Qual é a herança da Revolução Russa ?

O que representa a URSS hoje?

Quando se procura definir o caráter da União Soviética hoje, não se pode deixar de encarar o papel da burocracia, tal como o regime stalinista a deixou. As coisas evidentemente não se passaram de maneira tão simples como é descrita por certos autores (e o próprio Trotsky em certas polêmicas): antes de Stalin, democracia socialista; com Stalin, burocracia. Já mencionamos como Lênin enfrentou o problema. Ele não pretendia simplesmente abolir a burocracia. Isso teria sido irreal. Sua preocupação era o controle do aparelho burocrático pelo Partido e as organizações de massas.

Lênin tinha plena consciência da necessidade da burocracia e via nela, nas condições russas, parte integrante do sistema soviético. Por isso mesmo, falava de uma “ditadura do proletariado com deformações burocráticas”.

Aí se coloca o problema do que consistia a ditadura do proletariado na Rússia Sovi- ética e de que maneira esta foi exercida. Já que a classe operária russa mostrou limitações para o exercício direto do poder (a falência dos sovietes depois da tomada do poder), ela só podia agir indiretamente, por meio de um instrumento. Este instrumento era o Partido Comunista. Cabia a ele exercer a ditadura em nome do proletariado, decidir os rumos da Revolução (construção do socialismo) e se utilizar da burocracia para a execução dessas tarefas. Uma das primeiras conseqüências dessa situação, que Lênin não havia previsto, foi uma paulatina fusão entre o Estado e o Partido. Isto explica, em parte, porque as lutas de facções no seio do Partido tomaram um caráter tão agudo.

As lutas de facções, por sua vez, diminuíram com sua intensidade a democracia no seio do Partido, isto é, burocratizaram lentamente a vida partidária. Stalin, na fase da ditadura pessoal, liquidou definitivamente os restos da democracia interna, tornando o Partido uma parte da máquina burocrática, uma parte privilegiada, encarregada de assegurar o cumprimento das decisões políticas tomadas na cúpula. O Partido, em vez de controlar a burocracia, tornou-se parte do sistema burocrático. Atingido esse ponto de desenvolvimento, não se pode mais falar de “deformações”. Trata-se de uma degenerescência do sistema.

Então, a burocracia tomou conta da Ditadura do Proletariado? Até que ponto isso modificou o caráter do Estado Soviético?

Trotsky, no seu livro “A Revolução Traída”, escrito já na fase da planificação e acumulação socialista primitiva, afirma que a tendência do regime burocrático era estabelecer o sistema capitalista na URSS. Isto só mostra o grau de alheamento dos problemas reais da sociedade soviética a que chegou na fase posterior.

A burocracia soviética é um produto da Revolução de Outubro (da realidade russa e do isolamento na fase crítica). Ela exerce uma tutela sobre a classe operária soviética e a sociedade toda, e essa posição representa sua força e lhe garante privilégios materiais. Com seus privilégios e o espírito pequeno-burguês daí decorrente, pode querer imitar o modo de vida das classes dominantes do Ocidente (embora não passe de uma imitação caricatural), mas não pode “querer” restabelecer o capitalismo, pois isso destruiria as bases do seu poder, que consiste justamente na gerência de uma economia coletivizada e planificada.

Não faltam também os “teóricos” que falam da burocracia como uma “nova classe” e do sistema soviético como “capitalismo de Estado”. Evidentemente, não são categorias marxistas que estão sendo usadas no caso. Capitalismo de Estado não deixa de ser capitalismo e não elimina a caça do lucro como força motriz do processo de produção. Além disso, não elimina a burguesia, distinta do Estado capitalista, embora reduza o seu campo de ação. Finalmente, não supera a economia de mercado. Nós vimos que Lênin chegou a caracterizar a economia soviética sob a NEP como capitalismo de Estado, embora um capitalismo de Estado sem precedentes, pois se dava sob uma Ditadura do Proletariado. A NEP, entretanto, foi superada por uma acumulação socialista primitiva, cuja força motriz não era mais o lucro. Essa superação, justamente, foi realizada com a colaboração ativa da burocracia.

Trotsky, no livro citado em outras ocasiões, rejeitara a definição da burocracia como classe, mas escolhera um termo não menos infeliz. Procurou caracterizá-la como “casta”. Acontece que uma casta é um estrato social ainda mais fechado do que uma classe. De uma classe para outra pode-se passar. Milhões de camponeses, no mundo inteiro, se tornaram operários industriais, operários conseguem se passar para a pequena-burguesia e pequeno-burgueses podem transformar-se em capitalistas – embora, na fase monopolista, isto seja mais raro. Mas, numa casta se nasce e se morre. Isso, certamente, não corresponde à realidade da sociedade soviética, onde anualmente saem centenas de milhares de novos técnicos, administradores, cientistas, etc. das Universidades para se integrarem na burocracia. São filhos de operários e camponeses, que não têm outra alternativa do que a integração no sistema, se quiserem exercer suas profissões. Integram a burocracia, começando por baixo, adquirindo privilégios na medida em que sobem, e eles progridem nesse caminho na medida em que provem sua eficiência e se adaptem ao sistema. Isso, certamente, não é uma característica da sociedade de castas.

Stalin desistira de querer controlar a burocracia através do Partido. Isso lhe teria forçado a fazer concessões que, a seu ver, teriam ameaçado a eficiência do sistema. Preferiu controlar a burocracia estatal (e o próprio Partido) através da polícia política, a NKVD. Seu sistema era simples: um diretor de uma fábrica tinha direitos e deveres. Os direitos consistiam nos seus privilégios. Os deveres, antes de tudo, no cumprimento do plano de produção elaborado para sua empresa. Se não conseguiu atingir as metas, seja por incompetência ou mesmo por motivos alheios a sua vontade (como falta de matéria-prima ou de mão-de-obra), era demitido, preso e acabava na Sibéria. Hoje, depois da “desestalinização” de Kruchtchev, os métodos se modernizaram e se civilizaram. Mas, no fundo, o sistema continua o mesmo.

Stalin se opusera mesmo àquelas reformas modestas. Depois da vitória sobre o nazismo, quando a sua liderança e seu prestígio atingiram um novo auge (inclusive em escala mundial), novamente surgiu na sociedade soviética uma vasta tendência a favor de reformas, de democratização interna e de uma elevação do nível de vida. Milhões de soldados soviéticos, operários e camponeses fardados, tinham conhecido o Ocidente e essa experiência os fez questionar as próprias condições de vida em casa. A primeira medida de Stalin foi transferir para a Sibéria todos os soldados e oficiais que haviam caído prisioneiros e conhecido, dessa maneira, mais demoradamente, o nível de vida no Ocidente. Essa medida pôde passar despercebida pela grande maioria da população soviética que, naquele momento, ignorava quais dos seus filhos haviam morrido ou estado no cativeiro alemão. Só anos mais tarde, após a morte do ditador, os sobreviventes entre os prisioneiros de guerra puderam voltar às suas casas. Publicamente, Stalin de novo tomava atitudes conciliatórias frente às reivindicações vindas de baixo, mas ele não se conformou com elas. Ano a ano, apertou os parafusos. Na véspera da sua morte, estava preparando uma reedição dos Processos dos anos 30, com a “descoberta” de uma “conspiração dos médicos do Kremlin”. Tudo indica que nos seus últimos anos de vida seu regime pessoal tenha tomado formas paranoicas, tendo chegado a desconfiar de seus colaboradores mais fiéis e próximos. A quase imediata libertação e reabilitação dos médicos acusados depois da morte de Stalin, foi um primeiro passo para um processo de reformas que, acompanhado por lutas internas na cúpula do PCUS, durou até o fim da década de 50.

Tratava-se de uma reforma do sistema burocrático, mas não de sua abolição. Foram eliminados os piores excessos do stalinismo, como o trabalho forçado e as arbitrariedades e onipotência da NKVD. Na política econômica, foi conseguida em poucos anos uma radical elevação do nível de vida, principalmente pela elevação dos salários mais baixos. Conforme análises norte-americanas, na época, a escala de salários na indústria, que antes tinha como base a relação de 1 a 5, ficou reduzida a 1 a 3. Todas essas medidas em conjunto conseguiram neutralizar as diversas oposições surgidas no pós-guerra. O que ficou de oposição, os chamados “dissidentes”, são em sua maior parte composta por correntes burguesas, de liberais, como Sakharov, passando por eslavófilos abertamente reacionários, como Soljenitzin, sem qualquer enraizamento na massa.

O motivo da aparente passividade da classe operária soviética (dizemos “aparente”, pois nada sabemos dos conflitos e tensões que se dão nas empresas industriais daquele país) é que ela foi formada no decorrer do processo de acumulação socialista primitiva, sem ligação direta com o proletariado que fez a Revolução. Passada a fase da acumulação primitiva e da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, a União Soviética iniciou uma fase de crescente progresso material, que garantiu um nível de vida muito alto quando comparado com o passado. Pela primeira vez, os trabalhadores soviéticos estão colhendo os frutos materiais dos sacrifícios anteriores, e todas essas conquistas se deram sob esse sistema burocrático. Na experiência da grande massa trabalhadora, a ditadura do proletariado e o socialismo ainda é inseparável da tutela burocrática. E esta é aceita, apesar dos conflitos diários existentes porque parece garantir as conquistas do socialismo.

A própria burocracia não é mais a mesma dos tempos da NEP. O elemento físico herdado da velha Rússia, evidentemente, não existe mais. A burocracia atual foi formada por Escolas Superiores e Universidades. Racionalizou-se e modernizou-se, na medida em que um sistema burocrático é capaz de fazê-lo.

Assim mesmo, a burocracia já provou ser um obstáculo para a expansão das forças produtivas. Basta ver a diminuição do crescimento anual do Produto Interno Bruto da URSS na década passada e a persistência do problema agrário, até hoje não solucionado, que obriga o governo soviético a importar cereais do Ocidente. Isso tem de criar conflitos, cujas conseqüências ainda são imprevisíveis. A superação definitiva da degenerescência burocrática e o restabelecimento da democracia socialista na URSS dependerá em grande parte da expansão da revolução proletária para os países industrializados do Ocidente, isto é, para países onde o ponto de partida da Ditadura do Proletariado se situa em nível muito superior ao da Rússia em 1917. Semelhante revolução no Ocidente tornará impossível a sobrevivência do sistema burocrático na URSS. Uma das características essenciais do stalinismo é a de ter transformado em virtude o atraso e a miséria pelos quais a Revolução Russa passou. De ter apresentado o modelo soviético como o único válido para qualquer revolução proletária. Acontece que na Rússia foi mais fácil fazer a revolução, mas as dificuldades posteriores foram infinitamente maiores do seriam no Ocidente. E, nesse sentido, o stalinismo foi uma reação à colocação leninista do problema. O próprio Lênin declara no seu célebre “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”:

Também seria errado não ter em conta que depois da vitória da revolução proletária, mesmo que seja em apenas um dos países adiantados, se produzirá, com toda a certeza, uma radical transformação: a Rússia, logo depois disso, transformar-se-á não em país modelo, e sim de novo, em país atrasado (do ponto de vista “soviético” e socialista.

É verdade que estas linhas foram escritas há mais de 60 anos, pouco tempo depois da tomada do poder. Entrementes, a revolução mudou profundamente a face da velha Rússia. Industrializou-a, tornou-a a segunda potência do mundo e elevou radicalmente o nível cultural de sua população. Mas, enquanto a União Soviética não superar as consequências do stalinismo, essa citação de Lênin continua válida.

Temos que ver o domínio burocrático na fase pós-revolucionária na Rússia como uma negação das tentativas falhas de resolver os problemas da manutenção da Ditadura do Proletariado com os métodos da democracia socialista. A negação da negação estará no restabelecimento da democracia socialista em nível mais alto, para o qual a própria fase anterior criou as bases materiais. E somente este salto qualitativo permitirá o desenvolvimento de uma sociedade socialista naquela parte do mundo.

August Thalheimer, à procura de uma definição para o nível de socialismo soviético, propôs “Socialismo de Estado”. É uma definição contraditória – ele salienta – mas a contradição é do próprio desenvolvimento que a Revolução de Outubro percorreu.

Faça seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *