O Fim do Neoliberalismo Reformista

Foto: Manifestantes em Chicago na luta por $15/hora de trabalho, 11 de Fevereiro de 2016  (Bob Simpson/Flickr)

Num momento de convulsão política, cabe à esquerda rejeitar as falsas escolhas oferecidas e aproveitar o descontentamento generalizado para redefinir os termos do debate.[1]

Nancy Fraser [2]

 

A eleição de Donald Trump representa uma de uma série de dramáticas manifestações políticas que juntas sinalizam um colapso da hegemonia neoliberal. Essas manifestações incluem a votação do Brexit no Reino Unido, a rejeição das reformas de Renzi[3] na Itália, a campanha de Bernie Sanders para a indicação do Partido Democrata nos Estados Unidos e o crescente apoio à Frente Nacional na França, entre outros. Embora difiram em ideologia e objetivos, esses motins eleitorais compartilham um objetivo comum: todos são rejeições da globalização corporativa, do neoliberalismo e das instituições políticas que os promoveram. Em todos os casos, os eleitores estão dizendo “Não!” à combinação letal de austeridade, livre comércio, dívida predatória e trabalho precário e mal pago que caracterizam o capitalismo financeirizado atualmente. Seus votos são uma resposta à crise estrutural dessa forma de capitalismo, que apareceu inicialmente à plena vista com o quase colapso da ordem financeira global em 2008.

Até recentemente, no entanto, a resposta principal à crise era o protesto social – dramático e vigoroso, com certeza, mas em grande parte efêmero. Os sistemas políticos, ao contrário, pareciam relativamente imunes, ainda controlados pelos funcionários de partidos e pelas elites do establishment, pelo menos em estados capitalistas poderosos como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha. Agora, no entanto, ondas de choque eleitorais reverberam em todo o mundo, inclusive nas cidadelas das finanças globais. Aqueles que votaram em Trump, como aqueles que votaram no Brexit e contra as reformas italianas, levantaram-se contra seus senhores políticos. Empinando o nariz para os partidos do establishment, eles repudiaram o sistema que erodiu suas condições de vida nos últimos trinta anos. Que eles tenham feito isso não é surpresa, mas sim porque eles demoraram tanto.

Entretanto, a vitória de Trump não é apenas uma revolta contra as finanças globais. O que seus eleitores rejeitaram não foi o neoliberalismo tout court, mas o neoliberalismo reformista. Isso pode soar para alguns como um paradoxo, mas é um alinhamento político real, embora perverso, que detém a chave para entender os resultados das eleições nos EUA e talvez alguns desenvolvimentos em outros lugares também. Em sua forma norte-americana, o neoliberalismo reformista é uma aliança das principais correntes de novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT), de um lado, e setores comerciais “simbólicos” e por outro de serviços de ponta (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças reformistas estão efetivamente unidas às forças reconhecidas do capitalismo, especialmente à financeirização. No entanto, inadvertidamente, o primeiro empresta seu carisma ao segundo. Ideais como a diversidade e o empoderamento, que poderiam, em princípio, ter objetivos diferentes, agora refletem políticas que devastaram a indústria e o que antes eram vidas de classe média.

O neoliberalismo reformista se desenvolveu nos Estados Unidos nas últimas três décadas e foi ratificado com a eleição de Bill Clinton em 1992. Clinton foi o principal engenheiro e porta-estandarte dos “Novos Democratas”, o equivalente americano do “Novo Trabalhismo” de Tony Blair. No lugar da coalizão do New Deal entre operários sindicalizados, afro-americanos e as classes médias urbanas, ele forjou uma nova aliança de empreendedores, suburbanos, novos movimentos sociais e jovens, proclamando sua boa-fé moderna e progressista ao abraçar a diversidade e o multiculturalismo, e os direitos das mulheres. Mesmo endossando tais noções progressistas, o governo Clinton cortejou Wall Street. Transferindo a economia para a Goldman Sachs, ela desregulamentou o sistema bancário e negociou os acordos de livre comércio que aceleraram a desindustrialização. O que caiu no esquecimento foi o Rust Belt[4] (Cinturão da Ferrugem) – outrora a fortaleza da democracia social do New Deal, e agora a região que entregou o colégio eleitoral a Donald Trump. Aquela região, junto com os centros industriais mais novos do Sul, sofreu um grande impacto à medida que a financeirização descontrolada se desdobrou ao longo das duas últimas décadas. Mantida por seus sucessores, incluindo Barack Obama, as políticas de Clinton degradaram as condições de vida de todos os trabalhadores, especialmente aqueles empregados na produção industrial. Em suma, o Clintonismo[5] tem uma grande parcela de responsabilidade pelo enfraquecimento dos sindicatos, o declínio dos salários reais, a crescente precariedade do trabalho e a ascensão da família de dois assalariados[6] no lugar do finado salário familiar.

Como esse último ponto sugere, o ataque à seguridade social foi encoberto por um verniz de carisma emancipatório, emprestado dos novos movimentos sociais. Ao longo dos anos, quando a indústria produzia crateras, o país falava em “diversidade”, “empoderamento” e “não discriminação”. Identificando “progresso” com meritocracia em vez de igualdade, esses termos equacionavam “emancipação” com a ascensão de uma pequena elite de mulheres “talentosas”, minorias e gays na hierarquia corporativa do tipo “o vencedor leva tudo”, ao invés da abolição desta última. Essa compreensão liberal e individualista de “progresso” substituiu gradualmente uma compreensão mais ampla, anti-hierárquica, igualitária, classista e anticapitalista da emancipação que haviam florescido nas décadas de 1960 e 1970. À medida que a Nova Esquerda diminuía, sua crítica estrutural da sociedade capitalista desapareceu, e a mentalidade liberal-individualista característica do país reafirmou-se, encolhendo imperceptivelmente as aspirações dos “progressistas” e dos autoproclamados esquerdistas. O que selou o acordo, no entanto, foi a coincidência dessa evolução com a ascensão do neoliberalismo. Um partido empenhado em liberar a economia capitalista encontrou seu parceiro perfeito em um feminismo corporativo meritocrático focado em “inclinar-se” [7]e “quebrar a barreira invisível”.

O resultado foi um “neoliberalismo reformista” que misturou ideais truncados de emancipação e formas letais de financeirização. Foi essa mistura que foi rejeitada em grande parte pelos eleitores de Trump. Destacados entre aqueles deixados para trás neste admirável mundo cosmopolita estavam trabalhadores industriais, com certeza, mas também gerentes, pequenos empresários e todos que dependiam da indústria no Rust Belt e no Sul, bem como populações rurais devastadas pelo desemprego e drogas. Para essas populações, o prejuízo da desindustrialização fora agravado pelo insulto do moralismo reformista, que rotineiramente os considerava culturalmente atrasados. Rejeitando a globalização, os eleitores de Trump também repudiam o cosmopolitismo liberal identificado a ele. Para alguns (de modo algum a todos), foi um passo curto para culpar a piora das suas condições de vida quanto ao politicamente correto, pessoas de cor, imigrantes e muçulmanos. Aos seus olhos, feministas e Wall Street eram farinha do mesmo saco, perfeitamente unidos na pessoa de Hillary Clinton.

O que possibilitou essa amálgama foi a ausência de qualquer esquerda genuína. Apesar de explosões periódicas, como Occupy Wall Street, que se revelaram de curta duração, não tem havido uma presença continuada da esquerda há várias décadas nos Estados Unidos. Tampouco existiu qualquer narrativa abrangente da esquerda que pudesse, por um lado, ligar as reivindicações legítimas dos partidários de Trump com uma crítica sólida da financeirização, e por outro com uma visão anti-racista, anti-sexista e anti-hierárquica de emancipação. Igualmente devastador, os vínculos potenciais entre o trabalho e os novos movimentos sociais foram deixados a definhar. Separados um do outro, esses polos indispensáveis de uma esquerda viável estavam a quilômetros de distância, esperando para serem negados como oposição.

Finalmente até a notável campanha primária de Bernie Sanders, que lutou para uni-los depois de algum estímulo do Black Lives Matter[8]. Rompendo o bom senso neoliberal reinante, a sublevação de Sanders foi o paralelo do lado democrata com relação a Trump. Mesmo enquanto Trump estava derrubando o establishment republicano, Bernie ficou a um passo de derrotar o sucessor ungido por Obama, cujos apparatchiks[9] controlavam cada alavanca do poder no Partido Democrata. Entre eles, Sanders e Trump galvanizaram uma enorme maioria dos eleitores americanos. Mas apenas o populismo reacionário de Trump sobreviveu. Enquanto ele facilmente derrotou seus rivais republicanos, incluindo aqueles favorecidos pelos grandes doadores e chefes do partido, a insurreição de Sanders foi efetivamente enquadrada por um Partido Democrata muito menos democrático. Na época da eleição geral, a alternativa da esquerda havia sido suprimida. O que restou foi o “se só tem tu, vai tu mesmo”[10] entre o populismo reacionário e o neoliberalismo reformista. Quando a pretensa esquerda cerrou fileiras com Hillary Clinton, a sorte estava lançada.

No entanto, e a partir daí, essa é uma escolha que a esquerda deve recusar. Em vez de aceitar os termos que nos são apresentados pelas máquinas políticas, que se opõem à emancipação da proteção social, deveríamos trabalhar para redefini-los, aproveitando a vasta e crescente base de repulsa social contra a ordem atual. Em vez de nos aliarmos à financeirização-emancipação contra a proteção social, deveríamos construir uma nova aliança de emancipação e proteção social contra a financeirização. Neste projeto, que se baseia no de Sanders, a emancipação não significa diversificar a hierarquia corporativa, mas sim aboli-la. E prosperidade não significa aumento do valor da ação ou lucro corporativo, mas os pré-requisitos materiais de uma vida boa para todos. Esta combinação continua sendo a única resposta de princípio e vencedora na atual conjuntura.

Eu, por exemplo, não derramo lágrimas pela derrota do neoliberalismo reformista. Certamente, há muito a temer de uma administração Trump racista, anti-imigração e antiecológica. Mas não devemos lamentar nem a implosão da hegemonia neoliberal nem a quebra do controle com mão de ferro do Clintonismo sobre o Partido Democrata. A vitória de Trump marcou uma derrota para a aliança da emancipação e financeirização. Mas sua presidência não oferece resolução da crise atual, nenhuma promessa de um novo regime, nenhuma hegemonia segura. O que enfrentamos, ao contrário, é um interregno, uma situação aberta e instável em que corações e mentes estão em disputa. Nesta situação, não há apenas perigo, mas também oportunidade: a chance de construir a renovação da Nova Esquerda[11].

Se isso acontecer, dependerá em parte de uma séria busca de consciência entre os progressistas que se uniram à campanha de Clinton. Eles precisarão abandonar o mito reconfortante, mas falso, que perderam para um “bando de deploráveis” (racistas, misóginos, islamofóbicos e homofóbicos) auxiliados por Vladimir Putin e o FBI. Eles precisarão reconhecer sua própria parcela de culpa por sacrificar a causa da proteção social, bem-estar material e dignidade da classe trabalhadora a falsos entendimentos de emancipação em termos de meritocracia, diversidade e empoderamento. Eles precisarão pensar profundamente sobre como podemos transformar a economia política do capitalismo financeirizado, reviver o bordão “socialismo democrático” de Sanders e descobrir o que ele pode significar no século XXI. Eles precisarão, acima de tudo, alcançar a massa de eleitores Trump que não são nem racistas nem empenhados como direitistas, mas eles mesmos vítimas de um “sistema fraudulento” que podem e devem ser recrutados para o projeto antineoliberal de uma esquerda rejuvenescida.

Isso não significa silenciar preocupações prementes sobre racismo ou sexismo. Mas isso significa mostrar como essas antigas opressões históricas encontram novas expressões e fundamentos hoje, no capitalismo financeirizado. Refutando o pensamento falso e de soma zero que dominou a campanha eleitoral, devemos articular os danos sofridos por mulheres e pessoas de cor àqueles experimentados pelos muitos que votaram em Trump. Dessa forma, uma esquerda revitalizada poderia lançar as bases para uma nova e poderosa coalizão comprometida em lutar por todos.

 

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Notas:

[1] Publicado em Dissent – https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser , em 02 de Janeiro de 2017.

 

[2] Nancy Fraser é professora de Filosofia e Política na The New School for Social Research, Nova York, EUA, e mais recentemente autora do livro Fortunas do feminismo: do capitalismo controlado pelo Estado à crise neoliberal (Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis , ed. Verso, 2013).

 

[3] Nota da Tradução: Matteo Renzi, Primeiro-ministro da Itália de 22 de fevereiro de 2014até 12 de dezembro de 2016, renunciando em meio a crise em torno de mudanças da lei eleitoral. Prometera “reformar o Senado para que deixe de ser um inconveniente à ingovernabilidade da Itália, construir uma nova lei eleitoral que retire dos pequenos partidos a possibilidade de bloquear a política, simplificar uma burocracia capaz de arruinar qualquer projeto. Mas, além disso, com uma linguagem direta que deixa o mais populista no chinelo, Renzi começou a vender carros oficiais, a distribuir uma ajuda de 80 euros –cerca de 240 reais– por mês aos cidadãos de rendas mais baixas em troca de diminuir os salários astronômicos dos dirigentes públicos, a ridicularizar a contribuição ao bem comum dos sindicatos, da cúpula empresarial, da RAI.” (Pablo Ordaz, El País, 23/06/2014,  https://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/23/internacional/1403548979_022204.html)

 

[4] NT: O Cinturão da Ferrugem é um termo pejorativo para a região dos Estados Unidos, composto principalmente pela região do Meio-Oeste e dos Grandes Lagos, embora o termo possa ser usado para incluir qualquer local onde a indústria tenha declinado a partir de 1980.

 

[5] NT: Clintonismo é um termo que designa a política econômica de Bill Clinton e sua esposa Hillary Rodham Clinton, bem como a era de sua presidência nos Estados Unidos.

 

[6] NT: two–earner family , isto é, casais com renda dupla, ambos os cônjuges ganham para a família, sendo que um dos cônjuges o trabalho é geralmente considerado secundário.

 

[7] NT: Lean in traduzido aqui como “inclinar-se” fisicamente (aproximar-se) para se fazer ouvir, expressão relacionada a ascensão das mulheres numa empresa.

 

[8] NT: Black Lives Matter,(BLM) traduzido como As Vidas Negras Importam, movimento ativista internacional, originada na comunidade Afro-americana, contra a violência direcionada as pessoas negras. Teve início em 2013 com o uso da hashtag #BlackLivesMatter em mídias sociais, após a absolvição de George Zimmerman na morte a tiros do adolescente afro-americano Trayvon Martin.

 

[9] NT: Apparatchik é um termo coloquial russo que designa um funcionário em tempo integral, um agente do “aparato” governamental ou partidário que ocupa qualquer cargo de responsabilidade burocrática ou política. Atualmente o termo é utilizado para descrever pessoas que tenham sido indicadas para um determinado cargo com base em sua lealdade ideológica ou política e não por sua competência, ou até mesmo alguém que se dedica cegamente a uma causa. (adaptado da Wikipedia)

 

[10] NT: Hobson’s choice, a escolha de Hobson, expressão que também signiifica “é pegar ou largar”, “ou tudo ou nada”.

 

[11] NT: A Nova Esquerda (New Left em inglês) refere-se aos movimentos políticos de esquerda surgidos em vários países a partir da década de 1960, se diferenciando dos movimentos de esquerda anteriores, voltados para um ativismo trabalhista, adotando um ativismo social. Nos Estados Unidos, a Nova Esquerda está associada aos movimentos populares, como o Hippie, os de protesto à Guerra do Vietnã e pelos direitos civis, que visavam a acabar com a opressão de classe, gênero sexual, raça e sexualidade. Na Europa, a Nova Esquerda foi um movimento intelectualmente dirigido, que buscava corrigir os erros dos antigos partidos de esquerda no período do pós-guerra. A Nova Esquerda voltou sua atenção para a cultura ocidental, tratando de temas como raça, gênero, sexualidade e elitismo, com a proposição de que o desenvolvimento deve ocorrer antes, ou pelo menos junto ao crescimento econômico. (adaptado da Wikipedia).

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