Sobre a Humanidade Socialista

Nossa ideia da humanidade socialista tem sido criticada com frequência por seu declarado otimismo. Dizem que nós somos utópicos e que nossos princípios histórico-filosóficos são insustentáveis. Dizem que o “paraíso na terra” de que os propagandistas do socialismo têm falado é tão inalcançável como o paraíso no céu que prometeram os teólogos. Devemos escutar tais criticas com juízo aberto: às vezes podemos encontrar grãos de verdade nelas. Devemos admitir que em mais de uma ocasião temos contemplado com demasiado otimismo, não somente o socialismo como tal, mas também os caminhos que conduzem à ele. Contudo também devemos compreender que muitas dessas críticas expressam tão somente o sentimento de predestinação que impregna a sociedade burguesa e seus ideólogos, ou então as formas irracionais de desilusão em nosso próprio campo. Desse modo, alguns dos existencialistas nos dizem que estamos tratando de fugir das aflições básicas da condição humana e fechando os olhos diante do inerente absurdo do nosso destino. É extremamente difícil estabelecer um debate frutífero com adversários que argumentam sub specie aeternitatis  [1] e partindo de premissas puramente teleológicas. O existencialista pessimista faz a velha pergunta: qual é o propósito ou a finalidade da existência e da atividade da humanidade quando consideradas em relação à infinitude do tempo e do espaço? A esta pergunta, é claro, não podemos responder… como tampouco o existencialista pode responder. Mas a pergunta em si mesma é absurda, pois postula a necessidade de um propósito último, metafísico, da existência humana, um propósito válido para toda a eternidade. Não temos tal propósito nem o necessitamos. Não vemos nenhum sentido metafísico em nossa existência e, por conseguinte, tampouco nenhum absurdo. O absurdo e o sentido são somente frente e verso da mesma moeda: somente quando se postula o sentido se pode falar em absurdo. A condição humana que nos interessa não é a solidão do homem na infinitude do espaço e tempo – nessa infinitude, mesmo os termos de solidão e absurdo carecem de significado – senão a condição do homem na sociedade que é sua própria criação e que ele é capaz de mudar. O argumento sub specie aeternitatis é filosoficamente estéril e socialmente reacionário; em regra geral, é um argumento em favor da indiferença moral e do imobilismo político, um argumento em favor da aceitação resignada de nossas condições sociais tal como são. Felizmente, os existencialistas, como demonstra o notável exemplo de Sartre, podem ser filosoficamente inconsequentes e podem aceitar a ideia da humanidade socialista em que pese a sua concepção do absurdo da condição humana.

Mais específica, até certo ponto, é a crítica às aspirações marxistas que faz Sigmund Freud em O mal-estar na civilização [2]. À nossa concepção de que o homem pode viver e provavelmente viverá numa sociedade sem classes e sem Estado, ele responde com o velho adágio: Homo homini lúpus. Os seres humanos, disse, sempre serão agressivos e hostis entre si; seus instintos agressivos, que tem sua origem no sexo, estão biologicamente predeterminados e não são afetados de forma importante por nenhuma mudança na estrutura da sociedade.

Os comunistas – disse Freud – creem haver encontrado o caminho para nos libertar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para com seu próximo, mas a instituição da propriedade privada tem corrompido a sua natureza. A propriedade privada da riqueza tem corrompido sua natureza. A propriedade privada da riqueza dá poder ao indivíduo, e com o poder de tentação de maltratar ao seu próximo; tanto que o homem excluído da possessão é chamado a rebelar-se com hostilidade contra o seu opressor. Se a propriedade privada fosse abolida, se toda a riqueza fosse possuída em comum e cada um permitisse participar do seu desfrute, a má vontade e a hostilidade iriam desaparecer entre os homens. Posto que as necessidades de todos fossem satisfeitas, ninguém teria razão para considerar ao outro como seu inimigo; todos realizariam voluntariamente o trabalho necessário.

Antes de continuar, vejamos se o resume freudiano da concepção marxista está correto. Nós consideramos realmente que o homem é “inteiramente bom por natureza e “de boa vontade com o seu próximo”? Freud, cuja informação sobre a teoria marxista era bastante deficiente, certamente se viu diante de algumas afirmações deste tipo na propaganda popular comunista ou socialdemocrata, onde efetivamente apareciam. A teoria marxista séria, no entanto, não incorre em nenhuma hipótese acerca da natureza humana. Em resumo, tais suposições poderiam ser achadas nos escritos juvenis, feurbachianos, de Marx. Recordo que este problema me preocupou fortemente quando, sendo jovem, me familiarizava com a teoria marxista e tratava de ver com clareza a concepção da natureza humana que lhe servia de base. Através do estudo dos escritos de Marx, Engels, Kautsky, Plekhanov, Mehring, Rosa de Luxemburgo, Lênin, Trotsky e Bukharin, cheguei a conclusão de que suas hipóteses sobre a natureza humana eram, digamos assim, essencialmente neutros. Eles não viam ao homem como “inteiramente bom” ou “inteiramente mau”, como ”de boa vontade” ou “de má vontade” diante do seu próximo; se negavam a aceitar a noção metafísica de uma natureza humana imutável e inalterada pelas condições sociais. Ainda sigo acreditando que a conclusão a que cheguei então estava correta.

O homem é criatura da natureza, porém mais particularmente daquela parte da natureza que, enquanto sociedade humana, se distingue da natureza e em parte de opõe à ela. Quaisquer que sejam as bases biológicas de nosso ser, as condições sociais constituem o fator decisivo na formação do nosso caráter: mesmo os fatores biológicos se refratam ao passar pela nossa personalidade social e são parcialmente transformados por ela. Até certa medida a natureza do homem, incluindo os seus instintos, vem sendo submersa e deformada por suas condições sociais, e somente quando essas condições perderem seu caráter opressivo e deformador poderemos obter uma visão mais clara e mais científica do que aquela que estamos tendo até agora, dos diversos elementos biológicos e sociais na natureza do homem.

A crítica principal que um marxista é demandado a fazer ao freudismo – e falo como alguém que reconhece sem barganhas a contribuição fundamental de Freud para a compreensão da psicologia – é que, com demasiada frequência, Freud e seus discípulos passam por cima desta refração e transmutação dos impulsos instintivos do homem, que ocorre por meio de sua identidade social mutável. Contudo, é Freud quem nos fez conscientes dos processos e mecanismos da sublimação. A psicanálise, até agora, somente tem se ocupado do homem burguês, do homem burguês da época do imperialismo, a quem tende a apresentar como o homem em geral, tratando seus conflitos internos de uma maneira supra-histórica, como conflitos que afligem aos seres humanos em todas as épocas, sob todas as ordens sociais, como conflitos inerentes a condição humana. A partir deste ponto de vista, o homem socialista somente pode ser visto como uma variante do homem burguês. O mesmo Freud faz esta afirmação:

Ao abolir a propriedade privada, privamos a aflição humana da agressão de um de seus instrumentos, forte sem dúvida, embora sem dúvida não o mais forte; mas de nenhuma maneira conseguiremos alterar as diferenças no poder e influência que são mal utilizadas pela agressividade, nem conseguiremos alterar nada em sua natureza.

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Comentários

  1. alberto herrera disse:

    Que argumentos mais poderíamos deduzir a partir do texto para encontrar na nossa consciência um conforto para a angústia teórica que eventualmente poderia visitar nossa alma? O texto, tão atual dentro do contexto relativo, estimula a possibilidade de uma análise dos tempos que vivemos e a fé no movimento da vida se renova e a aparente Utopia se projeta como real no movimento da história. Penso que a aparente crise do pensamento politico que permeia o mundo pode ser fictícia e o fermento necessário deve estar na sua primeira fase pois o processo é inevitável. Uma necessidade inerente à condição humana não permite que o processo da busca da felicidade seja interrompido. Esta afirmação aparentemente metafísica talvez seja apenas uma necessidade que vendo a história da vida se recusa a pensar diferente.