Um sonho escuro, heroico e terrível (sobre a experiência socialista na antiga URSS)

Eduardo Stotz

 

Apresentação

 

O capitalismo é um “sistema” historicamente condenado por suas características predominantemente destrutivas: trata-se de um modo de produção que gera, pela exploração da força de trabalho assalariada, simultaneamente riqueza e miséria social; por desconhecer limites, a expansão do modo de produção capitalista ameaça a vida em escala planetária; a competição generalizada e cada vez mais violenta entre as gigantescas empresas monopolistas, garantida pelos respectivos estados nacionais, agrava a tendência à militarização e à guerra.

A necessidade de um novo modo de produção e de organização da sociedade, destinado a superar o capitalismo, significa falar de uma fase de transição – o socialismo – no qual a classe operária, tendo conquistado o poder e expropriado os meios de produção da burguesia, exerça o controle da produção em novas bases e transforme o Estado em instrumento da maioria dos trabalhadores, de modo a assegurar esta transição.

Contudo não se pode defender o socialismo, propagandeando-o como alternativa ao capitalismo sem considerar criticamente a principal experiência socialista que teve lugar na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre 1917 e 1991. A consciência dos limites desta experiência pela vanguarda dos movimentos da classe operária, única classe radicalmente interessada em levantar a bandeira socialista, constitui uma condição para que o desafio seja assumido e possa, assim, iniciar uma nova etapa na história da humanidade.

O texto disponível para leitura e download é um estudo histórico acerca desta experiência. Escrito como um capítulo da obra intitulada “O tempo no planetário e outros ensaios”, em edição do próprio autor publicada em 2002, foi revisto e atualizado em 2008 e agora em 2022, tendo em vista sua publicação neste portal.

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La revolución rusa es el acontecimiento más importante de la guerra mundial. Esta a frase inicial do exame crítico da revolução russa, por Rosa Luxemburgo, é o fio condutor da análise destinada a combater o oportunismo no meio do movimento operário alemão, dominado pela perspectiva social-patriota e que conduzira a humanidade à catástrofe. A teoria “doutrinária” de que a revolução, por acontecer num país atrasado e essencialmente agrícola, deveria limitar-se a objetivos burgueses – teoria sustentada por Kaustky na Alemanha e os mencheviques na Rússia – foi duramente criticada com o intuito de demonstrar o sentido internacional dessa limitação. Rosa deixa bastante claro que tal teoria tende a eximir o proletariado internacional de sua responsabilidade diante da revolução russa. Em decorrência,

La insurrección de octobre no representó solamente la salvación de la revolución rusa, sino también la rehabilitación del socialismo internacional. [1]

O exame crítico da revolução russa não impediu Rosa de identificar problemas e apontar erros, ainda que ela própria não estivesse isenta de cometer erros de avaliação, principalmente por causa de seu longo período na prisão. Assim, em que pese seus equívocos na análise das medidas do governo dos sovietes – especialmente no que diz respeito à reforma agrária e à defesa da autonomia nacional –, a obra de Rosa Luxemburgo revelou-se acertada quanto aos seus prognósticos.

No manuscrito sobre a revolução russa, ela expressou divergências importantes com Lênin a respeito da ditadura do proletariado na transição para o socialismo no primeiro ano da revolução:

Lenin dice que el Estado burgués es un instrumento para la opresión de la clase obrera, y el Estado socialista un instrumento de opresión de la burguesia. Este último seria simplesmente el Estado capitalista invertido y puesto de cabeza. Esta Concepción simplista olvida lo esencial: el dominio de clase burgués no tenía necesidad de una instrucción y de una educacción política de las masas populares, por lo menos más allá de ciertos limites muy estrechos. Para la dictadura proletaria, en cambio, ambas cosas constituyen el elemento vital, el aire, sin el cual no podría subsistir.

(…)

La práctica socialista exige una completa transformación espiritual en las masas degradadas por siglos de dominación burguesa. Instintos sociales en lugar de instintos egoístas, iniciativa de las masas en lugar de inercia, idealismo capaz de pasar por encima de cualquer sufrimiento, etc. Nadie lo sabe mejor, lo describe com más eficácia, lo repite com más obstinación que Lenin. Sólo que él se engaña completamente sobre los medios. Decretos, poderes dictatoriales de los inspectores de fábrica, penas draconianas, reinado del terror, son todos paliativos. El único camino que conduce al renacimiento es la escuela misma de la vida publica, de la más ilimitada y amplia democracia, de la opinión pública. Es justamente el terror lo que desmoraliza.

Rosa acreditava que os bolcheviques caminhariam na direção da ditadura do proletariado, como sistema de aplicação mais radical da democracia, não fossem as dramáticas e fatais circunstâncias em que se dava a revolução. Nas notas há uma advertência e um prognóstico. Adverte para o perigo de se transformar a necessidade em virtude, de se cristalizar na teoria a tática que os revolucionários se viram obrigados a adotar por causa destas mesmas circunstâncias. Mas estes eram os limites de uma ação verdadeiramente revolucionária, e cabia distinguir entre o essencial e o acessório. A conquista do poder e a formulação prática da realização do socialismo pelos bolcheviques expressavam o que havia de essencial e imperecível, era o seu mérito histórico.

Contudo, um novo passo dependeria do avanço da revolução em outras partes do mundo. Eis o prognóstico: En Rusia el problema sólo pudo ser planteado. No podía ser resuelto alli. Y en este sentido, el porvenir pertenece en todas partes al socialismo.

Um país excessivamente atrasado do ponto de vista material e cultural como a Rússia – predominantemente agrário e de industrialização incipiente – não poderia mais do que iniciar uma era de revoluções. Para os marxistas, o socialismo expressaria o desenvolvimento superior de forças produtivas já avançadas no interior do capitalismo. Consequentemente, para seguir adiante, a revolução russa precisaria contar com o apoio revolucionário externo; tal apoio parecia vir precisamente da Alemanha.

Durante os breves meses de outubro de 1918 a janeiro de 1919, marinheiros e operários alemães organizados em conselhos (rätte) instauraram a república democrática. Mas, paradoxalmente, enquanto a vanguarda operária queria a revolução, as amplas massas dessa classe, organizadas nos sindicatos social-democratas, seguiam sob a influência da social-democracia, que pretendia manter suas posições e, no máximo, arrancar reformas à burguesia.

Como explicar o paradoxo? O conhecido provérbio “entregar os anéis para não perder os dedos” pode ajudar a compreender a excepcional situação da luta de classes na Alemanha naquele momento. Na medida em que o calor revolucionário, em meio à fogueira que arrastava para a esquerda os trabalhadores do recém-desmoronado império austro-húngaro, aumentava, a burguesia resolveu, para salvar a ordem, convocar os socialdemocratas de direita para o governo. Deixou-se aparentemente levar pela revolução para não ser vencida por ela, escreveu Victor Serge.

Nos conselhos operários – arbeiterräte – havia muitos reformistas que agora, podiam dizer “sim, estamos no poder”. Enquanto conclamavam as massas a aguardar as eleições em ordem, mantiveram nos postos de comando os generais reacionários e romperam as relações diplomáticas com a Rússia Soviética. A minoria revolucionária do proletariado, agrupada na Liga Spartacus e no Partido Social-democrata Independente, exigia a ditadura do proletariado. O desfecho dessa situação foi dramático. O governo decidiu usar a força para restabelecer a ordem, lançando mão do conhecido estratagema de uma sangrenta provocação em Berlim. À precipitada ofensiva dos revolucionários que decidiram decretar a insurreição, seguiu-se o massacre praticado por Freikorps (grupos paramilitares), sob a direção do social-democrata de direita, Gustav Noske, ministro da Defesa do governo social-democrata de direita presidido por Friedrich Ebert. Os líderes do recém-organizado Partido Comunista Alemão, Karl Liebcknecht e Rosa Luxemburg – detidos como promotores da guerra civil –, foram assassinados no dia 15 de janeiro de 1919. [2]

Apesar da derrota da revolução alemã, o sentimento dominante nos militantes de esquerda era o de que o mundo atravessava um período revolucionário. Foi com esta expectativa que as facções revolucionárias dentro da social-democracia europeia apoiaram, sob iniciativa dos bolcheviques, a fundação da Internacional Comunista em 1919. A iniciativa representava, também, a influência determinante de um partido vitorioso, com uma tradição de luta e de organização forjada na resistência à autocracia czarista, uma tradição estranha aos grupos de esquerda da Europa ocidental.

Os bolcheviques, tal como os recém-criados partidos comunistas europeus, não haviam percebido o esgotamento da onda revolucionária e nem o início de uma fase de estabilidade relativa na economia capitalista mundial. Mais ainda, eles resistiram a aceitar que a maioria da classe operária na Alemanha, e nos países capitalistas mais adiantados da Europa, ainda seguia uma liderança reformista, ainda procurava aprofundar sua participação política e manter algumas de suas conquistas dentro da ordem burguesa. Apenas em 1923, após o fracasso da última tentativa revolucionária na Alemanha, as esperanças em torno da revolução mundial imediata foram abandonadas. Foi também o momento em que Lenin reconheceu publicamente, na forma de uma autocritica, o erro do enquadramento dos partidos ocidentais na concepção russa de organização [3].

O problema consistia em que as adesões à Internacional advinham de partidos fracos teoricamente, sem experiências e tradições revolucionárias próprias – vislumbradas, aliás, por Lenin na obra “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (1920). Esta situação não projetava, como assinalou Ernesto Martins, a fusão da teoria revolucionária do marxismo – tal como desenvolvida pelo partido russo – com o movimento operário existente. Há de se observar a relutância os revolucionários alemães, divididos em correntes distintas, assumir uma posição formal de adesão à Internacional Comunista. Estavam ali mais em busca de esclarecimentos, como assinala Carr em seu ensaio sobre a Revolução Russa. Abendroth afirma que Hugo Eberlein, o delegado alemão no congresso, finalmente resolveu concordar em abster-se de votar sobre a questão da fundação, o que queria dizer que nada mais se opunha à constituição da Internacional Comunista.

A onda revolucionária iniciada em 1919 com a revolução alemã, italiana e húngara, havia se esgotado no começo da década seguinte, deixando um rastro de derrota e desorganização no movimento operário europeu. Mas apenas em 1923 a consciência desse esgotamento se traduziu numa viragem radical do rumo da revolução na Rússia.

 

Uma imagem do cerco imperialista da Rússia soviética

O filme E la nave va (1983), de Federico Fellini, serve-nos de inspiração para trazer outras imagens do período da primeira guerra mundial que envolve a Europa, então centro do mundo capitalista, a saber, das tentativas revolucionárias de sua superação.

Em julho de 1914, um grupo de admiradores da maior cantora lírica de todos os tempos, Edmea Tetua, parte da Itália, a bordo do Gloria N. rumo à ilha de Érima. O objetivo da viagem? Assistir ao funeral da cantora que, segundo vontade expressa em testamento, determinou a dispersão de suas cinzas naquela que fora sua ilha natal. Uma rota romântica, como diz a canção.

Na obra felliniana, o navio afunda como consequência da guerra. Mas salvam-se, num bote à deriva no oceano, o narrador e o rinoceronte (o “capitalismo”). Provavelmente o autor tenha pretendido falar do fim do cinema como arte individual, substituída pela indústria cinematográfica, porém como toda obra de arte é aberta para múltiplas leituras, ao incorporar inúmeras ressonâncias. Mas ele também poderia querer, através dessa alegoria, manifestar sua percepção sobre o fim de um tipo de sensibilidade, de uma relação que sacralizava como arte toda e qualquer manifestação dos artistas.

Fazemos aqui uma leitura própria: podemos imaginar nesse naufrágio o fim de uma cultura que estava associada ao movimento socialista constituído em fins do século XIX e que entrou em colapso com a aprovação dos créditos de guerra pelos representantes deste movimento na Alemanha e França em 1914 e a adesão à guerra fraticida.

Em abril de 1916, no curso da guerra, em meio à ditadura militar e à censura à imprensa, ao denunciar o chauvinismo da socialdemocracia na Alemanha, Rosa Luxemburgo ainda sonhava com a revolução que viesse resgatar a humanidade:

No nosso navio, transportamos os mais preciosos tesouros da humanidade, confiados à guarda do proletariado, e se bem que a sociedade burguesa, difamada e desonrada pela orgia sangrenta da guerra, continue a precipitar-se para a própria perda, é necessário que o proletariado internacional se corrija, e fá-lo-á, para reunir os tesouros que num momento de confusão e fraqueza, no meio do turbilhão desencadeado pela guerra mundial, deixou escorregar para o abismo. [4]

O nosso navio, diz ela. A imagem de uma passagem do filme de Fellini com os operários da casa de máquinas, em aliança com parte dos tripulantes, dirigindo um motim para assumir o controle do navio, vêm-nos imediatamente à mente: é como se o movimento operário socialdemocrata alemão, com sua grande rede de sindicatos, movimentos de jovens e de mulheres, círculos de leitura e clubes esportivos, à cabeça do qual se colocava, com a imprensa de um lado e a tribuna parlamentar de outro, o partido, estivesse prestes a se desprender da sociedade burguesa.

O turbilhão da guerra mundial no qual este partido submergira, bloqueou este caminho. Porém gerou, no outro lado da trincheira, ao leste, na Rússia, a possibilidade deste desprendimento: milhares de soldados voltaram às armas contra seus próprios oficiais e depuseram, em seguida, a autocracia czarista. Entre fevereiro e outubro de 1917, o país oscilou entre dois poderes, o da democracia burguesa transformada em Assembleia Constituinte e o da democracia operário-camponesa organizada nos conselhos de deputados (sovietes). A insurreição militar sob a liderança dos bolcheviques decidiria o rumo da revolução em favor dos sovietes e do socialismo.

Rosa escrevera, no opúsculo de 1918 acima referido: a revolução significou a reabilitação do socialismo internacional.

Sim, os preciosos tesouros da humanidade foram confiados à guarda do proletariado russo, mas sob as mais terríveis condições.

Uma imagem de grande impacto emocional capaz de resumir a memória desta experiência revolucionária, compartilhadas por milhões de pessoas, foi-nos legada por Antonio Gramsci numa carta data de 18 de abril de 1927. Nesta, para explicar à esposa, Julija Schucht, seu estado no cárcere de Milão, recorre a uma metáfora concreta, a narrativa da viagem de Nansen ao Polo Norte. Novamente aqui aparece a imagem da sociedade como um navio, agora já desprendido da sociedade burguesa:

Nansen, tendo estudado as correntes marinhas e área do Oceano Ártico, depois de observar que se encontravam nas praias da Groenlândia arbustos e detritos que deviam ser de origem asiática, pensou que poderia alcançar o Polo ou pelo menos suas proximidades, fazendo com que a nave fosse transportada pelo gelo flutuante. Assim, deixou-se aprisionar pelo gelo e durante três anos e meio sua nave se movimentou apenas quando, lentissimamente, deslocavam-se os blocos. Meu estado de espírito pode ser comparado aos marinheiros de Nansen durante esta viagem fantástica, que sempre me tocou por sua ideação. [5]

A imagem da nave carregada pelas correntes marinhas avançando lentamente em meio aos gigantescos blocos de gelo é de uma grandeza de fato heroica. E trágica. Se tivermos em mente o propósito político desta metáfora de grande força, na qual Gramsci se vê como um marinheiro, entenderemos o navio dirigido por Nansen rumo ao Polo como o partido revolucionário que, com o único apoio da Internacional Comunista, tenta conduzir uma faminta e desesperada Rússia – depois de três anos de guerra civil (1918-1920), na qual foram vitimadas mortalmente mais de 10 milhões de pessoas – a caminho para o socialismo, uma nau flutuante à deriva das águas densas, geladas e mortais do Oceano Ártico, expressão do cerco que lhe fizeram as potências do mundo capitalista ao sustentar militar, financeira e logisticamente a contrarrevolução.

 

O período da NEP

Desesperadamente sós: ao olharem para dentro das fronteiras da Rússia, os bolcheviques se depararam com a situação paradoxal de terem vencido a guerra civil (1918-20) e de controlarem absolutamente o poder em meio a uma economia industrial quase inoperante em virtude dos efeitos destrutivos da guerra mundial e em seguida, da guerra civil.

No campo, a reforma agrária, posta em prática imediatamente após a conquista do poder, consistiu em repartir, entre milhões de pequenos camponeses, as terras da grande propriedade nobiliárquica. Em seu estudo sobre a coletivização agrária, Fábio Bettamini analisa as contradições desse processo. Ele demonstra como, em decorrência da distribuição das terras na fase inicial da revolução, o consumo alimentar aumentou muito, ao mesmo tempo em que os camponeses médios (seredniaks) e ricos (kulaks) não tinham interesse em se desfazer de suas reservas de trigo e outros cereais em troca de produtos industriais a preços exorbitantes. Em consequência, o resultado da reforma agrária do governo bolchevique foi o fortalecimento do camponês rico, do kulak.

Por outro lado, as plantas industriais estavam praticamente destruídas e a maioria da classe operária também. Assim, ao falar em nome dos interesses dos operários e de sua aliança com os camponeses, o partido fazia, na verdade, uma declaração em nome dos interesses futuros do proletariado. Inevitavelmente, tal situação fortaleceu o processo de burocratização do Estado e, depois, do próprio partido. Essa consciência ainda era bastante limitada e mesmo parcial entre os dirigentes do partido. Alexandra Kollontai e a Oposição operária haviam chamado atenção para o problema e, em seguida, responsabilizado os dirigentes, entre 1920-21, numa polêmica áspera que dominou uma parte do X Congresso (março de 1921) do partido. O assunto somente tornou-se alvo da preocupação de Lênin dois anos mais tarde. É importante considerar, a esse respeito, a chamada Carta ao Congresso – notas ditadas nos dias 23, 24 e 26 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923 –, documento no qual ele registrou suas preocupações com a situação interna do Partido e alertou para os riscos da polarização política dentro de uma estrutura decisória fortemente concentrada no Secretariado Político.

As preocupações da maioria absoluta dos bolcheviques encaminhavam-se, porém, noutra direção. Estavam voltadas para a gigantesca tarefa de retirar a economia do país da estagnação. Reconstruir a economia significava também afastar a ameaça de contrarrevoluções e de intervenções estrangeiras. Uma ameaça real, pois entre 1920 e 1921 registraram-se mais de 130 levantes camponeses na Rússia central, aconteceram greves operárias em Petrogrado e em março de 1921 eclodiu a rebelião armada dos marinheiros do Kronstadt, base naval de Petrogrado.

A revolta dos marinheiros desafiava a lógica da própria revolução, pois aquela base naval tinha sido um dos focos da revolução de 1917. Em 1921, contudo, a revolta dos marinheiros era um eco do descontentamento dos camponeses. Pior ainda, eles seguiram a liderança da oposição aos bolcheviques. Ouviu-se, pela primeira vez desde 1917, o grito sovietes sem os comunistas! O motim foi sufocado militarmente.

O malogro da colheita de 1921, em meio a terrível seca, dramatizou ainda mais a situação, pois a perda da safra disseminou a fome (e fez reaparecer o canibalismo) no ano seguinte, e afetou não menos de 22 milhões de pessoas. Em decorrência, o mercado se impôs de modo incontrolável sobre o monopólio estatal do comércio. Fez-se necessário, portanto, dar um passo atrás, estabelecer uma aliança entre o setor socialista – representado pelo capitalismo de Estado – com a pequena produção mercantil e o capitalismo privado. Os passos atrás entraram para a história da revolução como a Nova Política Econômica (NEP); a revolução tinha de recuar frente à fome e a desorganização da economia.

Entretanto, prevaleceu a concepção “economicista” da NEP, em detrimento da conquista política do campesinato pobre. [6]

“Economicismo” significava encarar a aliança entre operários e camponeses do ponto de vista das trocas mercantis sob controle do Estado, um aparelho a possuir apenas um “verniz” soviético; as relações entre operários e campesinato passaram a ser mediados por esse aparelho burocratizado. Não é difícil entender porque os novos delineamentos da estratégia propostos por Lênin não foram assimilados e aceitos pela maioria do partido. A prioridade era restabelecer a produção industrial e isso significava assegurar a alimentação dos trabalhadores urbanos. A criação da premissa material do socialismo tornou-se uma obsessão dos bolcheviques. As fábricas não podiam funcionar se o Estado não dispusesse de uma reserva suficiente de produtos alimentícios e combustíveis. Não havia como garantir essas reservas exclusivamente através dos mecanismos do mercado, dentre os quais o sistema comercial baseado no chastinik, o comerciante privado. Então, frente à utilização cada vez mais frequente de pressões extraeconômicas, o próprio sentido, quer dizer, os limites da NEP, estava em jogo.

Ao longo dos anos da NEP, o número de pequenas propriedades passara de 21.008.600 em 1916 para 25.095.900 em 1927, um aumento de praticamente 20%, enquanto a população no campo aumentara, no mesmo período, de 119, 2 milhões para 127,6 milhões. Nessas propriedades, onde imperavam métodos dos tempos faraônicos, os camponeses pobres conseguiam produzir um pouco mais comida para si mesmos, mas eram incapazes de gerar excedentes. As cooperativas cresciam, por outro lado, de modo exasperadamente lento. [7] Conclusão inevitável: os alimentos tinham de vir dos kulaks. Mas em face de bens industriais escassos e caros, eles passaram a especular com o preço dos cereais. Entre 1924 a 1928 as crises de fornecimento de alimentos se sucederam e intensificaram. Os anos da “batalha do trigo” (1928-29) – caracterizada pela diminuição da entrega de trigo e centeio, especulação, requisição forçada, atos terroristas contra ativistas e instituições soviéticas e, principalmente, de queda da produtividade nas propriedades dos kulaks – deixaram patente que a Nova Economia Política (NEP) estava definitivamente acabada. Então, em fins de 1929 e começos de 1930, sem qualquer mudança no discurso leninista, o partido deu uma violenta guinada na sua política e iniciou a coletivização. Que, nestas circunstâncias, somente poderia ser levada a termo através de uma brutal coerção.

 

A coletivização

Coletivização plena foi, segundo Fábio Bettamini, uma política destinada a provocar uma ruptura entre dois mundos: o mundo imóvel, atrasado e paroquial do camponês disposto a considerar o kulak como modelo e o novo mundo do campo coletivizado, no qual o camponês seria conquistado para trabalhar no kolkhoz (fazenda coletiva) segundo as metas do plano quinquenal. Mais do que viabilizar a economia agrária, o secretariado político do partido comunista da União Soviética, sob a liderança de Stálin, tinha em mente submeter o campesinato e a potencial ameaça contrarrevolucionária que o mesmo representava ao poder soviético nas cidades.

Algumas particularidades importantes no processo de coletivização precisam ser aqui registradas. Em abril de 1929, a XVI Conferência do Partido adotava os princípios da industrialização e da coletivização. A maioria da direita (o ponto de vista de uma política de concessões ao campesinato, representada, no comitê central, por Bukharin) submeteu-se. De acordo com a XVI Conferência, a coletivização deveria abranger, em cinco anos, 26 milhões de hectares ou 17,5 % das terras cultiváveis e contribuir com 15,5% da produção de cereais.

Mas Stalin e o Secretariado Político decidiram alcançar mais rapidamente as metas, numa evidente radicalização à esquerda que implicaria o uso da violência do Estado em larga escala. No dia 5 de janeiro de 1930, o comitê central reviu sua posição, e estabeleceu a completa coletivização das regiões mais importantes num prazo máximo de um ano e meio. Em cinco meses, mais da metade do total das propriedades camponeses havia sido submetida ao controle público.

A coletivização, para ser bem sucedida, deveria contar com a convicta participação dos camponeses. Contudo, a organização do Partido no campo era muito frágil. Por volta de 1928, o Partido dispunha de 23.458 células, com uma média de pouco mais de 10 membros, as quais não conseguiam reunir mais do que um terço dos cerca de 72 mil sovietes rurais da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ora, isso não passava de uma “gota no mar” de 120 milhões de pessoas da população rural soviética. Apesar da posição defendida por Lenin de que o campesinato pobre deveria ser a base de sustentação do poder soviético no campo, o Partido não dedicara maior atenção a esse trabalho.

Diante das limitadas bases de apoio do Partido no campo, o terror vingou como método mais usado. Isso significou prisões, deportações, expropriação dos bens, humilhações, obviamente além do que seria admissível segundo a diretiva da expropriação dos camponeses ricos, a chamada “deskulakização”. Os camponeses médios, a burguesia urbana e a igreja foram igualmente atingidas. Em julho de 1930, a expropriação atingia 191.035 fazendas de kulaks e 77.795 famílias tinham sido deportadas até o final daquele ano. Mesmo assim, houve enorme resistência, manifestada principalmente pela liquidação sistemática dos rebanhos. Nas palavras de Bettamini, foi um processo de proporções bíblicas. Para uma estimativa quantitativa do fenômeno, vejam-se os dados da tabela abaixo:

Gado em milhões de cabeças

Anos

Diferença em %

1916

1929 1930 1931 1932 1932-1916

1932-1929

Equinos

35,1

34 30,2 26,2 19,6 44,2

42,4

Bovinos

58,9

68,1 52,5 47,9 40,7 30,9

40,2

Ovinos

115,2

147,2 108,8 97,7 52,1 54,8

64,6

Suinos 20,3 20,9 13,6 14,4 11,6 42,9

44,5

Fonte: Fábio Bettamini (1981)

Além disso, a fuga dos kolkhozes e os atos de terrorismo seguiramse à tentativa de coletivização forçada e assumiram, no Cáucaso setentrional, a forma de rebelião. Ainda segundo Bettamini, ocorreram episódios de rebelião armada na Transcaucásia e Ásia central.

Os insucessos na colheita refletiram o fracasso da política de coletivização: os números caíram de 71,7 milhões de toneladas de cereais em 1929 para 65 em 1931 e 69,9 em 1932. A produção de carne, em razão da matança em massa dos animais, diminuiu em 1.797 mil toneladas, no mesmo período.

A queda da produção e a carestia conjugaram-se para gerar uma epidemia de fome, com maior intensidade na Ucrânia, Cáucaso setentrional (sobretudo no Kuban), nos baixo e médio Volga e no Casaquistão. As estimativas sobre o custo em vidas humanas são divergentes e, sua magnitude – que oscila entre um milhão e 10 milhões de pessoas mortas de inanição – deixam patente tanto a falta de dados quanto o viés ideológico das análises. Segundo Bettamini, um demógrafo descobriu um déficit na taxa de crescimento demográfico, entre 1927 e 1939, da ordem de 5,5 milhões de pessoas. Mas as migrações e a queda da natalidade ligada à urbanização também desempenharam, ao lado da carestia, um papel importante na explicação desse déficit. É provável que a fome tenha alcançado uma cifra expressiva e que as execuções em massa e principalmente deportações para os campos de trabalho – onde a maioria dos prisioneiros terminou os seus dias – tenham aumentando ainda mais os números da tragédia da coletivização.

O fracasso da política agrária não poderia deixar de provocar uma reação dentro do Partido. Mas a liderança direitista (Bukharin, Tomsky e Rykov) recusou-se a agir contra Stálin, porque lhes era impensável lançar-se contra o Partido com o apoio do campesinato. Em resposta a esta ameaça, Stalin conseguiu o desligamento dos oponentes e o Secretariado Político tornou-se um aparelho exclusivamente estalinista.

O terror marcou a história deste período. Mas nenhuma forma de dominação se impôs durante muito tempo apenas pelo emprego da força. Assim, na URSS, se a repressão aparecia como uma necessidade para eliminar os “inimigos do povo”, era preciso, por outro lado, exemplos positivos. Esses exemplos existiram e numa escala que os críticos não poderiam supor. Dentre muitos, o terror estalinista selecionou alguns para transformá-los, através da propaganda, em mitos de heroísmo na edificação do socialismo. Um deles é o mito dos filhos do comunismo, construído pela burocracia estalinista sobre o terreno de um evento dramático; esse evento envolveu a família Morosov, e aconteceu em Gerasimkov, aldeia da cidade de Tavda, nos Urais, na fase inicial da coletivização das propriedades camponesas. [8]

Pavlik Morozov tinha 12 anos quando foi assassinado, em 6 de julho de 1932, no bosque de Gerasimkov. Qual é a versão oficial do evento? Gerasimkov era um campo de trabalho para os deportados, dentre os quais existiam alguns mais ricos. O pai de Pavlik, presidente do Conselho da localidade, usava essa prerrogativa para vender documentos aos exilados que desejavam voltar a Kuban [9]. O filho perguntava por que ele fazia isso e encontrava a resposta “isso não lhe interessa”. Além disso, o pai roubava grãos e carne. Denunciado pelo filho, o homem foi julgado com outros quatro daquela região e condenado a 10 anos de trabalhos forçados num campo de trabalho. Não se teve mais notícias dele. Houve mais de 50 pessoas presas. No julgamento público viram-se condenados à morte (ao que parece sem provas) 11 pessoas.

Algum tempo depois, o governo estalinista percebeu a oportunidade de transformar o evento num episódio exemplar. O início do processo da criação do mito foi converter Pavlik em herói, para dar aos pioneiros comunistas o exemplo da luta contra os kulaks e da abnegação da vida em prol da coletivização, etapa necessária do socialismo. Seu retrato estava presente em todas as salas de aula e os grupos de pioneiros disputavam levar seu nome. Pavlik personificou as mudanças na vida do povo russo sob a coletivização e tornou-se o exemplo da lealdade ao Estado.

Nos anos 30, a reforma do código penal abriu a possibilidade da aceitação de denúncias de menores. Em 1935, o cineasta Serguei Eisenstein iniciou, solicitado pelo PCUS, um filme sobre o caso de Pavlik, o pioneiro. Ele considerou-o um dos conflitos mais marcantes da URSS, mas deu-lhe um sentido trágico. Eisenstein presenciou a destruição e a reconstrução da igreja como um clube, no qual se ergueu a Casa de Cultura que levou o nome de Pavilk Morosov. O filme acabou sendo destruído.

Muito tempo depois (por volta de 1954), foi erguido em Tavda um monumento em memória do menino. Procissões de pioneiros eram regularmente feitas ao local da cripta construída no meio do bosque de Guerasimkov. Construíram também um parque em seu nome na capital, Moscou.

O caráter grotesco da farsa se evidencia nas 35 versões diferentes da história criadas na URSS. A fotografia original foi falsificada. Enfim, um pesquisador, Maslov, graças ao estudo do processo judiciário número 794, pôde estabelecer uma versão mais próxima da realidade.

A tragédia pessoal de Pavlik Morosov começou quando o pai abandonou a família e deixou a esposa Tatiana sozinha com seus quatro filhos. Pouco depois o sogro pediu o terreno que havia dado como presente de casamento. Isso significava, nas condições da época, condenar a família à morte por fome. Então aconteceu o episódio que serviu de fio condutor à tragédia. O pai devia fazer o pagamento de impostos em espécie, mas o produto não foi encontrado pelos inspetores. Pavlik contou-lhes que o produto do imposto se encontrava na casa do avô, onde agora o pai morava. O ódio pelas perdas alimentou um profundo ressentimento contra o menino e motivou a sua eliminação. No tribunal, o avô declarou-se culpado de um conflito por causa de terras! Maslov não encontrou no processo 794 nenhum relatório com acusações de Pavlik contra seu pai. Concluiu, então, que o evento fora uma tragédia pessoal a envolver um menino camponês, simples, que mal sabia ler e escrever e seu irmão menor, Fedya, tragédia politizada pelo regime estalinista.

O mito começou a ser desconstruído a partir de 1988, no contexto da Glasnot. Neste ano, a revista Yunost publicou um artigo apresentando Pavlik como símbolo da traição ao próprio pai, aos valores da família e do indivíduo em prol do Estado. No ano seguinte, o parque foi removido, a estátua derrubada e a terra devolvida à Igreja Ortodoxa. Pavlik Morosov continuava a ser alvo de manipulação, apenas agora em sentido oposto, demonizado pelos que haviam acabado com a URSS. Apenas recentemente começou-se a perceber que ele não foi nem herói do comunismo, nem traidor do pai, mas apenas um garoto miserável e talvez estúpido, uma vítima de seu tempo.

 

O socialismo de Estado

A imposição dos kolkhozes abriu caminho para a constituição de um “mercado de trabalho” capaz de dar arranque da industrialização pesada, segundo os objetivos e metas do primeiro plano quinquenal. O novo operariado era visto com muita desconfiança pelos dirigentes do partido. A desconfiança em relação a esses operários oriundos do campo tinha aparentemente suas justificativas nos métodos da coletivização. Entretanto, a falta de tradição operária tornou-se uma justificativa permanente para a planificação social da produção e da distribuição da riqueza organizada pela burocracia, em detrimento da participação da classe operária.

A experiência da planificação teria sido outra com a participação dos operários, na condição de produtores e de consumidores. Ao invés da ação consciente das massas de trabalhadores capazes de identificar qualidade e custos dos produtos, preferência e quantidade de bens, o plano era expressão de uma estatística social permanentemente distorcida pelas limitações da burocracia e dos interesses de poder entre seus múltiplos segmentos. Mais tarde, diante da falência da planificação, os mecanismos de mercado acabaram por impor-se, não oficialmente, mas através do mercado negro, e se instituiu, assim, uma economia dual.

Quais foram, em linhas gerais, a relação entre classe operária e burocracia, na sociedade soviética?

De acordo com Victor Meyer ao longo dos anos 20, principalmente a partir de 1925, quando a produção industrial se equiparou à agrícola, teve curso o enquadramento dos sindicatos na lógica da acumulação sob a planificação. Escalas diferenciais e taxas de salários, pagos por produção, foram apresentadas como emulação socialista do trabalho. Os sindicatos tinham também uma função de defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores. Mas o seu comprometimento, a partir de 1926, com a política governamental de aumentar a produtividade e assegurar o êxito do plano quinquenal, tornava esta função praticamente letra morta [10]. A burocracia impôs uma disciplina de trabalho rígida e impediu a mobilidade da força de trabalho. Nos processos de trabalho instituiu-se o “stakhanovismo”, isto é, métodos de intensificação do trabalho e pagamento segundo os resultados – o sucedâneo soviético do taylorismo.

A resistência dos trabalhadores, embora molecular, manifestou-se de modo generalizado no absenteísmo, na indisciplina e nos atrasos; as atitudes dos gerentes das fábricas envolveram outro tipo de problemas, como demissões sem autorização e demanda excessiva de força de trabalho. Para refrear estes processos, o governo instituiu, ao longo dos anos 30, uma legislação punitiva que incorporou e ampliou sucessivamente o conceito de crime político [11].

Nenhuma sociedade pode funcionar, a longo prazo, submetida a uma coerção contínua. De fato, a participação no esforço de industrialização acelerada, sob orientação dos planos quinquenais, teria de ser acompanhada de benefícios materiais. As campanhas “stakhanovistas” tinham de trazer ganhos concretos, mesmo que para uma parte pequena do proletariado. Além de projetar um ideal de futuro, capaz de justificar os sacrifícios e a desigualdade do presente em nome dos benefícios vindouros, as campanhas serviam, simultaneamente, aos propósitos de disciplinar a força de trabalho e impedir a solidariedade de classe. A esse respeito Deutscher escreveu o seguinte:

O braço forte da burocracia impôs-lhes (aos operários) a disciplina de trabalho estalinista: a burocracia, e só ela, determinou a orientação da política econômica, as metas dos Planos Quinquenais, o equilíbrio entre bens de produção e bens de consumo e a distribuição da renda nacional. A burocracia sozinha fixou as escalas diferenciais e as taxas de salários, criando um abismo entre camadas superiores e inferiores. A burocracia puxou os cordões por trás das campanhas stakhanovistas e, sob o pretexto da emulação socialista, colocou operário contra operário e destruiu a sua solidariedade. E, sob as ordens de Stalin, foi a burocracia, auxiliada pela aristocracia do trabalho, que conduziu uma cruzada frenética e incansável contra o instintivo igualitarismo das massas.

A necessidade do controle burocrático aumentou com as limitações técnicas e humanas da industrialização. Talvez tenha sido a experiência da guerra, porém, que, ao distender ao máximo essa necessidade, propiciou, contraditoriamente, a iniciativa das massas operárias. Alexander Werth afirma, em sua obra sobre a Rússia na guerra, que o crescimento industrial sob a planificação sofreu uma brutal descontinuidade com a invasão nazista da URSS. A guerra provocou um desequilíbrio social e dispersou, com o deslocamento físico das indústrias de base e de armamentos para a parte leste do país, os contingentes operários formados na primeira onda da industrialização. Ainda assim, a experiência lograda nos primeiros anos permitiu uma rápida recuperação nos termos de um esforço de guerra. O proletariado desempenhou, então, um papel de retaguarda decisivo para a contraofensiva do Exército Vermelho e o desfecho vitorioso de 1945.

Com o fim da guerra mundial seguiu-se um uma acelerada fase de reconstrução econômica. Nos anos cinquenta, afirma Isaac Deutscher, a URSS conheceu a maior fase de crescimento e desenvolvimento, com a incorporação da instrução técnica, do desenvolvimento da cultura e da educação das massas, das conquistas científico-tecnológicas decorrentes da “guerra fria” com os Estados Unidos da América, quando o homem e a mulher soviéticos alçaram-se ao espaço cósmico. Tudo isso aconteceu sem que se criassem as condições do operariado adquirir experiência como classe. A desestalinização promovida na era Krushev superou as formas mais agudas da desigualdade, como o fim do “stakhanovismo” e seu sistema de emulação através da taxa progressiva por peça, o aumento salarial para as categorias mais baixas, a abolição das taxas de instrução. Retomou-se, enfim um igualitarismo que expressava a pressão vinda de baixo, das fábricas. Entretanto, os debates sobre a era estalinista ficaram confinados ao Comitê Central do Partido, e deram origem ao paradoxo de uma abertura na cúpula e de manutenção da rigidez na base, ainda que sem a brutalidade característica daquela era. Não houve renovação das instituições com a participação dos trabalhadores. A experiência coletiva e autônoma de se debater livremente problemas, através da disseminação de opiniões e da manifestação aberta de interesses, não pôde acontecer, uma vez que as instituições (os sindicatos, o partido, os sovietes) continuaram sob controle burocrático. [12]

 

O estalinismo e o terror: por que?

Stalinismo foi um sistema de governo compreensível à luz das circunstâncias históricas acima descritas. Os métodos brutais, usados durante a guerra civil e na questão das nacionalidades, generalizaram-se progressivamente, no âmbito da URSS, na medida em que o monopólio de poder na sociedade soviética tornou-se sinônimo do domínio de Stálin. De fato, a partir de 1927, após a expulsão de Trotsky – seu principal antagonista – Stalin passou a conquistar cada vez mais poder dentro do partido e, portanto, no Estado e na sociedade. A transformação do partido em instrumento executivo da política Stalin e dos membros que lhe eram absolutamente fiéis, no Secretariado Político e na Polícia Política, aconteceu nos anos iniciais da década de 30. A partir do assassinato de Kirov, em fins de 1934, Stalin passou a exercer uma forma de ditadura pessoal; este é o sentido histórico da palavra estalinismo.

O processo remonta à fase inicial da coletivização e do primeiro plano quinquenal, dada a reação do partido contra Stalin. A oposição dentro do partido existia tanto no campo como nas cidades. Os militantes ressentiam-se com a resistência dos trabalhadores ao “stakhanovismo”, manifestada na destruição de máquinas e ferramentas, na “sabotagem” e em casos de ataque e assassinato de representantes “stakhanovistas”. Tudo isso acontecia num quadro de escassez e de aprofundamento das desigualdades sociais.

O fracasso inicial da coletivização, por outro lado, fez renascer a oposição dentro do partido. Propostas de suspender a coletivização e democratizar o partido, redigidas na Carta de um velho bolchevique, assumida por Riutin, mas cuja autoria atribui-se a Bukharin, circularam, em 1932, entre os militantes. A tentativa de Stálin de condenar, à morte, Riutin, tinha de afetar o partido, em virtude da tradição bolchevique. Para Bettamini, estabeleceu-se, naquele momento, uma fratura entre o grupo dirigente e os quadros intermediários. Stálin conheceu a derrota dentro do próprio Secretariado Político, graças aos votos de dirigentes como o jovem membro estalinista, Serguei Kirov [13].

Talvez nesse momento Stalin e um grupo restrito de militantes tenham percebido que a revolução somente poderia seguir se deixasse para trás os bolcheviques da velha guarda, companheiros de viagem marcados por uma concepção superada pela história. Ao final do primeiro plano quinquenal, em 1934, a conquista das metas na indústria pesada estimulou a busca da superação do estado de exceção em que a sociedade soviética se encontrava. Os militantes sentiam ter conferido ao Secretariado Político e a Stalin, secretário-geral, poderes extraordinários para uma situação crítica. Deu-se uma liberalização acanhada, principalmente em Petrogrado e nas cidades industriais; Kirov era um dos expoentes dessa liberalização [14]. Stalin e a sua facção sabiam que isso significava mudança de comando. Evitar essa mudança implicava em eliminar qualquer possibilidade de oposição dentro do Partido. É assim que se chegou ao assassinato de Kirov e daí aos Processos de Moscou, um caminho monstruoso para manter o mesmo grupo no poder, em nome da preservação do socialismo. Para Deutscher, um socialismo “do alto”, imposto pela força, teria de usar métodos excepcionais.

O intuito verdadeiro e mais amplo de Stalin foi destruir os homens que representavam a possibilidade de dar ao povo outros tipos de governo diferentes do seu. (…) Desde o início ele identificou qualquer tentativa ou mesmo qualquer ideia de se criar um outro governo com a contrarrevolução. (…) O que se precisa esclarecer agora é a razão que levou Stalin a alcançar esse objetivo em 1936.

Deutscher argumenta que o descontentamento popular era demasiadamente amorfo para representar um perigo imediato e que a oposição dentro do partido sentia-se incapaz de tomar uma atitude. Apenas uma grande desordem, que envolvesse a máquina do poder, poderia dar à oposição as forças necessárias para confrontar Stalin – uma nova guerra mundial. Essa ameaça teria ganhado substância na invasão da Renânia pelos exércitos de Hitler, em 1936. A política apaziguadora da Inglaterra deixava entrever suas esperanças de lançar o militarismo alemão contra a Rússia e deu plausibilidade a um quadro de ameaça para a sociedade soviética [15].

Não se pode esquecer que a ideologia socialista exigia uma justificativa para o genocídio. Traição era uma acusação cabível e foi como traidores que os velhos bolcheviques acabaram sendo executados. Para tanto foi criada a atmosfera adequada a uma situação de conspiração política; a saber, expulsões em massa (expurgos), prisões, processos e julgamentos. Deutscher estabelece a cronologia dos processos: em agosto de 1936, Zinóviev, Kamenev, Smirnov e outros 16; seguiram-se os processos Pyatakov, Radek e outros 17, em janeiro de 1937; e, em junho de 1937, os oficiais do Exército Vermelho, tendo à frente o marechal Tukachevski; em março de 1938, Rikov, Bukharin, Kretinski, Rakovski e outros 21.

A escala do terror é de uma grandeza difícil de estabelecer, a ponto de sugerir um quadro de desvario coletivo. As grandezas oscilam, por falta de fontes confiáveis [16]. A amplitude do terror do Estado deixaria patente uma situação de repressão descontrolada [17]. Fugindo, contudo, a esta perspectiva nitidamente conspiratória, deve-se tentar, diante dos fatos, subentender a lógica que os encadeou. Essa lógica é política e teve a ver com a consolidação do grupo estalinista no poder; nas circunstâncias da imposição do socialismo “desde cima”, isso implicava o uso do terror. A interpretação dos fatos sob essa lógica significa tanto cálculo quanto aposta, pois a história não cessou de irromper na realidade, apesar do controle totalitário exercido pelo secretariado político e a polícia política.

Apenas uma parte dos processos foi pública. O grosso dos expurgos e condenações aconteceu sem publicidade, muitas vezes sem qualquer julgamento. A amplitude dos processos pode ser imputada às relações diretas e indiretas dos acusados, vistos também sob a ótica da eliminação de possíveis testemunhas e vingadores entre os adeptos das vítimas.

Em sua biografia de Stálin, Deutscher observa que o terror cria um círculo vicioso, pois a conspiração gera uma instabilidade na qual poucos dos que a comandam acabam por sentir-se seguros de sua situação. Assim, a reação contra o terror começou dentro da própria facção estalinista, provavelmente como expressão do conflito entre Stalin e Ordjonikizde, fiel companheiro durante anos, mas que se opusera ao sacrifício de seu substituto Piatakov que, juntamente com outros líderes industriais do Partido, estavam incluídos no processo de janeiro de 1937. A morte repentina e inexplicada de Ordjonikizde, estaria, por sua vez, na raiz da revolta de Rudzutak, um dos chefes da facção estalinista, vice-primeiro ministro e líder dos sindicatos. A história é bastante nebulosa, mas há outra versão que aponta para uma conspiração iniciada pelos chefes militares, com Tukachevski, Gamarnik e outros; eles foram executados em processo secreto em 12 de junho.

Atrás de todos os processos públicos, um réu ausente: Leon Trotski. Assim, todas as confissões iriam ressaltar a liderança inconteste de Stálin, e, no final, culpar esse um grande “inimigo do povo” [18]. O mesmo Deutscher, em sua biografia de Trotski, transcreve a seguinte declaração de um dos condenados, Ivan Sminorv:

Não há outro caminho para o nosso país senão este que está trilhando hoje, e não há nem pode haver outra liderança senão aquela que a História nos deu. Trotski, que nos envia orientação e instruções sobre o terrorismo e considerado nosso Estado como fascista, é um inimigo. Está do outro lado da barricada [19].

É importante assinalar também que o primeiro processo – o de Zinoviev e outras 16 pessoas – ocorreu pouco depois de ter a Frente Popular chegado ao governo, na França. Deutscher afirma que esse foi um jogo político hábil de Stálin, pois assim chantageou o movimento operário e a intelectualidade da esquerda ocidental, que o consideravam aliado, contra Hitler. Essa jogada era parte fundamental da política externa soviética, que já então considerava as lutas de classes nos países europeus sob a ótica da proteção de suas fronteiras. Mas aquelas vozes e movimentos contrários caíram sob o látego da repressão política, usando-se, para isso, a Internacional Comunista como instrumento [20].

Uma análise do processo revolucionário na Espanha permite elucidar alguns aspectos apontados.

Em 1921, uma delegação da Confederação Nacional do Trabalho (CNT) viajou para Moscou a fim de participar de congresso da federação comunista mundial dos sindicatos. Durante o período do congresso, a CNT sofreu uma violenta repressão na Espanha. As posições internas radicalizaram-se em consequência da perda de várias lideranças e um congresso deu instruções para que a delegação em Moscou não firmasse nenhum acordo. A maioria, dentre os quais se destacou Andrés Nin, encantada com a experiência russa, recusou-se a seguir a orientação. Andrés, inclusive, permaneceu um tempo na Rússia, trabalhando na federação e em seguida com Trostky. Estes setores pró-bolcheviques dos movimentos anarquistas (e também socialistas) do movimento operário deram origem ao Partido Comunista Espanhol.

Em 1922, sob a direção de Bullejos, Anguiano, Hurtado, Gorkin, Arroyo, Jules Humbert-Droz (instrutor da Internacional Comunista) e outros, constituíam um pequeno agrupamento de 5.000 membros, com bases entre os mineiros de Astúrias e Vizcaya. Nesse ano, depois da violenta greve em Bilbao e da tentativa armada de resistência ao governo espanhol, então envolvido com a ocupação militar de Marrocos, a maioria do comitê central foi detida. Uma direção provisória, organizada por Maurín, também se viu em seguida encarcerada. Tudo isso levou a Executiva da Internacional Comunista, em Moscou, proceder a uma investigação sobre a tática e a organização do PCE. Um comitê com a participação, entre outros, de Gramsci, Marty, Doriot e dos membros do secretariado da Internacional Andrés Nin, Humbert-Drozt e Lozovsky, bem como de três representantes do PCE, Bullejos, Ibáñez e Gorkin, tomou a si o encargo da tarefa. A nova direção formada não foi, contudo, aceita por muitos comunistas espanhóis, que, assim, retornaram ao partido socialista.

O insucesso marcou a trajetória do Partido Comunista Espanhol que, segundo estimativas da Internacional, não chegaria a ter 3.000 membros, quando da proclamação da República, em 1931. Nesse momento os comunistas espanhóis encontravam-se, inclusive, profundamente divididos. Andrés Nin, regressado da Rússia, separou-se do PCE em virtude da perseguição de Stalin aos trotskistas. Fundou um pequeno grupo chamado de Oposição Comunista. Maurín, liderança de maior expressão no movimento da esquerda espanhola, expulso do PCE em virtude de seu antiestalitnismo, constituiu o Bloco Operário e Camponês. Nin e Maurín tinham maior influência na Catalunha. Em 1936, as duas organizações unificaram-se no POUM – Partido Obrero de Unificación Marxista, considerado, pelos estalinistas, como um partido “trostkista”, por estar de acordo com a ideia da revolução permanente. No entanto, segundo Hugh Thomas, o próprio Trotsky, desde seu exílio na Noruega, condenara os dirigentes do POUM.

Durante a guerra civil espanhola, o POUM, ao lado dos anarquistas da Federação Anarquista Internacional e da Confederação Nacional do Trabalho, tentou dar uma direção ao impulso revolucionário dos operários e camponeses e, em seguida, organizaram milícias em defesa do governo republicano – do qual, entretanto, desacreditavam em razão de sua orientação reformista. Guerra e revolução não eram, para o POUM e os anarquistas, termos antitéticos.

Os anos da guerra civil – a última “guerra romântica” da história, assim denominada porque, segundo um dos que dela participaram ao lado dos anarquistas [21], foi desencadeada por motivos ideológicos – caracterizaram-se por heroísmos e traições que até hoje marcam a consciência de todos aqueles envolvidos, direta ou indiretamente, nessa luta [22]. Em fins de 1938, os remanescentes das Brigadas abandonaram a Espanha praticamente reconquistada pelos fascistas; em janeiro de 1939, caía Barcelona e em março, com a queda de Madrid, terminava a guerra civil.

Derrotadas em razão da superioridade das forças militares do franquismo, do isolamento internacional do governo republicano e da determinação dos comunistas em constranger as transformações sociais a seus objetivos reformistas (expressão da linha política de apoio diplomático à URSS), as milícias sobreviventes e seus familiares, deslocaram-se em massa pelos Pirineus em busca de refúgio na França.

Mas ao POUM reservou-se uma sorte diferente. Para o governo republicano controlado pelo estalinista PCE, o POUM tornara-se um inimigo, e, demonizado como nazifascista, viu-se alvo da polícia política de Stalin, a GPU. Os fatos, brutais, são inequívocos: sequestro e assassinato de seu principal dirigente, Andrés Nin, prisão, julgamento e, contra os demais dirigentes, perseguições, calúnias e infâmias [23].

Expurgos, perseguições, assassinatos precisavam ser percebidos como medidas excepcionais, destinadas a assegurar os objetivos socialistas da revolução. Assim, Stalin e o grupo dirigente legitimaram o novo sistema de governo ao promulgar, em novembro de 1936, a nova Constituição da União Soviética. O texto era bastante democrático na letra, exceto num ponto essencial: a proibição constitucional de qualquer oposição. Na URSS somente havia lugar para um único partido e, neste, para apenas uma liderança.

Esta análise do stalinismo como sistema de governo impõe interrogações ao historiador. A primeira diz respeito ao comportamento dos militantes comunistas: por que não resistiram?

Para entender esse paradoxo, é indispensável debruçar-se sobre o papel do partido bolchevique nos anos que vão até os Processos de Moscou.

O partido comunista russo, constituído com o ingresso de centenas de milhares de membros impulsionados pela “maré” revolucionária de 1917-1918, tornara-se um partido de massas. De um número estimado, no início da revolução de outubro, entre 5 e 10 mil membros – um terço dos quais composto por intelectuais – atingiu aproximadamente 650 mil em 1921. Muitos, porém, eram arrivistas, usavam o partido para ocupar posições no governo. Compreende-se a importância da depuração do partido neste contexto: era indispensável tornar mais sólidas a adesão e a militância partidárias para enfrentar as tarefas políticas na conjuntura histórica da NEP. Esta era uma reivindicação comum de todos os grupos dentro do partido russo. Mas, ao mesmo tempo, naquele ano, diante da insatisfação das massas populares, visível nas greves operárias, levantes camponeses e na rebelião do Kronstadt, a maioria do partido reunida no X Congresso (março de 1921) decidiu, em nome da necessidade de garantir a unidade interna, proibir a formação de facções organizadas. A diretriz aplicava-se contra os “democratas centralistas”, o grupo Verdade dos Trabalhadores e Alexandra Kollontai, Schlyapnikov e outros membros da Oposição Operária.

A resistência aberta a esta decisão equivalia, naquelas circunstâncias, a uma morte política, a uma perda de identidade, pois fora do partido não havia nenhuma outra instituição capaz de agregar o ponto de vista de uma esquerda marxista. Deve-se lembrar que os dois partidos de oposição, os socialistas revolucionários (SR) e os mencheviques, em virtude da participação direta e indireta nos eventos de protesto contra o governo soviético, tinham sido proibidos de funcionar. Em 1920, a expulsão dos mencheviques, após uma perseguição marcada por uma brutalidade aterradora, havia atestado o abandono da ideia de uma democracia soviética. De acordo com Deutscher, isso incluía, entre os mencheviques, a ala esquerda sob a liderança de Martov, que reconhecia a legitimidade histórica do regime soviético e contribuíra para a consolidação do mesmo durante a guerra civil.

Ao agarrarem-se, no contexto de caos social, ao seu monopólio de poder e tentarem organizar a sociedade “de cima para baixo”, os bolcheviques tornaram-se também vítimas das vicissitudes do sistema de partido único: os conflitos sociais passaram a expressar-se dentro do próprio partido [24]. Eles haviam sido empurrados para esta situação absurda, mas havia outra alternativa senão aceitar essas circunstâncias?

Os bolcheviques julgavam que seria o cúmulo da loucura, de sua parte, ter seus atos guiados pela voz de um remanescente desesperado da classe trabalhadora e pelos estados de espírito de maioria ocasionais que se poderiam formar dentro dos sovietes [25].

Apesar dos apaixonados ataques às posições adversárias que muitas vezes, nas lutas internas, não poupavam acusações pessoais e ameaças (os tempos eram assim), os membros do partido representavam uma comunidade de iguais. Entre eles havia, além da filiação teórica do marxismo, o passado comum forjado na clandestinidade durante o regime czarista, e, especialmente após a revolução, o companheirismo forjado nos duros e violentos anos da guerra civil, no decorrer dos quais coragem, cálculo, impiedade e disciplina prevaleceram, ao final, sobre a perspectiva do aniquilamento conjunto do partido. A vitória nestas circunstâncias (nas quais a violência aparecia como uma necessidade histórica, parteira de uma nova ordem a ser instituída) e a concentração do poder nas mãos do partido criou um sentimento de unidade inquebrantável. O ideal permaneceu mesmo após a morte de Lenin, em 1924 e acompanhou o crescente poder de Stalin, que acabou por vencer a luta interna com Trostky, em 1926.

Sequer a submissão do partido ao Derszhimorda [26] modificou esse ideal. Os protagonistas da Oposição, como outros, depois, permaneceram no partido ainda durante todos os anos seguintes, e assistiram à liquidação de suas posições através do afastamento e da expulsão de inúmeros companheiros de ideias e lutas, pelo grupo estalinista [27]. A permanência de Nadezhda Krupskaia, companheira e viúva de Lenin, no Comitê Central do PCUS até o final de sua vida, em 28 de fevereiro de 1939, e o fato de ocupar um cargo pouco importante no Comissariado do Povo para a Educação, simbolizam as contradições a que aludimos [28].

Havia nisso tudo uma crença de caráter racional, sustentada na análise das contradições da sociedade soviética. Os velhos bolcheviques acreditavam que a correlação de forças dentro do partido fundamentava-se nas relações entre as classes na sociedade e na posição relativa do Estado no concerto internacional. Modificações nesse contexto impeliriam o partido para outro lado. Deve-se levar em conta, também, que muitos oposicionistas haviam “capitulado” publicamente, mas continuavam a fazer oposição clandestina e a enviar materiais sobre a situação na União Soviética para Trostki, no exílio. Até a instalação dos Processos de Moscou, entre 1936 e 1938, esta crença deu amparo à aposta de que Stalin não sobreviveria indefinidamente aos efeitos desastrosos de sua política. Mas os membros do partido não conseguiram (e nem poderiam, em virtude de seus próprios papéis e concepções) perceber como o fim da democracia interna, no contexto do monopólio da representação política dos interesses sociais, poderia acarretar a imposição da ditadura sobre o próprio partido.

Outra questão é a seguinte: por que os Processos de Moscou não afetaram a sociedade soviética? Isto é, por que não levaram a revoltas generalizadas?

Para entender a passividade reinante, devemos pensar na situação da URSS nos anos 30, ou seja, na situação de um país passando por uma transformação nunca vista sem a possibilidade de livre expressão política. O plano quinquenal significou a integração de milhões de pessoas, a grande parte oriunda do campo, nas fileiras do novo proletariado industrial. Acima, uma nova camada de dirigentes estava saindo das academias, entre 1933 e 1938, e representava, segundo Deutscher, um ponderável contingente de meio milhão de administradores, técnicos, economistas e outros técnicos que vinham substituir os expurgados, com a vantagem de serem os filhos de uma geração criada sob o comando exclusivo do estalinismo. A oposição dentro do partido estava eliminada. O único centro de gravidade política do país era a Secretariado Político do PCUS. A estrutura toda do país gravitava em volta das diretrizes emanadas desse centro e executadas muitas vezes com o braço da polícia política [29].

A vida das pessoas comuns, à margem desse centro, resumia-se ao trabalho e a driblar a escassez e a fome, como Victor Serge observou em suas memórias. Mas para assegurar a estabilidade, era mister que a fome não fosse generalizada, principalmente entre os operários das novas indústrias pesadas. Na avaliação dos resultados do primeiro plano quinquenal, visto, na época, com total ceticismo pelos economistas liberais, Cole ressaltou a importância de se ter estabelecido, nos anos iniciais da década de 30, uma estrutura de preços diferenciais para diversos grupos de consumidores a fim de contornar uma potencial crise. A abertura de restaurantes e cafés nas fábricas, com a possibilidade de aquisição de alimentos, foi uma medida política decisiva nesse sentido. Trabalhadores jovens, homens e mulheres, sentiram os êxitos do primeiro plano como expressão de seu esforço, apesar da produtividade do trabalho ficar abaixo da alcançada no ocidente. Segundo Cole, a maioria dos trabalhadores era autenticamente idealista – e isto significava apoio ao governo e aceitação da falta de liberdade. [30]

 

O cerco de Leningrado e o pós-guerra

Durante os anos finais da década de 30, a política exterior da URSS esteve fundamentalmente voltada para evitar uma guerra com a Alemanha nazista. O tratado de Munique não conseguiu impedir, contudo, o desastre. Os temores de Stálin confirmaram-se de maneira surpreendente.

A invasão da URSS pela Alemanha aconteceu em 22 de junho de 1941 [30]. Logo nos primeiros dias, dois importantes centros industriais foram perdidos – Riga e Minsk. As tropas do exército nazista ameaçaram imediatamente as zonas industriais da Ucrânia central e oriental (Kharkov, Bacia do Don, etc.), além de Moscou e Leningrado.

As notícias da invasão desencadearam, em Leningrado, uma onda de comícios de massa. Nas duas semanas seguintes, grande número de trabalhadores apresentou-se para o voluntariado. Nas Usinas Kirov (ex-Putilov) 15 mil homens e mulheres inscreveram-se imediatamente para o serviço militar, mas é claro que nem todos poderiam ser aceitos, pois a indústria era essencial. Reação diversa aconteceu em Moscou: houve pânico, possivelmente em decorrência de uma nítida avaliação errada das próprias forças; e o pânico atingiu seu auge no dia 16 de outubro de 1941, com a proximidade das tropas invasoras.

As derrotas sofridas foram duras. O rompimento da frente da Bacia do Don – apesar da mobilização de milhares de mineiros e dos esforços de 150 mil deles – representou também a perda da produção de 60% do carvão, 75% do coque, 30% do ferro-gusa e 28% do aço da União Soviética.

Então aconteceu uma verdadeira epopeia. Na segunda metade de 1941 e começo de 1942, o parque industrial foi removido da Ucrânia, Bielo-Rússia, Leningrado e Moscou – com os alemães praticamente às portas – e reconstruído no leste, na região dos Urais, do Volga, da Sibéria Ocidental e Ásia Central. O transporte, por trens, envolveu 1.523 empresas industriais apenas no período de julho a novembro de 1941 [31].

Esse processo implicou uma crise e teve seus custos econômicos e humanos.

A queda nos índices de produção entre outubro de 1941 e agosto de 1942 quase levou a economia ao colapso; de todos os altos fornos, apenas 38% continuavam em ação em 1941. A média anual de emprego caiu de 31,2 milhões de pessoas em 1940 para 27,3 milhões no ano seguinte. A situação teve também efeitos catastróficos sobre a alimentação do povo. Neste contexto, abriu-se a possibilidade de um novo rumo histórico na URSS, chance perdida pela fraqueza do núcleo dirigente. O próprio Khrushchev teria reconhecido, no discurso secreto que proferiu no 20º Congresso do Partido Comunista, tal situação. Segundo Alexander Werth,

Em 1941, quando o Exército Vermelho cambaleou sob o primeiro ataque de Hitler, o vigor de Stalin fraquejou e ele ficou abatido e amuado em sua barraca. Poderia parecer que essa era uma oportunidade para os líderes do partido livrarem-se dele, mas, em vez disso, mandaram uma deputação a Stalin, a fim de implorar-lhe que retomasse as rédeas novamente. Dessa maneira, condenaram a si mesmo e ao país a mais doze anos de terror e de degradação.

Deutscher corrobora esta análise. Ele afirma – em Ironias da História – que os membros do Secretariado Político haviam insuflado a autoridade de Stálin

…muito alto e, dessa maneira, numa crise, sentiam que não tinham autoridade suficiente para tomar o seu lugar. Como a história da União Soviética foi uma só sequência de emergências e crises, a facção estalinista esteve todo o tempo num impasse do qual era incapaz de sair, mesmo que, para tantos de seus líderes e membros, o impasse fosse a sepultura.

Os estalinistas não eram mais, nesse momento, uma facção, pois representavam o próprio partido, já expurgado de todas as demais tendências e do espírito democrático. Mas com o desenvolvimento da guerra (transformada em guerra “patriótica” contra o inimigo alemão quando da comemoração do 24º aniversário da revolução) novas forças entrariam em cena. Entre outubro e novembro de 1941, sob o impulso do espírito nacionalista de resistência, se franqueou o ingresso de qualquer soldado que se distinguisse no campo de batalha.

Por outro lado, após os desastres de Rostov, da ocupação da Ucrânia e da Bielo-Rússia, o Exército recuperou seu prestígio. Os militares perseguidos por Stalin retornaram das prisões, entre os quais Rokossovski, vítima dos expurgos no Exército em 1937-38. Os “comissários políticos”, dentre os quais os agentes da polícia política – a NKVD – tiveram seu papel diminuído e deu-se a reabilitação dos velhos militares comunistas.

Outro elemento importante foi o papel da participação da massa trabalhadora e dos quadros de base do Partido, como vimos no caso de Leningrado. A história da guerra na Rússia registra inúmeros episódios de heroísmo, como a resistência dos 28 de Panfilov, unidade antitanque que guarnecia a estrada de Volokalamsk, na interseção de Dubosekovo; ou o caso do capitão Gastello, que na primeira semana de guerra atirou o avião em chamas contra uma coluna de tanques alemães; e ainda o caso de Zoya Kosmodemianskaya, de 18 anos, membro da Juventude Comunista que incendiou um estábulo cheio de soldados alemães, foi presa, torturada e enforcada numa aldeia perto de Moscou nos negros dias de novembro de 1941. Ao lado deste heroísmo individual, houve uma resistência coletiva muito importante, como na bacia mineira do Don e em Sebastopol que resistiu durante nove meses ao ataque nazista, em novembro de 1941. Mas nenhuma foi mais dramática do que a de Leningrado.

Imediatamente à invasão, 75 mil civis e 10 mil soldados empenharam-se voluntariamente na construção de fortificações e defesas contra o assalto das tropas germânicas. O cerco militar (acompanhado de bombardeio aéreo) aconteceu em setembro de 1941, em pleno inverno. Introduziu-se, dentro dos limites da cidade, um sistema de economia de guerra. Em novembro e dezembro as rações diárias de pão ficaram muitíssimo abaixo do mínimo necessário e praticamente existiam…no papel. Em consequência, a mortalidade por inanição adveio inevitavelmente; em novembro, morreram 11 mil pessoas, em dezembro, 52 mil, número equivalente à taxa anual de mortalidade em condições normais. No primeiro mês de 1942, o número subiu para 120 mil pessoas; ao todo, 900 mil pessoas morreram.

Apesar das condições dramáticas, não aconteceu nenhuma sublevação. Exceto casos isolados, o comportamento coletivo mostrou-se exemplar, sinal de que as tradições estavam ainda vivas na consciência da população.

Os membros da Juventude Comunista, principalmente as mulheres, tiveram um papel importante. O moral, mesmo sob as mais desoladoras condições do auge da fome, era mantido por todos os meios. Exemplo disso foram os inúmeros espetáculos teatrais, realizados com destemor durante todo inverno, por atores a desmaiar de inanição e, tal como a platéia, vestidos com o que quer que fosse capaz de proporcionar-lhes um pouco de calor. O Komsomol (a Juventude Comunista) organizava bytovyie otriady (equipes da vida diária) compostas de milhares de jovens que auxiliavam a população a resolver seus problemas. Essas equipes consistiam de mil jovens, acrescidos de 500 ou 700 ajudantes temporários frequentemente recrutados no próprio bairro.

O trabalho mais penoso, além do enfrentamento militar do cerco, era o das indústrias, pois o grosso dos equipamentos já tinha sido transferido para o leste. E como Leningrado não mais dispusesse de energia elétrica, os operários adaptaram, aproveitando sua experiência fabril, um sistema artesanal de geração de eletricidade baseado em pedais. Para garantir o funcionamento nas condições de cerco, o trabalho dividiu-se em pequenas unidades, com pessoal e equipamento próprios; o trabalho nas fábricas ficava na zona de fogo do inimigo.

A determinação de toda uma população de resistir até o limite de suas vidas manifestou-se na seguinte determinação do ativo do Partido em Leningrado, realizado no dia 20 de agosto de 1941: Ou a classe operária de Leningrado será escravizada e verá exterminados os seus melhores filhos, ou transformaremos esta cidade no túmulo dos invasores.

Em dezembro de 1941 a retomada de Tikvin criou melhores condições para a sobrevivência de Leningrado. E no mês seguinte, 500 mil pessoas, mulheres, crianças, velhos e doentes foram evacuados. Em 1942, a situação estava “consolidada”. Um ano depois, as linhas alemãs ainda se situavam a uns três quilômetros das usinas Kirov. A libertação completa de Leningrado aconteceu apenas em 27 de janeiro de 1944.

Neste meio tempo ainda houve a famosa batalha de Stalingrado, após a queda de Sebastopol, em 3 de julho de 1942, no contexto da ordem “Nem um passo atrás”, dada por Stálin ao Exército Vermelho.

Depois da guerra, a máquina política estalinista entrou novamente em operação. Alexander Werth refere-se ao patriotismo “particular” de Leningrado, alimentado nas tradições revolucionárias da resistência ao cerco dos exércitos brancos em 1919. E a desconfiança, em Moscou, de que Zhadnov, um grande chefe nos dias do sítio, mas também um estalinista convicto, tornara-se, também, um particularista. Em 1949, no chamado “caso Leningrado”, Kuznetsov, Popkov e outros líderes da resistência da cidade perderam a vida em circunstâncias misteriosas. E Khrushchev mais tarde fez vagas alusões ao sinistro papel de Malenkov, um dos membros do Secretariado Político, no expurgo daqueles dirigentes.

O uso sistemático, pelo Secretariado Político, da polícia política contra membros do partido e do governo, oriundo nos Processos de Moscou, muitas vezes apresentou fatos consumados para o próprio Comitê Central. Eliminada qualquer oposição e centralizado o poder de modo ilimitado no Secretariado Político e, portanto, nas mãos de Stálin, o terror de estado tornou-se estrutural.

Eric Sachs observou, em 1981, que Stalin não poderia usar o Partido para controlar a burocracia, pois isso levaria a tamanhas concessões que a eficiência do sistema ver-se-ia ameaçada:

Preferiu controlar a burocracia estatal (e o próprio Partido) através da polícia política, a NKVD. Seu sistema era simples: um diretor de uma fábrica tinha direitos e deveres. Os direitos consistiam nos seus privilégios. Os deveres, antes de tudo, no cumprimento do plano de produção elaborado para sua empresa. Se não conseguia atingir as metas, seja por incompetência ou mesmo por motivos alheios a sua vontade (como falta de matéria-prima ou mão de obra), era demitido, preso e acabava na Sibéria. Hoje, depois da “desestalinização” de Krutchev, os métodos se modernizaram e se civilizaram. Mas, no fundo, o sistema continua o mesmo.

Khrushchev sabia muito bem da realidade [32] e, depois de sua ascensão, tratou de impor limites à polícia política. A desestalinização, iniciada por ele em 1956, significou, do ponto de vista político, uma reforma promovida pela burocracia estalinista no poder. Sob a sua liderança, esta burocracia desvencilhou-se da dependência da polícia política e inaugurou uma nova era, ao introduzir um sistema coletivo de decisão na cúpula partidária. Em linhas gerais, este sistema manteve-se até o fim da URSS.

 

O verdadeiro socialismo

No final dos anos 50 a industrialização chegou, na URSS, a uma nova fase. A indústria de base, de bens de produção e intermediários estava com sua capacidade praticamente utilizada e a continuidade do crescimento econômico supunha a retomada da construção de um setor de produção de bens de consumo, extremamente deprimido. Mas os métodos do planejamento centralizado, impostos de cima para baixo, não seriam mais viáveis. Assim, uma discussão em torno do papel das empresas e da descentralização ganhou força nos anos 60. Outro problema era o peso da guerra fria (a corrida armamentista com os Estados Unidos da América) na estrutura econômica, pois uma parte enorme do orçamento drenava o excedente econômico para a indústria militar.

Aos poucos ficou evidente que as novas condições estavam empurrando o socialismo na URSS para a hora da verdade: ou seria capaz de reformar-se com a intervenção das massas operárias ou entraria em colapso. A solução que a burocracia soviética impôs ao sistema sob seu controle foi uma restauração progressiva dos “mecanismos de mercado”, uma abertura para o capitalismo (inclusive com investimentos diretos do exterior) dentro dos limites da planificação.

A experiência iniciada nos anos 60 acelerou a corrosão do sistema já às voltas com os pesados custos da “guerra fria”. Os “germens” de capitalismo que se quis então eliminar pela força militar e o controle policial apenas se difundiram subterraneamente. Mais à frente, diante de crises de abastecimento cada vez mais frequentes, estes “germens” acabaram admitidos como inevitáveis pela burocracia, e deram margem à “economia dual”. A pesada herança do planejamento burocrático – que se manifestava em artimanhas nos balanços das empresas, nos desvios dos fundos, na dilapidação do patrimônio, na preguiça, nas tolices na gestão, na improvisação – permitem entender porque a produtividade declinou e o desperdício se generalizou a tal ponto que provocou, ao lado da escassez e do mercado negro, a desigualdade e a desmoralização.

Em 1954, Isaac Deutscher, em ensaio para The Times a respeito do dilema do socialismo na URSS, usou as seguintes palavras:

Pero una moderna nación industrial no puede permitir que sus energías creadoras estén restringidas, como no esté dispuesta a aceptar la pena correspondiente: el estancamiento final [33].

A esta fase de declínio (a era Brejnev) seguiu-se o curto período do fracassado reformismo de Gorbachev, que favoreceu a capitulação final ao capitalismo. Uma espécie de rearticulação capitalista originada nas burocracias dos órgãos de planejamento, ministérios e empresas, deu lugar a uma forma violenta, selvagem e corrupta (“mafiosa”) de acumulação de capital. Do ponto de vista político, adotou-se, formalmente o regime democrático. Mas o estado legado pelo passado, um estado burocrático e autoritário, continuou em vigência, sob a regência do ex-comunista Boris Yeltsin, posteriormente sucedido por Vladimir Putin.

Em 1987, um comentarista particularmente reacionário do Sunday Times britânico fez a seguinte avaliação da burocracia no poder:

Lenin e Trostky acreditavam na vil doutrina que pregavam. Os velhos bolcheviques faziam o mesmo, e, fosse qual fosse a sua correção pessoal, nós tínhamos toda a razão de viver com medo destes fanáticos sinceros…Eu me sinto mais à vontade contemplando a ninhada atual de soviéticos cínicos. Não que eu seja irrealista a ponto de supor que vão instalar a democracia na União Soviética…Não, é o seu cinismo que me alegra…A hierarquia dominante e seus numerosos ajudantes não creem na infantilidade do marxismo-leninismo. Muitos dentre eles não creem provavelmente em qualquer variante do socialismo, e estão completamente decepcionados pelas consequências da experiência que ia neste sentido…Talvez esta elite esteja composta há muito tempo de apparatchiks prudentes e corrompidos. Mas não havia o reconhecimento público desta verdade reconfortante. Agora nós o obtivemos, e sabemos qual é o seu jogo. Querem ficar no poder e manter o Partido Comunista como único canal de discussão política e de mudança institucional. Não podemos viver (coexistir) com tal propósito. De fato, podemos considerar com um profundo alívio sua perspectiva limitada, mesmo se é pouco limpa [34].

Muito embora se possa, com toda segurança, negar uma identidade entre esses “soviéticos cínicos” e a geração dos revolucionários de 1917 (os bolcheviques), o paradoxo é que os primeiros pertenceram à burocracia – que impulsionou a experiência do socialismo – após a liquidação física e política daquela geração. Os “cínicos” representaram as contradições e o fracasso desta experiência. Ao final da década de 80, voltaram-se abertamente para o capitalismo e levaram ao fim à experiência do socialismo tutelar; eles são os novos senhores da Federação Russa, depois do colapso do socialismo [35].

Que socialismo? Quando falamos de socialismo na ex-URSS, temos de precisar o significado do termo socialismo, em verdade um sistema de planejamento centralizado construído, passo a passo, nas contramarchas do processo revolucionário, sem e depois contra a participação dos operários. Em outros termos, um tipo de socialismo de Estado, um socialismo tutelar.

A despolitização do operariado soviético, expressão da impossibilidade de sua transformação em classe para-si, foi admiravelmente resumida no depoimento de um operário comunista da cidade de Minsk, citado por Ernest Mandel [36]. Esta despolitização enraizou-se na indiferença da burocracia para com a vida, as ideias, os desejos e as aspirações dos trabalhadores. A essa indiferença responderam também com indiferença coletivos inteiros de trabalhadores [37].

Nos últimos anos, as palavras “progresso técnico” e “democratização” eram incansavelmente repetidas por Gorbachev e os dirigentes do partido como expressão da política destinada a superar a crise do sistema soviético, nos níveis econômico e político. Mas a permanência dos velhos males, a injustiça quanto à repartição dos bens, os privilégios, a especulação, a desigualdade dos direitos, apareciam aos olhos dos operários como o desmentido da possibilidade de transformação. A religião ortodoxa, as “antigas virtudes camponesas”, o fundamentalismo islâmico, os “valores ocidentais”, o álcool e as drogas surgiram como alternativas viáveis para enfrentar a realidade insuportável da mentira e da injustiça permanentes. E a democracia? Para o operário de Minsk, democracia e cidadania tinham o sentido da participação política de pessoas capazes de pensar de modo independente. É o verdadeiro socialismo, disse ele.

 

Pós-escrito

Isaac Deutscher passou sua infância em Cracóvia, Polônia, onde nasceu em 1907 [38]. Ingressou no Partido Comunista Polonês ainda jovem e permaneceu como militante até 1932, quando foi expulso devido à publicação, sob o pseudônimo de Krakowski, do ensaio “O perigo de uma nova barbárie na Europa”; nesse escrito, Deutscher conclamava à união comunistas e social-democratas, em franca oposição a se caracterizar estes como “social-fascistas”, conforme faziam a linha oficial do partido, da Internacional Comunista e do PCUS.

Sofreu uma forte influência de Trotski, mas depois afastou-se dele. Detentor de uma sólida formação marxista e uma vasta cultura humanista, ele assumiu, em seu exílio na Inglaterra a partir de 1939, o papel de um intérprete da revolução russa e do comunismo. Jornalista, ensaísta, biógrafo, historiador, Deutscher deixou um legado sem o qual compreender o mundo, na perspectiva do leste, seria mais difícil. [39] Faleceu em 1967, quando preparava a biografia de Lênin.

Isaac Deutscher era um marxista militante. Em sua teorização, ele seguia o compasso da história, mas, em seu próprio tempo, com escritos e conferências públicas – as “armas” de que dispunha – ele lutava por um determinado futuro.

Deutscher assistiu à constituição do socialismo em sistema mundial. O socialismo havia rompido seu isolamento inicial e se transformara, desde a segunda guerra mundial, num sistema cujo dinamismo o conduzia a defrontar-se com, e a refrear, a expansão imperialista. Acreditava, por outro lado, que as forças sociais desencadeadas com a instauração do socialismo na União Soviética acabariam por forçar uma renovação política da qual o reformismo khrushchevista e a desestalinização seriam apenas os capítulos iniciais.

No livro A revolução inacabada ele deu a forma mais desenvolvida a uma tese insistentemente defendida: no processo de desestalinização, as novas forças produtivas criadas irromperiam de um modo imperioso, em busca de expressão política. Esperava que a incipiente e fragmentada revolta do operariado – então mais instruído e educado – contra as limitações impostas pela burocracia ao seu padrão de vida e à liberdade de manifestação, viesse a transformar-se em ação coletiva. Entretanto, como os operários poderiam aprender coletivamente se não dispunham de liberdade, se persistiam as enormes travas impostas pelo estalinismo sob o regime de partido único? Reforma vinda de cima e pressão social de baixo, raciocinava, resultaram no dinamismo da vida soviética na era pós-Stalin. E, num futuro não muito longínquo, o movimento da sociedade provocaria o ressurgimento político da classe operária. A história demonstrou que suas esperanças e sonhos não se concretizaram. Ele subestimou a importância do controle social exercido pela burocracia e o esvaziamento do papel do partido na existência de todos os grupos sociais na União Soviética e em países do leste europeu.

O socialismo tutelar bloqueou a organização independente da classe operária e o próprio desenvolvimento das novas forças produtivas. As energias criadoras da sociedade soviética foram restringidas a tal ponto que levaram ao pior rumo, rumo antevisto por Deutscher imediatamente após a morte de Stálin; ou seja, a sociedade soviética viu-se diante de uma crise estrutural, prolongada, caracterizada pela estagnação.

O socialismo, tal como existiu ao longo do século XX, agora pertence à História. Se Deutscher ainda estivesse vivo, certamente reconheceria, e teria a coragem intelectual de assumir para si o sentido – trágico, mas ainda promissor – da passagem de Marx citada por Rosa Luxemburgo em sua análise do colapso da social-democracia:

A geração atual assemelha-se aos judeus que Moisés conduziu através do deserto. Não tem somente um mundo novo a conquistar, torna-se necessário que ela desapareça para dar lugar aos homens que estarão à altura do novo mundo.

 

11 de janeiro de 2022.

 

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Notas

[1] Luxemburgo, 1969. A tradução brasileira de “A revolução russa” veio com a publicação da obra pela Editora Vozes, em 1991 e, mais tarde, pela Editora da UNESP (2011), ambas organizadas por Isabel Loureiro. A respeito desse manuscrito sobre a experiência revolucionária russa, cabem algumas observações: trata-se do conjunto de anotações feitas por Rosa em 1918 durante o período de prisão de Breslau, Alemanha; foi publicada em 1921 por Paul Levi. A obra tem uma história cheia de interpretações sobre o intuito efetivo de sua publicação, o caráter das anotações, a falta de informações precisas, etc. e assim que foi saiu a lume, em 1922, mereceu a crítica de Lenin (“Notas de um publicista”). Importante situar que Levi fora um dos onze membros do grupo espartaquista e da direção do novo Partido Comunista Alemão. Expulso do partido em 1921, Levi reingressou no partido social-democrata com o qual ele e os demais tinham cindido em 1914-15.

[2] Alice Helga Werner analisou este conturbado período em “A gênese dos Conselhos de Empresa (Betriebsräte) na Revolução Alemã de 1918/1919”. Para entender o processo histórico mais amplo há de se examinar as publicações de Rosa Luxemburgo na imprensa alemã a partir de “A crise da social-democracia” (1916) até o desfecho trágico de “A ordem reina em Berlim” (1919), artigos traduzidos em português pela UNESP, em 2011. Vale ressaltar que, ao descrever em 1916 a capitulação da social-democracia diante do nacionalismo (social-chauvinismo) empreendido pelas potências imperialistas e a catástrofe daí resultante, o morticínio gigantesco implicado pela guerra, Rosa identificou as raízes desta derrocada na evolução reformista do movimento operário nos 25 anos precedentes.

[3] No IV Congresso da Internacional Comunista, o ultimo do qual participou, Lenin (1870-1924) reconheceu que os partidos comunistas recém filiados tinham sofrido uma influência excessiva da única revolução vitoriosa. Disse-o claramente, sem meias palavras, no final do discurso “Cinco anos da revolução russa e perspectivas da revolução mundial”, proferido em 13 de dezembro de 1922. Havia outros revolucionários preocupados com esta influência, mas eram uma minoria que acabou isolada por conta de suas próprias posições. Em suas memórias, Victor Serge afirma ter sido Amadeo Bordiga quem, no 2º Congresso da I.C. apresentou, contra a posição de Lenin, questões de organização e orientação geral, por temer a influência do Estado soviético sobre os partidos comunistas e não julgava que a Rússia camponesa tivesse condições de dirigir o movimento operário internacional. Para Serge, o italiano Bordiga – notório “esquerdista” – “certamente foi uma das inteligências mais perspicazes do Congresso”.

[4] Rosa Luxemburgo, “A crise da social-democracia” (1916).

[5] Antonio Gramsci. “Cartas do Cárcere”.

[6] Lênin passara, desde o início de 1923, a vislumbrar a aliança entre os operários e o campesinato pobre como a nova estratégia política, como se pode ler no artigo “Sobre as cooperativas”. Escrito em 6 de janeiro, esse texto veio à luz no Pravda, em 26 e 27 de maio de 1923.

[7] E. H. Carr. A revolução russa de Lenin a Stalin. Muitos militantes e dirigentes bolcheviques manifestavam certo desprezo diante do atraso técnico e cultural da imensa maioria do campesinato russo, inclusive sob a forma do “obreirismo”, bastante disseminado entre os membros da Oposição Operária e nas bases do partido.

[8] Segundo o documentário “Um jovem herói”, de Pekka Lehto (Kinnofinlandia e Aurora Filmes), exibido pela GNT no dia 13 de julho de 2000.

[9] Na província do Kuban, a resistência do campesinato a entregar os cereais teria contado com o beneplácito das organizações do partido. No jornal Prava, de 24 de novembro de 1932, há referências explícitas à repressão contra os kolkhozes e o próprio partido no Kuban; o expurgo dos quadros chegou a atingir 45% dos inscritos. A esse respeito, ver Bettamini, 1981.

[10] Conforme Victor Meyer, 1995, o ano de 1926 foi o único em que os sindicatos conseguiram aumento acima da produtividade.

[11] É neste contexto que se desencadeou a grande onda de terror contra os sobreviventes da velha guarda bolchevique do partido, episódio conhecido como os expurgos dos implicados nos processos de Moscou de 1936-38. O assunto será apresentado e discutido no próximo tópico.

[12] Deutscher, 1968a.

[13] Kirov tinha sido destacado para suprimir a influência de Zinoviev e dirigir o Partido em Leningrado. Desempenhou esse papel mas não deixou de ser influenciado pelas bases e pelo impulso à maior liberdade, que vinha do proletariado fabril.

[14] De acordo com Deutscher, 1970a, Kirov, Voroshilov, Rudzutak e Kalinin eram “liberais”; Molotov e Kaganovitch, da “linha dura”.

[15] Deutscher, 1970a. G.D.H. Cole afirma ter sido a remilitarização da Renânia por Hitler um passo decisivo no caminho para a guerra mundial.

[16] Consultar Séphane Courtois e Robert Conquest a esse respeito, mas é preciso considerar que o seu ponto de vista é o de liberais e anticomunistas. Apesar da pretensão de realizar um estudo histórico, suas obras pecam exatamente pela falta de apego aos fatos; quando se baseiam em fatos, interpretam-nos como expressão da vontade política dos dirigentes do partido. Não se faz propriamente uma análise histórica. A falta de dados é uma grave limitação desses estudos, o que também compromete outras obras, inclusive da esquerda, a exemplo da de Roy Medvedev, Let History Judge (1972) e Anton-Antonov-Ovsjenko, The Time of Stalin (1981), citados por Ernest Mandel.

[17] Segundo Conquest, as estimativas de prisioneiros detidos oscilam de um a oito milhões de pessoas! Aproximadamente 850 mil membros do partido teriam sido expulsos entre janeiro de 1937 e junho de 1938. As execuções teriam alcançado no mínimo 10% dos “inimigos do povo” detidos, o que nos levaria a diferentes números, conforme a estimativa dos detidos. Foram mortos não apenas membros do partido e sim também seus parentes e amigos, às vezes cientistas, técnicos, outras vezes padres, ex-kulaks e até ex-guardas brancos já anistiados, oficiais das forças armadas, radioamadores. As acusações de participar da conspiração direitista-trostkista e de espionagem em favor do nazifascimo teriam permitido o enquadramento indiscriminado de suspeitos, graças aos quais os responsáveis dos aparelhos repressivos puderam responder às pressões oriundas de cima, em última análise do Secretariado Político. Nos campos de trabalho da Sibéria, devido ao excesso de trabalho e rações alimentares insuficientes, teriam morrido, de acordo com Robert Conquest, mais dois milhões de pessoa; Courtois e outros criticam Conquest por superestimar o número de vítimas.

[18] Trotski teve um papel fundamental na conquista e consolidação do poder soviético, nos anos 1917-21. Ele dirigiu o Exército Vermelho e desempenhou um papel importante na reconstrução da economia devastada pelas guerras mundial e civil. Lenin, na Carta ao congresso, traçou um perfil dele e manifestou preocupações com a instabilidade e a possibilidade de uma cisão no partido por conta das relações entre Stalin e Trotski. O primeiro havia concentrado poder em demasia e Lênin, por saber que era intolerante, desleal, caprichoso, não tinha segurança de que soubesse utilizá-lo com suficiente prudência. Trotsky, apesar de ser talvez o homem mais capaz do Comitê Central, era excessivamente orgulhoso e se deixava levar pelo aspecto puramente administrativo dos assuntos. Lênin advertiu o Comitê Central de não culpar a Trotski por seu passado menchevique. Trotski recusou-se a assumir a liderança do Partido no lugar de Lênin e optou, em 1923, por colocar-se na oposição dentro do partido. Expulso em 1927, continuou a exercer uma influência junto à velha guarda bolchevique até 1934, quando praticamente deixou de existir na Rússia qualquer oposição organizada ao estalinismo. Em 1940, foi brutalmente assassinado por um agente da polícia política soviética no México, onde se encontrava exilado.

[19] Deutscher, 1970a. Smirnov era um operário que, no comando do V Exército Vermelho, derrotara o general contrarrevolucionário Kolchak na guerra civil. Um dos integrantes da Oposição nos anos 20, ele havia se retratado e voltara ao governo; mas em 1932, aderiu à proposta de Riutin de afastar Stálin em 1932, e assim, ao reafirmar sua postura oposicionista, viu-se preso, julgado e condenado.

[20] A subordinação dos partidos comunistas à direção russa da I.C. sofreu maior impulso a partir do V Congresso (1924). A influência do partido comunista russo na Internacional cresceu a tal ponto após a morte de Lênin que a ação nacional de cada partido passou a considerar, obrigatoriamente, os interesses e a política exterior da URSS, para o qual contribuiu o processo denominado “bolchevização” dos partidos comunistas. Este processo tomou como ponto de partida as teses apresentadas por Zinóviev, aprovadas no V Reunião Plenária do Comitê Executivo da  I.C., realizada entre 25 de março e 9 de abril de 1925, formuladas de modo a identificar o verdadeiro comunismo ao bolchevismo, deixando claro que somente sob a bandeira do leninismo poderiam as seções nacionais, ou seja, os partidos, converterem-se em comunistas verdadeiros, isto é, bolcheviques. Trata-se também do documento no qual se fundamenta a criação do marxismo-leninismo e, pari passu, a crítica aos desvios representados pelas concepções “luxemburguistas” acerca da espontaneidade e da consciência, da organização e das massas e de outras correntes esquerdistas incapazes de “compreender bem o papel do partido na revolução”, além das posições a respeito da questão agrária e nacional. Afirma-se, nas teses, de modo categórico: “Uma verdadeira bolchevização é impossível sem superar os erros do luxemburguismo. O leninismo deve ser a única bussola dos partidos comunistas do mundo inteiro. Tudo o que se afaste do leninismo, afasta-se do marxismo.” As derrotas revolucionárias na Alemanha, Itália e Hungria, entre 1919 e 1921, constituem o pano de fundo da bolchevização dos partidos comunistas e da progressiva transformação destes em instrumentos da diplomacia soviética.

[21] Durante a guerra civil espanhola (1936-39), foi executado o dirigente comunista espanhol Andrés Nin, do Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) e pereceram também refugiados do nazifascismo residentes na URSS que tivessem mantido, no passado, quaisquer ligações com facções do partido bolchevique. Entre esses se incluíam Bela Kun – líder da revolução húngara de 1919 e membro da Internacional Comunista – Remmele e Neumann – do partido comunista alemão – e quase todos os integrantes do comitê central do partido comunista polonês.

[22] Depoimento concedido por Nemésio Bediaga Lopez a Pedro Tortima e ao autor, em 18 de setembro de 1999. O sr. Nemésio era engenheiro e nascera em Miranda del Ebro, província de Castilha, no dia 8 de julho de 1912.

[23] Na passagem do ano 2000, o jornal O Globo publicou uma série de fascículos para tratar dos principais eventos do século XX. Encomendou textos a vários intelectuais, dentre os quais Leandro Konder, que assina o texto “Espanha, campo de ensaio para a Guerra Mundial”. No texto do escritor está omitido o papel dos anarquistas e do POUM na resistência ao fascismo e não se concede uma única frase à problemática relação entre guerra e revolução. Mas para benefício das novas gerações, Ken Loach resgatou-os no filme Terra e Liberdade, um testemunho desse processo – trágico, belo, inesquecível. As informações baseiam-se principalmente em Hugh Thomas (1967). Uma análise na perspectiva do POUM encontra-se na obra de Andrés Suárez (1974), basicamente uma introdução ao folheto La represión y el proceso contra el POUM, impresso na clandestinidade por Ediciones del POUM, em 1938.

[24] Deutscher, 1968a. Na Carta ao congresso, Lênin já expressa a consciência dessa situação ao referirse aos riscos do aprofundamento das dissensões entre Trotski e Stalin para o futuro do socialismo na URSS.

[25] Deutscher, 1968b.

[26] Derzhimorda, personagem de uma das obras de Gógol, sinônimo de abuso e brutalidade, representado por um polícia, foi a expressão utilizada por Lenin nas notas taquigráficas intituladas El problema de las nacionalidades o de la autonomia, de 30 a 31/12/1922, ao se referir ao papel desempenhado por Stalin, Ordzhonikidze e Ddzerzhinski na questão da “autonomia” da república da Geórgia. Usamos aqui o texto Contra la burocracia, publicação dos Cuadernos de Pasado y Presente, de Córdoba, pois a edição moscovita das Obras Escolhidas, de 1977, altera o texto em várias passagens e atenua, ou mesmo suprime, a linguagem cáustica de Lênin.

[27] A esse respeito a evolução e o destino dos principais líderes da antiga Oposição Operária são bastante ilustrativas. Schlyapnikov, principal dirigente operário do partido, comissário do povo no primeiro governo soviético e membro do comitê central durante muitos anos, juntou-se a Trotsky na luta contra Stalin. Durante os expurgos, foi preso e condenado e, em 1937, fuzilado. A sobrevivência de Alexandra Kollontai é um caso estranho: reviu suas posições por considerar que estavam em desacordo com a realidade. Mais tarde, após aceitar a linha estalinista, foi nomeada embaixadora na Suécia e sobreviveu, neste posto, ilesa. É importante destacar que, graças à coletivização, os velhos bolcheviques sentiram que o Partido dava uma virada à esquerda. Stalin provocou, com a nova política, um reagrupamento interno no partido e esvaziou o apoio às teses da oposição de esquerda (trotskista).

[28] De acordo com Conquest, Krupskaia colocou-se no papel de defensora das vítimas do estalinismo, apesar do pouco que pôde fazer. O poeta Jerzy Walenczyk dedicou-lhe, em 1953, os seguintes versos: Nadezhda Krupskaia não mais protegerá/os inocentes, os moribundos, os executados como ratos.

[29] Deutscher, 1970a.

[30] O texto a seguir baseia-se na obra de Alexander Werth.

[31] De acordo com Werth, o jovem estalinista Krushev desempenhou o papel de um verdadeiro comissário político neste gigantesco transbordamento de trabalhadores e equipamentos industriais.

[32] Membro candidato ao Secretariado Político em 1938, cargo efetivado no ano seguinte, quando foi designado para “reorganizar” o Partido na Ucrânia, Khruschev esteve, naquela época, implicado na eliminação dos velhos quadros e na promoção de novos e fiéis membros, dentre os quais o futuro dirigente Leonid Brejnev.

[33] “Fermento de ideas pós-leninistas, depois ampliado na obra Hereges e renegados.

[34] Citado por Ernest Mandel, 1989.

[35] Diferentemente do que se passou na ex-URSS, o processo de transição para o capitalismo na China tem sido alvo de uma experiência cuidadosamente planejada pela burocracia, a envolver os três grandes segmentos da economia (estatal, cooperativado e capitalista). As contradições, neste gigantesco país, evidenciam-se com o declínio do setor estatal frente aos dois outros setores e avolumam-se com a formação de um proletariado oriundo do campo, cuja ocupação temporária se dá na construção civil e na edificação da infraestrutura industrial das novas cidades, onde floresce o capitalismo. O aumento da marginalidade social, o enfraquecimento dos laços comunitários ancestrais e a dissidência têm sido problemas enfrentados com uma repressão seletiva por parte do Estado. Mas este método tem seus limites, principalmente se houver uma desaceleração na taxa de crescimento econômico.

[36] De acordo com Notícias de Moscou, 22 de novembro de 1987.

[37] Nos países do leste, com tradições democrático-burguesas mais desenvolvidas, especialmente com uma tradição humanista mais enraizada, a exemplo da Tchecoslováquia, a imposição burocrática do socialismo teve consequências inusitadas. À margem do mundo oficial, os excluídos politicamente pelo regime tiveram a oportunidade de fazer crescer entre si a fraternidade e viver uma vida criativa. Estes aspectos transparecem no romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e na novela Utz, de Bruce Chatwin.

[38] Elementos autobiográficos encontram-se no capítulo “Alemanha e marxismo” do livro El marxismo de nuestro tempo.

[39] Entre 1967 e 1970 a editora Civilização brasileira publicou grande parte das obras de Deutscher, a saber: Trotski (Profeta Armado, Profeta Desarmado e Profeta Banido); A Revolução Inacabada; Stalin, a história de uma tirania, em dois volumes; Ironias da História: ensaios sobre o comunismo contemporâneo, O judeu não-judeu e outros ensaios.

 

 

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