Qual é a herança da Revolução Russa ?

Operários e camponeses

No decorrer das discussões sobre a questão sindical, Lênin se dirigiu a Trotsky dizendo: “O camarada Trotsky fala do Estado Operário. Permita-me dizer que isso é pura abstração (…) Não se trata de um Estado completamente operário e aí está o x da questão (…) Em nosso país o Estado não é na realidade operário, e sim operá- rio e camponês.”

“Operário e camponês” – eis aí o “x da questão”, que os sucessores de Lênin tiveram de enfrentar na prática. O próprio Lênin via a realização da Ditadura Proletária, nas condições soviéticas, depender do funcionamento da “Aliança Operário Camponesa”. Essa preocupação, a do relacionamento do proletariado urbano com a imensa maioria dos camponeses, estava sempre presente na estratégia de Lênin, desde as discussões sobre o Programa Agrário da Social-Democracia Russa até a redação do seu Testamento, onde receava a divisão do Partido em uma fração operária e outra camponesa.

A atitude do camponês foi decisiva durante a Guerra Civil. No início, cansado de qualquer guerra e satisfeito com o pedaço de terra recebido pela Revolução, ele procurava não se envolver com a Guerra Civil. O motivo para defender a Revolução com a arma na mão foi fornecido pelos Exércitos Brancos, que procuravam restabelecer as grandes propriedades da antiga nobreza. Aí o mujique despertou, e isso permitiu a organização de um Exército Vermelho de milhões de camponeses, comandados por operários.

Já assinalamos também que era essa ameaça, de perda das suas terras, que fez o camponês se conformar mesmo com as requisições de cereais durante o comunismo de guerra – mas somente enquanto durava a Guerra Civil e a ameaça de retorno dos grandes proprietários fundiários.

O camponês não era socialista, nem raciocinava em termos de coletividade. Sua ânsia de terra própria fez dele um individualista extremo. Este traço, mais o fato de ter sido a Revolução que lhe dera a terra, representavam os dois pólos extremos do comportamento do camponês. Não é anedota, mas a voz prevalecente no campo e citada por vários autores era que os bolcheviques eram gente boa, pois tinham distribuído a terra, mas os comunistas eram gente má, pois queriam coletivizar a terra…

Com o fim da guerra e o esgotamento da política baseada nas requisições de cereais, o descontentamento no campo começou a tomar formas violentas. Kronstadt só era o cume do iceberg. Entre 1920 e 1921, registraram-se mais de 130 levantes camponeses na Rússia Central. A NEP, afinal de contas, não era outra coisa do que uma política de apaziguamento do campo.

O que significava a NEP para o camponês?

Em princípio, consistia de um só decreto, o que aboliu as requisições. A entrega dos excedentes da produção agrária era regulamentada por preços e quotas fixas. Mas, esse primeiro decreto tinha conseqüências. De nada adiantava pagar ao camponês em dinheiro, se ele não conseguia comprar o que precisava. O que ele precisava eram de artigos industriais, de tecidos, de sapatos, ferramentas e instrumentos de trabalho. Eram justamente esses artigos que faltavam numa situação em que a indústria produzia um quinto do volume de 1913. Iniciou-se o período de reconstrução, que se apoiou em dois pilares principais: a indústria estatal, o setor socializado, que abrangia as grandes empresas, e o setor privado, de iniciativa particular. Este nunca chegou a ultrapassar 20% da produção global, mas era essencial para o abastecimento do campo, já que incluía grande parte do setor de serviços.

Outra conseqüência da NEP foi a mudança na estrutura da Aliança OperárioCamponesa. A distribuição das terras, evidentemente, não tinha produzido ralações igualitárias no campo. Era inevitável que um camponês recebesse mais do que outro ou recebesse terras melhores que as de seu vizinho. No princípio, os bolcheviques se apoiavam nos chamados camponeses pobres, que durante a guerra civil ajudavam nas requisições. Com a NEP, esse eixo tinha de mudar. O camponês pobre não dispunha de excedentes de produção necessários para o abastecimento das cidades, ele produzia sobretudo para a subsistência. Só o camponês médio e o “kulak” (camponês rico, que empregava mão-de-obra) dispunham da produção necessária. Já que o intercâmbio agora transcorria à base de uma economia de mercado, era inevitável fazer concessões periódicas para incentivar a produção. Assim, por exemplo, as quotas em espécie foram paulatinamente substituídas por impostos em dinheiro. Os camponeses tinham de vender o seu produto para poderem pagar os impostos. Posteriormente, foi liberalizado o estatuto rural, facilitando o emprego de assalariados e, finalmente, tolerava-se que os camponeses mais ricos arrendassem terras de vizinhos menos afortunados para estender a produção.

Todas essas concessões foram feitas, a princípio, para assegurar o abastecimento das cidades e permitir a reconstrução da economia urbana. O Poder Soviético, longe de criar forças produtivas superiores à velha sociedade capitalista, ainda estava empenhado em atingir o nível econômico do período anterior à guerra. Mas a pobreza dos recursos econômicos da jovem República Soviética foi tal que qualquer concessão a uma classe ia em detrimento da situação de outra – partindo da premissa que as duas classes fundamentais da sociedade soviética eram constituídas por operários e camponeses. Não há dúvida que as concessões aos camponeses iam em detrimento da situação material dos operários industriais. Preços mais altos para os cereais significavam pão mais caro nas cidades. Mas não concedendo aumentos, os camponeses não produziam as quantidades necessárias de trigo – e os operários ficavam sem pão.

Temos de ter em mente essa situação, se quisermos compreender a origem das lutas de facções que se desenrolaram de 1923 em diante. Anos mais tarde, em 1928, quando a luta interna atingia o seu auge, corria uma piada de gosto político duvidoso nas ante-salas do Comintern: “com Trotsky, o operário ia bem e o camponês ia mal; com Bukharin, o camponês ia bem e o operário ia mal; com Stalin e a ‘Linha Geral do Partido’, todos estavam na merda…”

Lênin tinha qualificado a NEP como “recuo”, mas a imensa maioria do Partido, que aceitara essa alternativa, não tinha idéia alguma das conseqüências dessa nova política. Em pouco tempo, enfrentara o problema do pulular do capitalismo agrário no campo (através do kulak) e do surgimento de uma nova burguesia nas cidades (os chamados ‘homens da NEP’). Nem tinham ideia ainda como e quando esse recuo seria superado, para poder dar o passo para frente. Hoje, esquece-se facilmente que a construção de uma economia em bases socialistas ainda não tinha precedentes. Nenhuma tentativa de conquista de poder pelo proletariado tinha ido tão longe. Naquele momento, ainda não estava comprovado, historicamente, que a classe operária estava em condições de organizar uma economia em bases coletivistas, além dos padrões capitalistas. E o proletariado russo tinha de comprovar os postulados teóricos dos clássicos do marxismo num dos países mais atrasados da Europa, representando ele mesmo uma ilha num mar de economia camponesa. Queremos lembrar esse fato antes de entrar nas lutas de facções propriamente ditas, lutas internas que se desenvolveram à base da problemática que a NEP criara, lutas que marcaram decisivamente a face e as estruturas internas da primeira Ditadura do Proletariado vitoriosa.

Faça seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *