Sobre a Humanidade Socialista

Dizem que a sociedade norte americana avançada tornou obsoleta a análise marxista do capitalismo. Mas será que esta sociedade, que mantém seu equilíbrio e segue fazendo a sua produção andar com a ajuda de um estado de guerra quase permanente, fez isso?

Eu simplesmente não entendo a lógica ou ilógica do processo de raciocínio mediante o qual alguns podem chegar a semelhante conclusão. Dizem-nos que com certeza, em 1966 não podemos sustentar que um diagnóstico, feito com base na tecnologia de 1867, siga sendo válido. Dizem-nos que, portanto, abandonamos esse marxismo atrasado.

Meu argumento é que, pelo contrário, Marx estava intelectualmente tão avançado em relação ao seu tempo – em relação à sociedade em que vivia – que inclusive agora continuamos ainda atrasados em muitos aspectos em relação à ele. E se alguém deseja uma confirmação disto, não precisa mais escutar o nosso debate.

O fato é que há cem anos Marx postulou como premissa do socialismo uma sociedade altamente desenvolvida tecnologicamente, uma sociedade capaz de produzir tal abundancia de bens, que realmente para a sua época inclusive, a visão de semelhante sociedade era quase utópica. Se fossemos analisar as estatísticas de produção per capita dos mais avançados Estados capitalistas do século XIX, chegaríamos a conclusão de que se o socialismo tivesse triunfado então, realmente teria triunfado no que, segundo nossos padrões atuais, seria uma sociedade subdesenvolvida. Esta é a critica que pode ser feita a Marx: que estava intelectualmente tão avançado em relação a sua época, e casualmente também em relação a nossa, que ainda não tivemos êxito de alcançá-lo.

Marx, dizem, não havia previsto uma sociedade dominada pela cibernética, na qual as máquinas fariam o trabalho do homem em escala que está se fazendo hoje, computadores e tudo mais. Marx não previu uma sociedade na qual os cientistas e a protoclasse dos cientistas viria a ser tão importante. Mas, pelo contrário, Marx sempre assumiu que sua sociedade já estaria a ponto de se converter em tal sociedade, e nisto estava equivocado. É correto dizer que, seguramente uma teoria formulada há cem anos deve ser obsoleta em alguns aspectos, embora muitos daqueles que afirmam isso, muitas vezes nos dizem ao final – e nos aconselham a tomar drogas para nos “libertar” da opressão desta sociedade – que advogam por um retorno a algumas ideias pré-marxistas, ou então a um cristianismo que é dois mil anos mais velho que o marxismo.

Ou, além do mais, quando temos que enfrentar os críticos do marxismo, muito educados e muito sofisticados, aí nos oferecem o retorno, a regressão – embora não uma regressão infantil – ao socialismo utópico ou ao racionalismo do século XVIII. Contudo, existem certas revoluções no pensamento humano que são irreversíveis. Nada pode nos fazer retornar aos sistemas cosmológicos pré-copernicanos por mais que o desenvolvimento da mente humana tenha avançado desde Copérnico a Einstein; mesmo que somente o tenha elaborado há uns duzentos e cinquenta anos.

Eu não creio que o marxismo possa ser superado em sua ampla crítica ao sistema capitalista enquanto que esse sistema, independentemente de quanto ainda venha a se desenvolver, continue conosco. Nossa falta de paciência com certas fórmulas e verdades evidentes do marxismo não converte essas verdades em falsas ou inúteis.

Bom, alguns creem que é suficiente voltar ao jovem Marx e declamar, dentro e fora de contexto, seus primeiros e ainda imaturos raciocínios sobre a “reificação” e alienação, e repeti-los em círculos, para resolver os problemas de nossa época. Mas não vão mais além do marxismo, somente retornam do Marx maduro ao Marx imaturo, ao Marx quase adolescente.

Porém, mesmo o Marx adolescente era um pensador muito maduro comparado a esses que agora exibem – como disse um dos oradores – esta tendência à regressão infantil.

Eu vejo unicamente um aspecto, um tema importante, no qual o marxismo, o prognóstico marxista do socialismo, tem sido realmente distorcido em certa medida por alguns acontecimentos. Aqui me refiro ao fato do socialismo não ter triunfado até agora em nenhuma das sociedades capitalistas avançadas, apenas nas atrasadas, nas quais uma estrutura feudal estava começando a ser derrubada sob o impacto do capitalismo e onde os sistemas feudais e capitalistas se fundiram sob o impacto de revoluções primitivas burguesas e socialistas.

Portanto, temos um legado deste desenvolvimento histórico, um desenvolvimento histórico que realmente difere do prognóstico marxista: encontramos uma tremenda discrepância e um abismo entre o Este e o Oeste, um abismo que, infelizmente, tende a se perpetuar em detrimento tanto do Este como do Oeste.

E para os marxistas, para os socialistas, para os estudiosos socialistas, tanto deste país como de qualquer outro, o grande problema de nossa época, o grande problema do movimento rumo ao nosso objetivo, rumo à humanidade socialista, rumo a uma sociedade socialista, é como superar este abismo existente entre as rotas históricas separadas e divergentes que têm empreendido o Este e o Oeste. Este é o problema real do qual não é possível fugir mediante alguma utopia ou alguma droga “libertadora”.

Quisera poder compartilhar o entusiasmo do meu companheiro da direita (do auditório) pelo que está acontecendo na China. Quisera que eu pudesse fazê-lo, pois reconheço o grande idealismo revolucionário e o valor internacional de certas inovações revolucionárias que têm sido realizadas pelos chineses.

Desgraçadamente, não nos traria nenhum benefício mostrar tal desdém idealista devido à realidade da situação material chinesa, devido ao atraso cultural e industrial de uma sociedade que teve o heroísmo de iniciar uma revolução socialista em meio a sua aterradora pobreza e atraso. Estes fatores, infelizmente, influenciam a política dos governos chineses e levam o Exército Vermelho a repudiar não somente ao chamado revisionismo russo, mas também a Beethoven e Shakespeare como inúteis desperdícios de uma cultura burguesa degenerada.

Eu não posso aceitar isso como socialismo. Não posso aceitar isso como uma experiência libertadora. Como tampouco posso aceitar que o culto de Mao seja em nada melhor que o culto a Stalin, mesmo que em certos aspectos fosse mais desculpável.

Todos esses desenvolvimentos aprofundam e alargam o trágico abismo entre as sociedades capitalistas avançadas do Oeste, incluindo as suas classes trabalhadoras e as sociedades revolucionárias pós-capitalistas do Este. O precedente histórico que temos em conta é o abismo que se abriu, durante as guerras religiosas, entre os países católicos e protestantes.

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Comentários

  1. alberto herrera disse:

    Que argumentos mais poderíamos deduzir a partir do texto para encontrar na nossa consciência um conforto para a angústia teórica que eventualmente poderia visitar nossa alma? O texto, tão atual dentro do contexto relativo, estimula a possibilidade de uma análise dos tempos que vivemos e a fé no movimento da vida se renova e a aparente Utopia se projeta como real no movimento da história. Penso que a aparente crise do pensamento politico que permeia o mundo pode ser fictícia e o fermento necessário deve estar na sua primeira fase pois o processo é inevitável. Uma necessidade inerente à condição humana não permite que o processo da busca da felicidade seja interrompido. Esta afirmação aparentemente metafísica talvez seja apenas uma necessidade que vendo a história da vida se recusa a pensar diferente.