Qual é a herança da Revolução Russa ?

A herança mundial da Revolução de Outubro

O isolamento em que a União Soviética vivia nos primeiros 25 anos da sua existência – como a única ditadura do proletariado vitoriosa, cercada e bloqueada pelo mundo capitalista – marcou não só as suas próprias estruturas sociais e políticas, mas deixou igualmente profundos traços no movimento operário internacional. Mormente porque a Revolução Russa se sentiu desde o início como vanguarda da revolução mundial e, até certo ponto, preencheu esse papel.

Acontece que a política externa de um país é sempre condicionada e, de algum modo, um prolongamento da sua situação interna. Isso diz respeito também a partidos, na medida em que têm uma política externa. A situação da URSS e do PCUS mudaram mais de uma vez em sua história.

O primeiro efeito da Revolução de Outubro, a curto e médio prazo, foi a divisão do movimento operário mundial, grosso modo, em reformistas e revolucionários, social-democratas e comunistas. Estes, formando-se em partidos independentes e reunindo-se numa Internacional, na maioria das vezes, não dispunham de experiência e tradição de luta próprias. Iam a Moscou para aprender com os revolucionários russos. Durante os primeiros quatro Congressos da Internacional Comunista, os leninistas, a começar pelo próprio Lênin, procuravam discernir, nos debates com os companheiros de outros países, quais eram os traços da Revolução Russa que tinham validade geral para a luta de classes em escala internacional e quais representavam particularidades russas. Tratava-se de um processo de aprendizagem do comunismo mundial, que foi interrompido com a morte de Lênin e o início das lutas de facções.

O próprio Lênin, na sua última intervenção no IV Congresso da IC, produziu um quase balanço, declarando:

Em 1921, no III Congresso, votamos uma resolução sobre a estrutura orgânica dos partidos comunistas, assim como os métodos e o conteúdo do seu trabalho. O texto é excelente, mas essencialmente russo, ou quase, na medida em que foi tirado das condições de vida russas. Eis o seu lado bom, mas também o seu lado mau. Seu lado mau porque estou convencido de que quase nenhum estrangeiro o pode ler; antes de afirmar isto reli essa resolução: primeiro, é demasiadamente comprida (…) segundo, mesmo se a lessem ninguém a compreenderia, precisamente por ser demasiadamente russa. Não porque fosse escrita em russo – fez-se um esforço para a traduzir para todas as línguas – mas porque está inteiramente impregnada do espírito russo. E terceiro, se algum estrangeiro excepcionalmente a compreender, não a pode aplicar (…). Tudo o que se disse na resolução permanece letra morta. Ora, a menos que compreendamos esse fato, não podemos avançar. Creio que o mais importante para todos nós, tanto russos como camaradas estrangeiros, é que após cinco anos de revolução russa, é nosso dever nos instruir (…). Estou persuadido de que devemos dizer, a esse respeito, não só aos russos, mas também aos camaradas estrangeiros, que o mais importante no período que se segue é o estudo. Nós estudamos no sentido geral do termo. Eles, porém, devem estudar no sentido particular, para compreender realmente a organização, a estrutura, o método e o conteúdo da ação revolucionária.

É um Lênin quase desconhecido para a geração de revolucionários posterior, um Lênin que exige que se estude a experiência da Revolução Russa, mas que se estude também cada situação particular, para poder aplicar a experiência. “Nós estudamos no sentido geral do termo. Eles (os camaradas estrangeiros) porém, devem estudar num sentido particular…”. Não basta querer imitar a experiência russa. Nem stalinistas, nem trotskistas fizeram questão de divulgar este Lênin.

Na URSS, os epígonos estavam absorvidos pela luta interna e procuravam utilizar-se das seções estrangeiras da IC para fortalecer as suas posições. Conseguiram isso em virtude da irradiação que o Estado Operário e Camponês exercia sobre os revolucionários de todo o mundo e, dessa maneira, não foi difícil para a maioria do partido soviético dominar a IC – que continuava a falar russo.

Nesta altura, já podemos falar de uma segunda fase na história da Internacional. Oficialmente, ela se deu sob a consigna da “bolchevização” dos PC’s estrangeiros. Na prática implicava na intervenção do Centro, em Moscou, nos partidos estrangeiros mais importantes, para impor direções de absoluta fidelidade à facção dominante na União Soviética. Esta fase não só interrompeu o processo da formação de PC’s capazes de aplicar a experiência da revolução russa de maneira criadora nas lutas de classes nos seus países. Transferiu para a Internacional a luta interna e a contínua burocratização, que estavam em progresso na sociedade soviética. O que caracterizava doravante a IC era a absoluta mediocridade teórica e o aventureirismo de esquerda (“teoria do social-fascismo”), que tivera seu desfecho com a vitória do fascismo na Alemanha.

A terceira fase na vida da IC inaugurou-se aproximadamente em 1934/1935. Era a da submissão da IC às necessidades da política externa do Estado Soviético. Dá-se sob o signo das “Frentes Populares”, na qual os PC’s apoiavam as chamadas “burguesias democráticas e progressistas” contra a ameaça fascista. Não é preciso salientar aqui que essa política se deu pelo preço do abandono completo da herança leninista. Ela coincide cronologicamente com a ditadura pessoal de Stalin. “Já que os PC’s não sabem fazer a revolução, que nos ajudem pelo menos” – teria dito o Secretário Geral, conforme mais de uma testemunha. Tratava-se praticamente de uma liquidação da Internacional como instrumento da revolução internacional. Até a dissolução formal foi só um passo.

Evidentemente, as ligações dos PC’s com o centro de Moscou não pararam com a dissolução, mas continuaram de maneira bilateral. O fato novo foi o expansionismo soviético durante e em conseqüência da Segunda Guerra Mundial. Nas regiões e países onde o Exército Vermelho avançava, foi obrigado a expropriar as velhas classes dominantes e exportar o sistema socialista. Foram “revoluções” feitas de cima para baixo, nas quais pouca ou nenhuma iniciativa foi deixada para as classes operárias nacionais. Pois o que foi exportado não era só o socialismo como também o sistema burocrático à semelhança do senhor soviético. As chamadas “Democracias Populares” – assim chamadas para não assustar os aliados ocidentais – nasceram dessa maneira com um sistema burocrático, que a URSS tinha desenvolvido durante um quarto de século de isolamento. Foi essa a única maneira como Stalin concebia a expansão socialista. Mas, mesmo em tempo de vida de Stalin, houve revoluções genuínas, de força própria, como a iugoslava e, posteriormente, a chinesa. Todas essas revoluções assumiram um caráter socialista contra os pareceres de Stalin, que tinha de conformar-se com os fatos consumados. As contradições inerentes ao sistema stalinista levaram à cisão do bloco oriental, com a rebelião da Iugoslávia e, posteriormente, da China. Tratava-se, entretanto, de rebeliões de burocracias nacionais contra o domínio da soviética e isso, de antemão, não determinou a mudança dos métodos utilizados no confronto.

A política externa de Stalin, principalmente depois da guerra, fracassou e o preço pago depois desse fracasso custou caro à União Soviética. Implicou na reconstrução do capitalismo na Europa Ocidental e trouxe consigo o espectro de uma Terceira Guerra Mundial. Custou caro também ao proletariado mundial, pois o não aproveitamento das situações revolucionárias na Europa Ocidental (Alemanha, França e Itália) e a colaboração dos PC’s nos governos burgueses daqueles países neutralizaram a ação das classes operárias e permitiu o ressurgimento agressivo de uma força inter-imperialista em escala mundial. Uma Europa socialista, com seu potencial econômico e político, aliado à União Soviética, teria enterrado para sempre as aspirações de domínio mundial do imperialismo americano. Desse ponto de vista, a política externa stalinista tinha um lado puramente contra-revolucionário.

O fracasso da política externa, mais o conservadorismo que o ditador revelara até os últimos anos da sua vida, levou à já mencionada “desestalinização”. Da maneira como Stalin foi apresentado em público por Kruchtchev, os efeitos para o proletariado mundial foram duvidosos. Kruchtchev, evidentemente, não soube explicar o papel histórico de Stalin (sem minar as suas próprias posições), e as suas “revelações”, da maneira como foram apresentadas e veiculadas, só contribuíram para desmoralizar o movimento comunista internacional em sua totalidade.

No extremo oposto das facções soviéticas (embora só fora das fronteiras da URSS) encontra-se o trotskismo, que se apresenta não só como alternativa histórica ao stalinismo, mas também como único e legítimo herdeiro da Revolução de Outubro e da IC.

No que diz respeito à figura de Trotsky, como alternativa a Stalin, já tratamos do assunto. Restaria apreciar o seu papel nas lutas de classes em escala mundial – na medida em que liderou uma corrente internacional do comunismo.

Há muito corre, à boca pequena, entre os adeptos da Quarta Internacional e suas cisões, a versão de que nas lutas de facções no seio do PCUS Trotsky teria falhado e se revelado “ingênuo”. Seu verdadeiro valor e sua importância teria se revelado no exílio, como continuador das lutas revolucionárias dos bolcheviques, contra os efeitos desagregadores do stalinismo em escala mundial. O próprio Trotsky, de certo modo, reforçou essas opiniões, quando anotou no seu diário, escrito no exílio, na França:

Para ser bem claro, direi o seguinte. Se eu não estivesse, em 1917, em Petersburgo, a Revolução de Outubro teria acontecido do mesmo modo – condicionada pela presença e a direção de Lênin (…). Enquanto que o que eu faço agora é, na total significação da palavra, “insubstituível”. Não há nesta afirmação a menor vaidade. O desmoronamento das duas Internacionais trouxe consigo um problema, que nenhum dos chefes dessas Internacionais tem possibilidade de enfrentar. As particularidades do meu destino pessoal me colocaram diante desse problema, armado dos pés à cabeça com uma séria experiência. Oferecer um método revolucionário à nova geração, por cima das cabeças dos chefes da Segunda e da Terceira Internacional, é uma tarefa que não tem, afora minha pessoa, homem nenhum que a possa cumprir (Trotsky, “Diá- rio do Exílio”, Edições Populares – destaque do autor).

Em que consistia o papel “insubstituível” de Trotsky naquele momento?

Como coroação da sua atividade no exílio, Trotsky via a fundação da Quarta Internacional, que deveria continuar a obra da IC leninista. Mas, o que essa nova Internacional representava de fato? No momento da sua fundação só abrangia uma fra- ção da antiga Oposição da Esquerda Internacional, que já havia sofrido duas cisões maiores. A primeira, quando Trotsky queria obrigar todas as seções nacionais a seguir a política do “entrismo”, isto é, de entrada nos partidos da Segunda Internacional. Esta cisão foi liderada pelos espanhóis, por André Nin, que, em seguida, se juntaram ao Bloco Operário e Camponês da Catalunha para formar o POUM. A segunda cisão, maior, se dá justamente em torno do problema da fundação da Internacional e é liderada pelos italianos, que a acharam uma aventura. Quando a Internacional foi fundada, finalmente, e nisso Trotsky se mostrou intransigente, suas “seções nacionais” variavam entre 50 e 200 militantes por país. Apesar dos seus títulos, às vezes pomposos, nenhuma das seções podia ser considerada como um partido.

O próprio Trotsky justificou a fundação dessa internacional como o fato de a IC, na sua constituição, em 1919, ter sido igualmente fraca. Mas, em primeiro lugar, a comparação não é séria. A fraqueza da IC, que pelo menos dispunha do PC soviético, dos Espartaquistas alemães, etc. não pode ser comparada com a “fraqueza” da Quarta, composta de seitas. A Internacional trotskista, quando surgiu, não passava de mera caricatura da IC. E caricatura ela continuou, copiando em miniatura os órgãos e a estrutura da IC, como os seus Comitês Centrais, Politiburos, etc.

Em segundo lugar, a IC foi fundada numa situação revolucionária na Europa Ocidental, quando se tratava de aproveitar uma situação histórica, antes que ela se esgotasse. A Quarta Internacional foi fundada numa fase de franco descenso do movimento operário internacional. Sua história não é uma história de revoluções – nem sequer de tentativas de revoluções – mas de prosaicas sequências de cisões, tentativas de reunificações e de novas cisões, como um fiel reflexo da falta de perspectivas nas lutas de classes reais.

A tentativa de copiar a IC e de repetir a história não é casual. Representa a própria essência do trotskismo. Enquadrados na fórmula da “revolução permanente” – “teoria” pela qual Trotsky interpretou a Revolução Russa – os trotskistas pouco ou nada puderam contribuir de maneira criativa nas lutas de classes nos seus países, encarando-as estreitamente pelos padrões da Revolução Russa. Não é por acaso que tanto os trotskistas como os remanescentes do stalinismo no Brasil defendem no presente momento a convocação de uma Assembleia Constituinte.

O próprio Trotsky abriu caminho, em 1923, quando mediu os acontecimentos alemães pelos padrões do modelo russo. Em todas as suas polêmicas sobre os acontecimentos alemães, não há uma análise concreta que permita concluir que a situa- ção tenha estado madura para a tomada do poder pelos comunistas. Mas, a todas as objeções levantadas pelos revolucionários alemães, ele respondia: “Esses argumentos ouvimos também na véspera da Revolução de Outubro, na Rússia”.

Um papel análogo desempenhou em relação à Revolução Espanhola. Na Espanha, em 1936, ao contrário da Alemanha em 1923, houve realmente uma situação revolucionária, desencadeada pelo levante dos militares. O POUM representava naquele momento a força mais conseqüente no país, defendendo um programa de ação que poderia ser resumido em três pontos: formação de um Governo Operário, expropriação dos latifúndios e imediata independência para as colônias. Trotsky combatia o POUM (que ele considerava centrista) e o argumento que sempre voltava nas suas críticas era: “Em Petrogrado, em 1917, fizemos as coisas de maneira diferente.

A Revolução Espanhola, porém, não era igual à russa, nenhuma outra o foi e nenhuma futura será. Toda revolução exige uma atuação criadora da sua vanguarda, a adaptação crítica de experiências do passado a uma realidade concreta. Para essa obra o trotskismo não seria capaz sem negar a si mesmo, pois ele também não passa de um ângulo russo da interpretação da revolução mundial – embora de outra época que o stalinismo. Desse ponto de vista, não passam dos dois lados de uma mesma medalha.

De nossa parte, rejeitamos absolutamente a campanha de difamação stalinista contra a figura história de Trotsky, que culminou no seu assassinato no exílio mexicano. Rejeitamos igualmente qualquer outra tentativa de diminuir o papel de Trotsky, ao lado de Lênin, na Revolução e na Guerra Civil. Concordamos com Trotsky quando ele salienta que “a presença de Lênin”, em 1917, em Petersburgo, já garantiu a Revolução, mas isso não diminui o papel que ele mesmo desempenhou, embora as razões sejam diferentes das alegadas no “Diário”. A figura de Lênin era decisiva porque ele se empenhou a vida toda pela formação de um partido de revolucioná- rios, capaz de levar a classe operária à revolução. Trotsky nunca chegou a admitir isso.

Da mesma maneira, todavia, não vemos nenhum sentido de querer negar o papel de Stalin na fase de construção socialista na União Soviética e isso independe do seu desempenho político posterior. Para nós, tanto Trotsky como Stalin fazem parte do Panteon das lideranças que a Revolução Russa produziu em suas diversas fases, independentemente das simpatias ou antipatias despertadas pelas figuras históricas. Isso é uma premissa indispensável quando se trata de aproveitar as experiências de um processo revolucionário concreto.

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