Eleições municipais de 15 de Novembro: política burguesa ou organização independente dos trabalhadores como classe? Contribuição para o debate (parte II)

Coletivo do CVM, 14/10/2020

 

Contribuições para o debate

No documento “Eleições municipais de 15 de novembro: política burguesa ou organização independente dos trabalhadores como classe?” manifestamos uma posição contrária a participar da eleição para o poder executivo municipal, limitando esta participação ao apoio de candidaturas para conquistar representação nas câmaras de vereadores. Deixemos de pronto o esclarecimento de não se tratar aqui de uma novidade. Esta é a posição histórica do movimento socialista internacional que, dentro da corrente revolucionária, sempre se opôs a participar do Estado burguês. Dada à falta de tradição socialista em nosso país e o desconhecimento da história deste movimento, apresentamos a seguir algumas contribuições sobre os debates ocorridos na social-democracia europeia do final do século XIX, quando o problema foi colocado pela primeira vez.

Apresentamos a seguir um apanhado das contribuições da revolucionária polonesa-alemã Rosa Luxemburgo (1871-1919) sobre a participação eleitoral dos partidos operários socialistas.

 

1 – A propósito das eleições municipais: as divergências entre revolucionários e reformistas nos partidos socialistas no final do século XIX e início do XX

Trata-se antes de tudo de um problema de perspectiva: quem almeja o socialismo enquanto objetivo precisa colocar os meios para alcançá-lo. Quem quer os fins, precisa encontrar os meios adequados para alcançá-los. Porém o socialismo, como observou Rosa Luxemburgo no discurso feito no Congresso do Partido Social-Democrata Alemão realizado em 3 de outubro de 1898 em Stuttgart, era comumente apresentado como uma bela passagem do programa sem relação direta com a luta prática. [1] Ressaltava, em contrapartida:

Eu sustento (…) que não existe para nós enquanto partido revolucionário, proletário, questão mais prática que a questão do objetivo final.

    Em que consistia a luta prática dos trabalhadores sob o capitalismo? Rosa afirmou que podia ser compreendida sob três formas principais – a luta sindical, as lutas pelas reformas sociais e pela “democratização do Estado capitalista” (a exemplo da universalização do direito de voto). Deixando claro que as três formas de luta acima apontadas não pertenciam ao socialismo enquanto objetivo, acrescentou a questão: como é possível, perguntava-se ela, definir o caráter socialista de nosso movimento? Eis a resposta dela, simples e clara:

O que faz de nós então, em nossa luta cotidiana, um partido socialista? Apenas a relação destas três formas de luta prática com nosso objetivo final. É unicamente o objetivo final que dá seu espírito e seu conteúdo à nossa luta socialista e a faz uma luta de classe. E por objetivo final nós não devemos entender, como disse Heine, tal ou qual representação da sociedade futura, mas o que deve preceder a sociedade futura, ou seja, a conquista do poder político. [2]

    Para a corrente revolucionária, da qual Rosa Luxemburgo fazia parte, a conquista do poder político não significava participar das eleições e compor um governo burguês para daí pretender impulsionar a transformação da sociedade capitalista na direção do socialismo. Contudo, a corrente reformista do movimento socialista mais do que admitir a possibilidade desta participação, pautou sua prática segundo esta perspectiva.

O desafio foi colocado pela primeira vez em 1899, quando o socialista Etienne Alexandre Millerand aceitou, em nome dos socialistas reformistas, participar do governo burguês de Waldeck-Rousseau. [3]

Tampouco isso foi, na época, uma novidade. A filiação de uma parte dos socialistas franceses à ala reformista tinha sido publicamente declarada por Millerand três anos antes, numa comemoração destinada a celebrar os triunfos municipais dos socialistas. Ele defendeu na oportunidade a socialização gradual dos meios de produção mediante a propriedade publica dos serviços municipais, deixando bastante claro que tal processo dever-se-ia produzir sob o Estado existente, ou seja, burguês. [4] Neste ponto Millerand mostrou-se adepto do “possibilismo” defendido em 1881 por Paul Brousse que, em prol das reformas imediatas sob o capitalismo, acreditava no controle do maior número de municípios, com a eleição de prefeitos. O partido operário de caráter nacional deveria começar pelo nível local.[5]

Como afirmamos, o problema da participação em governos da burguesia somente veio a se colocar pratica e publicamente em 1899. Ao examinar a posição do partido socialista francês de participar de um gabinete burguês, Rosa Luxemburgo tomou uma posição absolutamente contrária. Considerando o caráter parlamentarista do governo burguês, a atitude deveria ser a de uma oposição de princípio, tendo em vista a educação política da classe operária por meio da crítica sistemática do partido dominante e de sua política governamental. Pois uma participação socialista no governo burguês composto a partir do parlamento, advertia ela, acabaria com a mais importante atividade socialista, a da educação política e esclarecimento das massas. Esta ênfase decorria do princípio socialista da luta de classes:

O único método com o qual podemos alcançar a realização do socialismo é a luta de classes. [6]

    A classe operária somente poderia conduzir uma luta pelo socialismo se aprendesse, ela própria, por seus métodos e organização construídos na luta, a opor-se à burguesia e a delinear seu caminho de modo independente.

A educação política nos termos da participação eleitoral conforme acima definida fazia parte deste aprendizado e era uma atividade importante do partido, mas secundária, subordinada à luta das massas.

Ao examinar o caso Dreyfus no mesmo contexto em outro artigo, Rosa deu ênfase ainda maior à luta de classes. Vale fazer a transcrição mais extensamente:

No artigo “Méthode socialiste” (Petit République, 3 de agosto), ele [Jaurès] parece colocar as atividades dos socialistas em um governo burguês no mesmo patamar que a sua atividade no parlamento, conselhos municipais, etc. “A verdade”, diz ele,

é que o socialismo hoje é forte o suficiente para se apropriar de todos os poderes, sem ser absorvido pela sociedade burguesa.

    Com isso, aceitaríamos o princípio da penetração do governo como um dos numerosos meios de ação socialista, mas isso não está em harmonia com o caráter essencial do socialismo. De acordo com nós, o ponto de vista que deveria servir como nosso guia foi desenvolvido por nós no artigo de 6 de julho, citado acima.

Não é que tememos aos socialistas os perigos e as dificuldades da atividade ministerial; não devemos afastar-nos de qualquer perigo ou dificuldade em relação ao cargo em que somos colocados pelos interesses do proletariado. Mas um ministério não é, em geral, um campo de ação para um partido da luta das classes proletárias. O caráter de um governo burguês não é determinado pelo caráter pessoal de seus membros, mas por sua função orgânica na sociedade burguesa. O governo do estado moderno é essencialmente uma organização da dominação de classe, cujo funcionamento regular é uma das condições de existência do estado de classe. Com a entrada de um socialista no governo, e com a dominação das classes continuando a existir, o governo burguês não se transforma em um governo socialista, mas um socialista transformou-se em ministro burguês.

A entrada de um socialista em um governo burguês não é, como se pensa, uma conquista parcial do Estado burguês pelos socialistas, mas uma conquista parcial do partido socialista pelo Estado burguês. [7]

A divisão entre reformistas e revolucionários no movimento socialista a propósito da tática eleitoral se manteve até a cisão causada pelas diferenças de atitude diante da guerra interimperialista de 1914-1918, quando a convivência entre estas correntes no interior do movimento socialista se tornou impossível e deu lugar ao agrupamento dos revolucionários, sob a liderança de Lênin e do partido bolchevique, na III Internacional, criada em 1919 [8] .

 

2 – Governos municipais: os interesses de classe em jogo

A maioria da população encara a eleição municipal como um fenômeno estritamente local, no qual acredita exercer uma influência pessoal, pois supostamente conhece os candidatos a prefeito e à vereança. Tal influência aparece em demandas do tipo asfaltamento de ruas, por exemplo, mas não é incomum, entre a parcela mais miserável, trocar o voto por uma pequena quantia de dinheiro, por uma “merreca” como se diz no jargão popular.

Lutar contra esta concepção que impede a consciência do processo que legitima a dominação política da burguesia pelo exercício do voto e da representação da vontade mediante delegação a um candidato é a tarefa daqueles que lutam pela superação da sociedade capitalista, mediante sua substituição pelo socialismo. E ainda que tal horizonte seja estranho ou pareça muito distante, o processo eleitoral constitui um momento em que a atenção popular está voltada para os candidatos e suas propostas, sendo possível questionar a dominação da burguesia e iniciar a tomada de consciência dos interesses dos trabalhadores enquanto classe.

No documento “O que queremos? Comentários sobre o programa da Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia” [9] datado de 1906, Rosa Luxemburgo defendeu a ideia de que, ao lado de temas de interesse de toda a população, existe uma variedade de temas públicos importantes para moradores desta ou daquela cidade. Temas que abrangiam desde a iluminação pública, passando pela manutenção de escolas, hospitais, estabelecimentos de ensino, abrigos, bibliotecas até corpo de bombeiros e os impostos recolhidos para manter tais serviços. Tais temas constituíam a chamada “administração municipal” que tinha um impacto, a cada passo, sobre “os interesses materiais e espirituais mais vitais da classe trabalhadora”.

Ao abordar estes temas Rosa Luxemburgo procurava chamar atenção para o fato de que nas cidades e no campo (nas aldeias) também se manifestava a divisão da sociedade em classes distintas e opostas, incluindo observações que para nós, mais de um século depois de escritas, parecem não conhecer o tempo pois a realidade se encontra do mesmo jeito. Assim, após ressaltar que aos trabalhadores interessa que os impostos da cidade sejam arrancados dos ricos proprietários nas cidades e no campo e não dos trabalhadores e que, no uso da arrecadação municipal para os serviços fosse considerada as partes da cidade onde moram os trabalhadores, ela então ela anotou:

Agora, as ruas, habitadas pelas esferas operárias e pela pobreza urbana, são geralmente estreitas, escuras, com calçamento ruim, e estão cheias de lixo e fedor. Por isso, esta população é a primeira a cair em casos de epidemias e doenças infecciosas.

    Quem vive nos bairros populares das cidades brasileiras conhece muito bem essa realidade. Pior ainda nas favelas menos consolidadas.

Outra importante observação que ela fez no escrito citado diz respeito ao fornecimento dos serviços municipais que não devia ser entregue

…nas mãos de empreendedores privados capitalistas, que ganhariam milhões com a população municipal, mas (organizados) de uma forma que os lucros de todos estes ramos da administração pública sigam para o caixa da cidade e da comunidade, para benefício da população.

    As reivindicações defendidas para o programa do partido social-democrata incluíam desde a intervenção do município na aquisição de terrenos adequados e a construção de moradias boas e baratas para a população trabalhadora, passando pela manutenção e acesso a todos de hospitais e escolas, até a existência de bibliotecas, teatros, salas para música, exposição de quadros, etc. aberta a todos e sem custos.

Rosa concluía não haver um único tema da administração municipal no qual os interesses da classe trabalhadora não fossem diferentes ou mesmo contrários aos interesses das classes burguesas.

Quando examinamos, porém, as medidas propostas por ela nos comentários acima apresentados percebemos a diferença da situação da que encontramos hoje em nosso país.

O fato de que o controle da administração pública estava nas mãos da burguesia exigia, para lutar contra esse domínio e em defesa da classe trabalhadora, que a administração municipal, ou seja, a prefeitura ou o “poder local” fosse dependente dos conselhos da cidade, do legislativo municipal, com representantes escolhidos por voto universal (na época ainda não era assim).

Como sabemos, os “conselhos” ou “câmaras municipais” constituem, na legislação brasileira, uma quase nulidade em termos de poder, indo pouco além de votar propostas orçamentárias dos prefeitos. A participação neste processo permite, contudo, a denúncia do jogo de cartas marcadas e abre a possibilidade da tomada de consciência dos interesses de classe no nível local, preparando, assim, a luta em escala nacional no momento oportuno.

Coletivo do CVM, 14/10/2020

Leia e divulgue o texto em pdf:
Eleições municipais de 15 de Novembro: política burguesa ou organização independente dos trabalhadores como classe? Contribuição para o debate

 

Notas
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[1] Lembramos, a propósito, que os dirigentes do Partido dos Trabalhadores também partilharam desse mesmo erro quando inscreveram, por um curto período, a palavra socialismo no programa do partido sem nunca estabelecer de que modo este objetivo final vinculava-se com a luta cotidiana dos operários e dos trabalhadores em geral.

[2] Disponível em https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1898/10/03.htm

[3] Erico Sachs. Marxismo e luta de classes: questões de estratégia e tática. CVM. Coleção Marxismo Militante, vol. 3, 2010. Disponível em http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Marxismo-e-luta-de-classe.pdf

[4] G.D.H. Cole. Historia del pensamiento socialista. Vol. III – La Segunda Internacional (1889-1914). Mexico, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1959, pp 306-7.

[5] O termo “possibilismo” decorria da afirmação de ser possível (possible, em francês) alcançar o socialismo por meio de reformas. A ele se opunha Jules Guesde que seguia a linha adotada pelo partido social-democrata alemão sob influência de Marx e de Engels. Esta corrente do movimento socialista francês tomou impulso a partir da adesão dos trabalhadores franceses à conquista da jornada de 8 horas proposta pela Associação Internacional dos Trabalhadores, com maior expressão entre 1891 e 1893, conforme indica Wolfgang Abendrot na obra “A história social do movimento trabalhista europeu” (Rio de Janeiro: Paz e terra, 1977, p.64).

[6] Disponível em https://www.marxists.org/espanol/luxem/02LacrisissocialistaenFrancia_0.pdf

[7] Rosa Luxemburgo. O Caso Dreyfus e o Caso Millerand. Disponível em https://lavrapalavra.com/2018/01/29/o-caso-dreyfus-e-o-caso-millerand/ Tradução de The Dreyfus Affair and the Millerand Case, disponível em https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1899/11/dreyfus-affair.htm

[8] Estratégia ou tática, reforma ou revolução: A questão das eleições do ponto de vista dos primeiros Congressos da Internacional Comunista (1919-1922), A tática eleitoral é apresentada no documento “El partido comunista y el parlamentarismo”, durante o II Congresso da Internacional. Encontra-se no arquivo Los cuatro primeros congresos de La Internacional Comunista nas páginas 117 a 126, no portal do CVM em: http://centrovictormeyer.org.br/estrategia-tatica-reforma-revolucao-questao-eleicoes-ponto-vista-congressos-internacional-comunista-1919-1922/

[9] Rosa Luxemburgo. Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.

 

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