentaremos esboçá-las em seguida.

O ponto de partida

Ao contrário do que esperavam os pais do socialismo científico e toda uma geração de revolucionários marxistas, a primeira revolução proletária vitoriosa não se deu num dos países industriais mais avançados do Velho Mundo, e sim num dos mais atrasados, a Rússia. Lênin chegou a explicar esse fato com a “teoria do elo mais fraco”, mas antes de se tornar uma teoria, tratava-se de uma justificativa “a posteriori” de um evento histórico.

Para Lênin, a Revolução Russa seria a espoleta da revolução no Ocidente. A insurreição do proletariado russo seria imitada a curto prazo pela classe operária da Europa Central e Ocidental, onde se formava uma crise revolucionária, depois de quatro anos de guerra interimperialista. Era esse argumento que ajudava Lênin a convencer frações reticentes do próprio Partido Bolchevique a passar para a revolução proletária. Quando Lênin discutia com Kamenev sobre as “Teses de Abril”, as primeiras greves dos metalúrgicos alemães, ainda sob o estado de guerra, pareciam confirmar os seus argumentos perante as bases. Em seguida, quando a data da insurreição já estava sendo discutida no Comitê Central, a revolta da Marinha de Guerra alemã reforçava os argumentos de Lênin.

Seria pura especulação querer discutir se Lênin teria se decidido pela insurreição caso tivesse sabido de antemão que a revolução proletária na Rússia ficaria isolada. O que se pode supor, pelos debates travados então entre os bolcheviques, é que ele teria tido muito mais dificuldades para convencer seus companheiros. Em todo caso, pode-se concluir que Lênin não estava despreparado para a eventualidade de um isolamento da revolução. Mais de uma vez, usou nos seus discursos a ressalva “se o proletariado ficar sozinho…”. Estava melhor preparado do que Trotsky, que, desde 1905, na elaboração de sua teoria da revolução permanente, declara: “sem o apoio estatal direto do proletariado europeu, a classe operária da Rússia não poderia continuar no poder e transformar o seu domínio temporário numa ditadura está- vel e prolongada…”. (Citado por Isaac Deutscher em “O Profeta Armado”). Na véspera da Insurreição de Outubro, Trotsky reafirmou essa convicção, mas tanto ele como Lênin estavam convencidos de que o proletariado europeu não deixaria a revolução russa sozinha.

Por trás dessas preocupações e elaborações teóricas havia um problema material bastante convincente: a classe operária russa, uma ilha num mar de população camponesa, seria capaz, por sua própria força, de manter o poder conquistado e transformar a sociedade em bases socialistas?

Já dissemos que a Rússia era tida como um dos países mais atrasados da Europa. Isso, em outras palavras, quer dizer um dos países de capitalismo menos desenvolvidos, com uma sociedade burguesa mais incipiente. Mas também os revolucioná- rios russos, como todos os marxistas, partiram da premissa de que era o capitalismo, com a sua concentração de capitais, divisão do trabalho, tecnologia, nível de distribuição e de comunicação, que criava as condições para a construção de uma sociedade socialista.

Esse desenvolvimento estava atrasado no reino dos Czares. E havia agravantes. A própria história e as tradições russas se desenvolveram de uma maneira diferente das da Europa Ocidental. A história russa não conhecia a luta entre a cidade e o campo, não conhecia a luta da burguesia urbana, dos artesãos e da plebe contra a nobreza feudal, que marca a história européia durante séculos e que criou uma consciência burguesa, culminando com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Inglesa.

A Rússia tinha sido separada da Europa por quatro séculos de dominação mongol. Tinha conhecido, desta maneira, o regime do despotismo oriental, que deixou raí- zes profundas, mesmo depois da independência. Os Czares, que reunificaram a Rússia depois da expulsão dos conquistadores, herdaram uma máquina administrativa e burocrática criada durante o domínio mongol, e se empenharam imediatamente em sufocar o desenvolvimento autônomo das poucas cidades independentes que mantinham relações com a Liga Hanseática do norte da Europa.

Um reflexo e um instrumento desse desenvolvimento era a Igreja Russa. O que dominava era a tradição de Bisâncio. A Igreja Ortodoxa Russa não foi tocada pelas correntes protestantes ou, em seguida, pelo aburguesamento da própria Igreja Católica.

A industrialização russa era recente. Iniciada e realizada principalmente pelo Estado, em conseqüência das derrotas sofridas na Guerra da Criméia, e visando uma “modernização” da sociedade que permitisse enfrentar o poderio militar do Ocidente. Que o resultado desse esforço foi insuficiente, mostraram duas guerras; a de 1904 contra o Japão e a Guerra Mundial de 1914.

Na hora da revolução, em 1917, 80% da população ainda vivia no campo. Num país de 140 milhões de habitantes, os camponeses representavam uma massa cinzenta, simbolizada pelo ‘mujique’. Alheio à política e à organização social, cultivava a terra nos curtos meses de verão à base de uma agricultura arcaica. No longo inverno russo, dormia perto do fogão da cozinha, como encarnação da inércia. Hoje, já se esqueceu o que era uma aldeia russa antes da Revolução. Para se lembrar, bastaria voltar aos romances de um Tolstoi. Mas esse camponês, por outro lado, se distinguia por uma sede insaciável de terra. Desta terra que já havia sido das suas comunidades, do “mir”, e que os grandes proprietários tinham se apossado com o apoio dos governos czaristas. O futuro da Rússia dependia, nas palavras de Lênin, de quem iria dar a terra aos camponeses: se a burguesia ou o proletariado.

A classe operária russa era jovem e pequena. As estimativas, no momento da revolução, não ultrapassavam de três milhões de operários industriais, mas os dados mais freqüentemente citados referem-se a dois milhões e meio (Zinoviev, mais tarde, fala em seis e oito milhões, mas aí inclui camadas marginalizadas e ‘lumpens’, com o intuito de “reforçar” o caráter proletário da Revolução). Era um proletariado excepcional, rebelde, com capacidade de luta e de sacrifício. Uma das vantagens para a sua luta era o alto grau de concentração, como em Petrogrado, onde havia fábricas com 40.000 operários (Fábrica Putilov). Conquistara a liderança na luta política da sociedade russa. A “hegemonia do proletariado” não era mais um postulado teórico e sim um fato que ia possibilitar a Revolução de Outubro. Ao mesmo tempo, ainda estava muito ligado ao campo; em grande parte tratava-se da primeira geração de operários industriais. Nos anos de desemprego e de miséria, também depois da Revolução, muitos operários, mesmo qualificados, voltavam às suas aldeias, onde um pedaço de terra permitia a subsistência.

O proletariado russo, um dos mais revolucionários da sua época, todavia não tinha tido nenhuma experiência de autogestão. Praticamente não tinha conhecido nenhuma fase de vida democrático-burguesa (com exceção de fevereiro a outubro de 1917). Não tinha desfrutado daquelas “condições mais favoráveis da luta pelo socialismo”, de que falava Engels. Essa falta de experiência democrática ia dificultá-lo em seguida no manejo dos instrumentos da democracia socialista. Concomitantemente, não conhecia sindicatos, se abstrairmos uma pequena minoria, os ferroviários. Isso, de certo modo, facilitou a luta revolucionária mas, da mesma maneira, tornou-se um obstáculo após a Revolução, quando o proletariado tornou-se classe dominante.

Clara Zetkin, a dirigente comunista alemã, um dia perguntou a Lênin se a revolução não teria sido facilitada pelo fato de a grande maioria do povo russo ter sido analfabeta. Depois de ligeira hesitação, Lênin concordou, mas acrescentou que era muito difícil construir o socialismo com analfabetos.

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