Sobre a Humanidade Socialista

Pode ser paradoxal falar em socialismo hoje, num contexto mundial caracterizado, de um lado, pelo baixo crescimento econômico e agravamento da miséria social seis anos depois da crise que afetou principalmente os países do centro do capitalismo; e, por outro lado, do deslocamento, nesses países, da correlação de forças sociais à direita, pois a luta de classes não encontra ainda um proletariado organizado em torno de uma alternativa revolucionária. 

Mas é exatamente em épocas como esta, na qual se vislumbra o horizonte da barbárie, que devemos levantar a bandeira do socialismo, única possibilidade de superação das contradições em que o capitalismo mergulha a humanidade. Significa também um chamamento do proletariado à resistência e a luta de classe.

A palestra Sobre a Humanidade Socialista, de Isaac Deutscher (1907-1967) serve a estes propósitos.(CVM)

 

Sobre a Humanidade Socialista

Isaac Deutscher 

 

Pediram-me para falar com vocês sobre a “Humanidade Socialista”. Este é um tema bastante amplo, a ponto de requerer tantas abordagens a partir de diversos ângulos, que devo pedir a vocês desculpas se o que vou dizer se assemelhar mais a uma conversa informal do que a uma conferência.

Os marxistas, em geral, têm sido renitentes em falar sobre a humanidade socialista; e devo confessar que eu mesmo senti algo desta resistência na primeira vez que esta conferência me foi proposta. Qualquer intenção de oferecer uma descrição da humanidade socialista, quer dizer, retratar o membro da futura sociedade sem classes, irá parecer tingido de utopia. Esse foi o domínio dos grandes visionários do socialismo, especialmente de Saint-Simon e Fourier, os quais, da mesma forma que os racionalistas franceses do século XVII, imaginaram que eles – e através deles, a Razão – finalmente haviam descoberto o homem ideal e que, uma vez feito este descobrimento, a realização deste ideal ocorreria a seguir. Nada mais distante de Marx e Engels e os principais marxistas das gerações subsequentes do que semelhante pensamento. Eles certamente não disseram à humanidade: “Aqui está o ideal, ajoelhe-se diante dele!” Em lugar de nos oferecer um esquema da sociedade futura, se dedicaram a produzir uma análise realista da sociedade tal qual era e é, a sociedade capitalista; e uma vez que as lutas de classes de seu tempo foram enfrentadas, se comprometeram de forma irrevogável com a causa do proletariado. Entretanto, ao responder as necessidades do seu tempo, não deram as costas para o futuro. Tentaram, no mínimo, de conjecturar a forma das coisas que estavam por vir; mas formularam suas conjecturas com fortes reservas e somente por acaso. Em seus volumosos escritos, Marx e Engels somente nos deixaram algumas poucas e dispersas alusões sobre o assunto que nos ocupa, alusões significativamente inter-relacionadas e que sugerem novos e imensos horizontes, mas são unicamente alusões. Sem dúvida, Karl Marx tinha a sua concepção da humanidade socialista, mas esta era a hipótese de trabalho de um analista, não a suposição de um visionário; e ainda que estivesse convencido do realismo histórico de suas previsões, as tratou com certa dose de ceticismo científico.

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SOBRE O HOMEM SOCIALISTA – ISAAC DEUTSCHER

Marx examinou, para parafrasear sua própria expressão, o embrião do socialismo dentro da matriz do capitalismo; por conseguinte, somente pode ver o embrião da humanidade socialista. Com o risco de decepcionar a alguns de vocês, devo dizer que isso é tudo o que podemos fazer até agora. Depois de todas as revoluções de nossa época e em que pese tudo o que temos aprendido de Marx até aqui sobre a sociedade, não o superamos de modo algum no que se refere a este tema: ao discutir a humanidade socialista não podemos ir mais além dos rudimentos do problema. Qualquer coisa que possamos dizer a propósito deste assunto será necessariamente muito genérico, fragmentado, e em certo sentido, negativo. É mais fácil para nós enxergar o que não pode ser a humanidade socialista do que o que será. Entretanto, na medida em que a negação implica também afirmação, nossa caracterização negativa da humanidade socialista pressupõem também alguns de seus traços positivos.

O marxismo abordou a contradição principal da sociedade capitalista, a causa mais profunda de sua anarquia e irracionalidade, o conflito entre a crescente socialização do processo produtivo moderno e o caráter antissocial do controle que a propriedade privada exerce sobre este processo. A tecnologia e a indústria moderna tende a unir a sociedade, na medida em que a propriedade privada dos meios de produção a desune. O processo produtivo socializado, este elemento rudimentar do coletivismo que contém a economia capitalista – e se vocês preferirem neocapitalista – precisa libertar-se da propriedade burguesa que o restringe e que o desorganiza. Durante mais de um século os economistas burgueses permaneceram cegos diante desta contradição, até que Keynes e seus seguidores a seu modo eclético a reconheceram, rendendo assim uma homenagem inconfessada à crítica marxista. Mas o que o keneysianismo e o neocapitalismo, assustados mais do que nunca pelo espectro do comunismo, tem tratado de fazer é introduzir, sob a base da sociedade privada (quer dizer, das corporações capitalistas monopolistas) um tipo de controle pseudossocial sobre o processo produtivo socializado. Esta não é a primeira e nem será a última vez que os homens terão lutado desesperadamente para assegurar a sobrevivência de instituições ou modos arcaicos de vida, numa época em que deixam de ser necessárias e nem se pode servi-se delas. Eu vi uma vez em meu país de origem, a Polônia, um camponês que por acaso, adquiriu um automóvel e insistia em amarrá-los a seus cavalos. O keneysianismo e o neocapitalismo mantêm os cavalos da propriedade privada amarrados aos veículos de propulsão nuclear e as naves espaciais e ameaçam de tremer o céu e a terra para nos impedir de desamarrá-los.

Para voltar concretamente ao meu tema: nossa ideia do socialismo não é uma construção intelectual arbitrária do socialismo senão uma cuidadosa extrapolação e projeção para o futuro daqueles elementos de organização social racional que são inerentes a sociedade capitalista, mas que são constantemente frustrados e negados por esta. De maneira similar, nossa ideia da humanidade socialista não é senão uma projeção do homem social que já existe entre nós, mas que está deformado, esmagado e embrutecido pelas condições de vida em que (o germe da humanidade socialista está presente inclusive no trabalhador alienado do nosso tempo nos raros momentos em que se eleva a uma genuína consciência do seu papel na sociedade e tem uma solidariedade de classe, e quando luta pela sua emancipação.) É aqui onde nossas aspirações estão arraigadas na realidade e se alimentam delas, mas com muita frequência também são suas prisioneiras. Sabemos, repito, o que não pode ser e não será a humanidade socialista: não pode ser o produto de uma sociedade antagônica; não pode ser o produtor coletivo dominado por seu produto e seu meio ambiente social ao invés dominá-los. Não pode ser um joguete das forças cegas do mercado, nem um robô de uma economia de guerra neocapitalista administrada pelo Estado. Não pode ser o proletário alienado e intimidado de outrora, nem a lamentável cópia falsificada do pequeno burguês em que o Estado de bem-estar social está convertendo o operário. Pode ser ele mesmo como trabalhador coletivo somente em uma sociedade coletivista desenvolvida ao máximo. Somente essa sociedade lhe permitirá reduzir seu trabalho socialmente necessário ao mínimo tolerável que a nova tecnologia torne possível. Somente nessa sociedade poderá satisfazer suas necessidades materiais e espirituais com certeza e não ao acaso, de forma racional e não caprichosamente Somente nessa sociedade se orientará a si mesmo na satisfação de suas necessidades e no uso de seu tempo livre pelo discernimento instruído e a eleição inteligente, não por algum silencioso ou vociferante porta-voz da publicidade comercial. Somente numa sociedade socialista o homem poderá desenvolver todas as suas capacidades biológicas e espirituais, ampliar e integrar a sua personalidade e libertar-se do milenar e obscuro legado da escassez material, desigualdade e opressão. Somente nessa comunidade o homem poderá superar finalmente a separação entre o trabalho físico e intelectual, separação que tem determinado o distanciamento entre os homens, a divisão da humanidade entre governantes e governados e em classes antagônicas; separação que a nossa tecnologia avançada está tornando supérflua, inclusive agora, na medida em que o capitalismo e o neocapitalismo fazem todo o possível para perpetuá-la. A humanidade socialista poderá alcançar sua plena estatura somente no ápice de nossa cultura e nossa civilização, um ápice que temos em vista, mas para o qual nossas relações de propriedade, nossas instituições sociais e nossa inércia profundamente arraigada não nos permitem avançar tão firme e rapidamente como seria possível de fazê-lo.

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Comentários

  1. alberto herrera disse:

    Que argumentos mais poderíamos deduzir a partir do texto para encontrar na nossa consciência um conforto para a angústia teórica que eventualmente poderia visitar nossa alma? O texto, tão atual dentro do contexto relativo, estimula a possibilidade de uma análise dos tempos que vivemos e a fé no movimento da vida se renova e a aparente Utopia se projeta como real no movimento da história. Penso que a aparente crise do pensamento politico que permeia o mundo pode ser fictícia e o fermento necessário deve estar na sua primeira fase pois o processo é inevitável. Uma necessidade inerente à condição humana não permite que o processo da busca da felicidade seja interrompido. Esta afirmação aparentemente metafísica talvez seja apenas uma necessidade que vendo a história da vida se recusa a pensar diferente.