Fatos & Crítica nº 9: Eleições municipais de 2016 no Brasil: como a burguesia reorganiza a sua dominação política

 

Consumado o impedimento da presidente Dilma Roussef por 81 contra 20 votos manifestados pelos senadores em 12 de setembro de 2016 e encerradas as Olimpíadas por meio das quais se distraiu a atenção pública, aconteceram,  no dia de 3 de outubro, as eleições em 5.483 municípios. O Brasil parecia ter voltado à “normalidade democrática”. Em 30 de outubro, encerrado o segundo turno em 57 municípios (capitais e grandes cidades), a normalidade ficava praticamente consumada por ausência de manifestações contrárias ao processo eleitoral apesar do alto percentual de votos brancos e nulos e um nível de abstenção inédito, principalmente em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. O percentual médio de votos brancos, nulos e abstenção no segundo turno aumentou de 26,5% em 2012 para 32,5% em 2016.

eleições FPA 2016Fundação Perseu Abramo – 2016

O golpe civil que derrubou a presidência de Dilma Roussef e apeou o PT do governo do Estado burguês mal pode ser, assim, encoberto e legitimado.

Como sempre, as eleições constituem as “folhas de parreira” que, tal como na narrativa bíblica sobre a nudez de Noé, servem para ocultar a dominação de classe da burguesia. Em outros termos, parafraseando Marx (Guerra Civil na França), as eleições permitem, a cada quatro anos, decidir quais membros da classe dominante devem representar e esmagar o povo no poder do Estado. Tanto pior se a classe trabalhadora não dispuser de um partido capaz de lutar pelos seus próprios interesses.

Contudo, de que forma essa dominação se dá e quais os sentidos que os resultados das eleições municipais indicam?

As eleições municipais como base local da dominação burguesa

As eleições municipais constituem a base local do sistema político burguês, uma dominação exercida por meio do voto para a composição dos poderes executivo e legislativo. Pois bem, essas eleições sustentam as do nível estadual, compondo o esquema de forças dos governos e das assembleias legislativas. Tal processo se dá, na maioria das vezes, por um controle das máquinas partidárias locais em torno de certos “caciques” estaduais que dispõem de recursos financeiros e influência no poder judiciário estadual, a exemplo do PMDB do Rio de Janeiro.

As eleições municipais têm geralmente um âmbito restrito, ou seja, decidem sobre aspectos secundários e menores dos interesses deste ou daquele grupo de uma fração de classe. Evitar a politização das eleições nesse nível por assuntos de caráter nacional é importante: não por acaso o governo Temer e seu esquema parlamentar deixaram o encaminhamento e a aprovação de medidas como a terceirização e a reforma trabalhista, o controle do gasto público e Reforma da Previdência para depois das eleições.

Fato é que os eleitores têm a ilusão de poder exercer, por meio do voto, influência sobre os eleitos no nível municipal (prefeitos e vereadores) por estarem mais próximos deles; quando entendemos o papel desse processo no conjunto do sistema de dominação política da burguesia, percebemos como o voto se torna um instrumento de manipulação política. O voto funciona simbolicamente como uma espécie de “cheque em branco” que o eleitor entrega ao eleito, no qual este preenche o valor considerado necessário nas negociações do cargo assumido com a eleição.

O nível imediatamente acima, o estadual, estabelece, por sua vez, o acesso à presidência e ao Senado. É como se os candidatos subissem uma escada de muitos degraus porém estreita para compor os mandatários do nível superior da representação – a qual finalmente viabiliza o apoio ao poder executivo federal, no qual,  os interesses de classe da burguesia são organizados.

No Brasil esse sistema político da democracia burguesa assumiu a forma de “presidencialismo de coalizão” a partir do governo de Tancredo Neves e José Sarney, eleitos indiretamente pelo Congresso Nacional em 1985, como parte devolução do poder pactuada entre o alto comando das Forças Armadas a os representantes civis da burguesia.

Os resultados das eleições municipais fortalecem a direita e o deslocamento nesta direção pelo PT

As eleições municipais serviram ao propósito de fortalecer a dominação burguesa de caráter formal representativa, mas, ao mesmo tempo, prepararam a substituição dos partidos no sistema político de “presidencialismo de coalizão” capaz de por fim à experiência da colaboração de classes viabilizada, depois da crise do “mensalão”, pela coligação entre PT e PMDB. Não se trata apenas de uma mudança nas alianças partidárias, mas de um novo sentido da dominação que prescinde da conciliação de interesses de classes promovida pelos partidos até o momento coligados.

Os grandes vitoriosos do ponto de vista eleitoral foram os partidos de centro-direita, o PMDB  e o PSDB que conquistaram, respectivamente, o maior número de prefeituras e o quinhão de votos para negociar o processo das sucessões estaduais e presidencial de 2018. Enquanto o PMDB elegeu 1.037 prefeitos, amealhando para si 8.147.741 votos, o PSDB elegeu 804 prefeitos, amealhando, porém 13.643.539 votos. Contra a opinião de dirigentes petistas da corrente “Muda PT” de que a direita manteve suas posições e o problema para o PT foram as abstenções e os votos inválidos, a verdade é que o PSDB conquistou a maioria das capitais e as cidades mais importantes do país, desalojou o PT dos governos na Região Metropolitana de São Paulo e expandiu sua influência, nestas eleições, para o nordeste, antes reduto eleitoral deste partido.

Os analistas pequeno-burgueses, por mais sinceros que sejam, limitam-se a projetar a influência conquistada pelo PSDB e PMDB para a disputa presidencial de 2018 com base em nomes mais ou menos viáveis. Admitem, porém, ser esta a nova coligação emergente, das quais outros menores, como o PP, PSD e PDT, não podem ser descartados.

A posição de centro-esquerda do ponto de vista eleitoral era, até o momento, representada pelo PT, expressão política da pequena-burguesia democrática com influência no movimento sindical e no meio operário. Esse processo sofreu uma profunda erosão nos últimos anos, de 2013 para cá. O resultado, do ponto de vista eleitoral, foi traduzido na análise “Eleições Municipais – O desempenho do PT”, da Fundação Perseu Abramo, ainda limitada ao primeiro turno, mas que aqui reproduzimos, uma vez que o quadro geral continua válido devido aos resultados negativos sofridos pelo partido no segundo turno. Apesar de conquistar 256 prefeituras ou 4,6 % dos municípios brasileiros, “o PT retorna a patamares anteriores à sua chegada ao governo federal, em número de cidades administradas, quando conquistou 7,8% dos municípios, em 2004, primeira eleição municipal após a chegada do partido ao Planalto.”

A participação do PT nessa eleição ao concorrer por 971 prefeituras “foi inferior ao que o partido pratica desde 1996, quando já disputava 1068 municípios – 17,8% do total de cidades brasileiras. Em termos de disputa, o PT retrocede mais de vinte anos.”

eleições 2016 II

 

“Além do número de cidades, o encolhimento do PT também se deve ao porte dos municípios em que se elegeu. A única capital eleita foi Rio Branco, no Acre e, além dela, no segmento das cidades com mais de 200 mil habitantes, elegeu apenas mais duas: São Leopoldo (RS) e Araraquara (SP).”

“Nas 153 cidades com população entre cinquenta e duzentos mil que o PT disputou, venceu em 22 e governará 45 com porte entre 10 e 20 mil habitantes. A grande maioria das cidades em que o PT se elegeu (186 cidades) e também aquelas onde mais disputou (522) possuem população inferior a 20 mil habitantes.”

A derrota do PT para o PSDB no quadro nacional e particularmente nas grandes cidades, como as do ABC no segundo turno, expressa o esgotamento político do sistema de conciliação de classe e, provavelmente, por conta das alianças feitas no primeiro turno com a centro-direita, um deslocamento político nesta direção.

O documento da FPA acima citado destaca a importância das coligações no desempenho eleitoral do PT: terá 220 vice-prefeituras, a maioria coligadas ao PMDB, num total de 51, bem como participou da eleição de 1.113 prefeitos, com 250 eleitos igualmente do PMDB. Sabe-se o significado disso: clientelismo com caciquismo ou manipulação do voto para as eleições estaduais, a composição do congresso nacional e a disputa pela presidência em 2018.

O PT prescinde relativamente dessa base no que diz respeito à sucessão presidencial de 2018 pois tem uma liderança nacional. Mas historicamente o voto em Lula para o poder executivo não passou de 30%. A máquina de ceifar políticos à esquerda (Lava-Jato/STF) irá atuar contra Lula e o PT, de modo a “sangrá-los” até 2018.

Há, contudo, outro aspecto importante dos resultados eleitorais, a saber, o enfraquecimento relativo dos próprios partidos e o aparecimento de um populismo de direita. É o que se verificou nas eleições municipais em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde as candidaturas de João Doria e Marcelo Crivella estavam acomodadas em partidos, mas não constituem sua expressão. No caso de Crivella importa ainda lembrar que o grande vitorioso em sua eleição é o populista Garotinho que dispõe, assim, de uma carta importante para jogar no baralho das eleições de 2018.

A derrota do candidato do PSOL, Marcelo Freixo, na disputa com Crivella no Rio de Janeiro demonstra o equívoco de uma campanha de classe média, totalmente descolada da defesa dos interesses de classe dos trabalhadores, limitando-se aos temas municipais e problemas da cidade e confinando-se ao espaço político estabelecido pela burguesia, para evitar possíveis desgastes eleitorais.

Do golpe civil à ofensiva contra os direitos sociais dos trabalhadores

Uma posição à esquerda, numa perspectiva socialista, deveria “nacionalizar” o processo eleitoral e não perder a perda da oportunidade de pautar os direitos sociais ameaçados imediatamente pela burguesia no Congresso e no STF.

O que se constata na esquerda eleitoral é que nada mais se pode esperar dela depois da capitulação frente ao golpe civil da burguesia. Até mesmo uma posição democrática mais radical como a proposta de plebiscito pelas eleições gerais, apresentada pela ainda presidente Dilma Roussef, foi recusada pelo PT que prefere jogar com o desgaste do governo Temer para se projetar como alternativa em 2018. Mas az isso sem se colocar abertamente contra esse governo, inclusive porque, como apontado acima, fez aliança com o PMDB em todo o país.

Por outro lado, essa mesma esquerda silencia sobre o processo que está em curso no STF, a exemplo da decisão de 16 de abril de 2015 de declarar constitucional a terceirização de serviços públicos de ensino, pesquisa, proteção ao meio ambiente, cultura e saúde por Organizações Sociais (julgamento desfavorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN no. 1.923/DF questionando a legalidade da Lei 9.637/98), ou do “Caso BESC” (Banco do estado de Santa Catarina) que reformou decisão do TST e validou a cláusula de quitação geral do empregado para empresa incluída em acordo coletivo para PDV firmado entre sindicato e o banco (Recurso Extraordinário – RE 590.415, de 30 abril 2015). Passou a prevalecer o negociado sobre o legislado.

O golpe desencadeou uma ofensiva da burguesia contra os trabalhadores, uma ofensiva organizada numa divisão de trabalho nas altas esferas do Estado burguês, reconhecida até mesmo pela colunista Miriam Leitão, em O Globo de 14/10/2016: “A visão de Temer”:

“Quando perguntei se ele havia desistido da reforma trabalhista, sobre a qual falou no começo do seu período de interinidade, Temer disse que o Judiciário vai aos poucos admitindo que o negociado entre as partes, principalmente para manter o emprego, prevalece sobre o legislado. Ele disse que só desistirá da reforma se ela não for mais necessária, pela generalização desse entendimento do Supremo.”

Em outros termos: não se pode gritar “fora Temer” como mais ouvimos daqueles que querem falar em nome da esquerda sem necessariamente por em questão tal divisão de tarefas.

Fato é que o poder judiciário fica à margem de qualquer controle eleitoral, mas não necessariamente da influência do dinheiro e dos interesses políticos; trata-se de um poder autocrático, cujos membros, vitalícios, tomam decisões abertamente políticas, inclusive no tocante aos direitos sociais, como estamos a assistir. A judicialização da política é apenas o reverso da politização do judiciário. E a esse respeito não se pode esquecer a atuação do juiz Sérgio Moro e de boa parte do Ministério Público Federal do Paraná cujas propostas de combate à corrupção constituem verdadeiro programa político, encontram forte apoio entre movimentos como Brasil Livre e outros de tendências fascistizantes,  a exemplo do grupo que tomou o plenário da Câmara em 16 de novembro. Tal programa, apresentado ao Congresso Nacional, com mais de dois milhões de assinaturas, foi questionado por um dos membros do STF, Gilmar Mendes, em 23 de agosto passado. Voltaremos ao assunto até para comentar as recentes prisões dos ex-governadores Sérgio Cabral e Anthony Garotinho.

Não se pode, contudo, deixar de considerar que, na divisão de tarefas para assegurar os interesses da burguesia, acima apontada, o poder legislativo não deixou de cumprir o seu papel ao aprovar, na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional no. 241/2016. A PEC limita o gasto público por 20 anos e prepara, com esta redução, as condições para a reforma da previdência, ao mesmo tempo em que assegura os recursos para o pagamento dos juros da dívida pública: uma medida política de classe, portanto. A PEC aguarda a votação pelo Senado.

Entretanto, o governo do Estado do Rio de Janeiro enviou para a Assembléia Legislativa (ALERJ) um projeto contendo, segundo a imprensa burguesa, medidas “duras e antipopulares”, a exemplo do corte de 30% nos rendimentos dos servidores públicos, aumento da alíquota da contribuição previdenciária, aumentar a tarifa do bilhete único, com limite do subsídio, extinção do aluguel social, fechamento dos restaurantes populares e aumento do imposto sobre circulação de mercadorias. A revolta dos servidores que já sobrevivem com os salários cortados por causa do parcelamento e dos atrasos no pagamento levou a ALERJ a cercar-se com proteção policial. Eis as consequências práticas do corte do gasto público que os trabalhadores não querem aceitar.

Coletivo CVM 11/2016 

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