Qual é a herança da Revolução Russa ?

Burocracia x Democracia Socialista

Lênin já definira a Rússia Soviética como “ditadura do proletariado com deformações burocráticas”. Nos últimos anos de sua vida, dedicou-se à luta contra essas deformações, contra os métodos de Stalin na Secretaria Geral do Partido e no Controle Operário e Camponês, da mesma maneira como havia se oposto às soluções “administrativas” de Trotsky. O caso não é tão simples para se poder afirmar que Lênin havia querido abolir a burocracia. Esta era composta por especialistas e o proletariado soviético precisava de especialistas nos mais diversos ramos para se manter no poder e assegurar o funcionamento de sua máquina estatal. Sobre essa necessidade, toda a liderança do Partido e do Estado em pouco tempo estava de acordo. O próprio Trotsky, que nas lutas internas posteriores iria levantar a bandeira da luta contra a burocracia, em 1921 ainda dizia numa discussão com sindicalistas: “Burocracia (…) não foi uma descoberta do czarismo. Representava toda uma época no desenvolvimento da humanidade” … época ainda não encerrada, e que seus males surgiam “em proporção inversa ao esclarecimento, aos padrões culturais e à consciência política das massas”

Deutscher resume a argumentação de Trotsky, que pleiteava que um serviço público competente, hierarquicamente organizado, tinha seus méritos e que a Rússia sofria não dos excessos, mas sim da falta de uma burocracia eficiente. Usou esse argumento repetidamente, dizendo que em prol da eficiência era necessário conceder certos privilégios limitados à burocracia. Fez-se, desse modo, porta-voz dos grupos administrativos, e isso mais tarde permitiu a Stalin classificá-lo, com certa lógica, como o “patriarca dos burocratas” (citado conforme Deutscher em “O Profeta Armado”).

O problema que Lênin colocava era “quem controla quem”: os comunistas os burocratas, ou vice-versa, e citava como exemplo a administração da cidade de Moscou.

O que era essa burocracia? Evidentemente, ela englobava então muitos operários e revolucionários, mandados para a administração pública, a fim de romper a resistência da velha máquina estatal, para transformá-la em instrumento da Ditadura do Proletariado. Nas condições russas, entretanto, a “quebra da máquina de Estado burguesa” e a formação de uma nova, proletária, não podia ser realizada sem um aproveitamento intensivo da antiga burocracia herdada do passado. Era composta de “especialistas”, que, bem ou mal, administravam profissionalmente. Esse processo se deu em diversos níveis nos diversos setores. Só não se deu praticamente no setor de segurança e repressão, que o novo regime teve de criar. Mas já se dera maciçamente nas Forças Armadas, onde durante a Guerra Civil serviram 40.000 exoficiais czaristas, vigiados por comissários políticos. Na Justiça a situação não era mito diferente, pois não havia muitos juízes e bacharéis revolucionários. As necessidades cresciam quando se tratava de assegurar o abastecimento das cidades, o funcionamento dos meios de transporte e, não por último, garantir a gerência das fábricas e dos meios de produção em geral. Os novos administradores e funcioná- rios públicos “vermelhos”, como eram chamados, se misturavam com burocratas antigos e traquejados, e não podiam deixar de aprender o seu ofício com eles. Na medida em que aprendiam, absorviam tradições da burocracia russa.

A realidade russa naquela fase da revolução fez com que a meta de Lênin de “cada um ser temporariamente burocrata” (em O Estado e a Revolução), para evitar o surgimento de uma máquina burocrática, não passasse de um objetivo remoto. O problema concreto e imediato era da sobrevivência da revolução e isso agora dependia do funcionamento e da eficiência do novo Estado. Isso, por razões já indicadas, a classe operária russa não estava em condições de garantir diretamente. Não estava em virtude de seu nível cultural herdado dos tempos do czarismo. Ela só podia garantir esse funcionamento mediante o controle exercido sobre a burocracia e exercia esse controle, bem ou mal, por intermédio do Partido.

Nessas condições – e temos de ter consciência disso – os sovietes, órgãos da democracia socialista, falharam na Rússia, como órgãos do poder proletário na fase pós-revolucionária. Tiveram o seu papel como órgãos do Duplo Poder e da Insurreição, mas não conseguiram enfrentar as tarefas da manutenção da Ditadura Proletária, nem as da recuperação econômica. Nessas circunstâncias, a burocracia tinha um papel necessário a desempenhar na manutenção do poder proletário e na construção do socialismo. O problema posto por Lênin, todavia, perdurava: quem controla quem?

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