A pedagogia das ruas

Por Eduardo Stotz, do site Encontraponto

A primavera popular no outono-inverno de 2013 ainda renderá muitos frutos, apesar das ruas nas grandes cidades aparentemente voltarem à normalidade de cada dia, com os informes nas emissoras de rádio sobre o pregão da Bolsa de Valores e o cambio do real frente ao dólar, sobre o governo a tomar decisões e o congresso a votar leis, com o trânsito infernal dos veículos.

Normalidade ilusória. No meio da semana assisti de um ônibus ao passar por Copacabana pela Avenida Atlântica, um ajuntamento de pessoas nas areias da praia; estranhamente estavam isolados entre si mas simetricamente dispostos uns aos outros e de costas para a arrebentação das ondas. Quando o ônibus chegou mais perto, constatei tratar-se de manequins enfaixados com panos brancos. Aos pés, um cartaz com a imagem e a pergunta “Onde está Amarildo?” A instalação ao ar livre simbolizava os mais de 35 mil desaparecidos desde 2007 (O Globo, 01/08/2013).

Era um ato político-estético de denúncia da violência do Estado. Pode ser entendido como um desdobramento da ocupação da Autoestrada Lagoa-Barra por quase três horas no dia 19 de julho pelos familiares e amigos de Amarildo, a exigir explicações sobre o desaparecimento da vítima da polícia militar na Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha no dia 14 de julho, chamado para prestar esclarecimentos por ser considerado “suspeito”.

Os moradores da Rocinha ontem voltaram a fechar novamente a mesma autoestrada, no horário do rush. Uma das faixas, de acordo com o jornal dizia “O povo quer justiça, mas quem manda é a polícia”. (O Globo, 02/08/2013) Em São Paulo (capital), no mesmo dia, acontecia um protesto contra o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza no Rio de Janeiro, contra o governador Geraldo Alckmin e pela desmilitarização da polícia.

Portanto os protestos continuam a desafiar o coro dos guardiões da ordem, sejam eles policiais, juristas, políticos ou intelectuais. As posições e atitudes oficiais, aliás, colaboraram para a pedagogia política iniciada no final do outono. Na perspectiva dos guardiões da ordem, os protestos têm de se expressar por meio do voto, de petições e ações na justiça, ou seja, pela delegação da vontade, exatamente o que os movimentos se recusam a admitir. Pois a manifestação de rua é uma forma de luta e os coletivos de discussão a sua organização de base, formas que preservam a autonomia dos movimentos. Aos poucos, começa a ficar claro que o voto tem sido do um cheque em branco passado para os governantes e parlamentares eleitos preencheram o valor conveniente. Muitos manifestantes percebem que todo o poder emana do povo, mas não volta para ele. Pelo contrário, tem sido contra o povo. Os movimentos sentiram diretamente a violência estatal, inclusive com atos de provocação destinados a esvaziar pelo medo as manifestações de rua. A democracia representativa aparece, portanto, como uma forma de ditadura, não uma forma aberta, mas velada pelo processo eleitoral do qual todos os cidadãos podem participar. Apesar disso, continua a ser aceita e, assim, legitimada.

Entretanto a dissonância entre as manifestações populares e a ordem pública [1] sempre se colocou ao longo da história de nossa sociedade burguesa. É o que se pode ler no excelente “Cem anos de cultura e anarquia”, escrito de Raymond Williams (Cultura e materialismo, Editora Unesp, 2011). Destaco a passagem a respeito da luta pelo direito de voto na Inglaterra em 1866. A Liga da Reforma, organização que estava à frente da luta dos operários, tinha convocado uma manifestação no Hyde Park, em Londres, para a noite de 23 de julho daquele ano. O ministro da Administração Interna então ordenou que os portões do parque fossem fechados pela polícia na hora do chá. Apesar da inquietação, Disraeli, primeiro-ministro, tranquilizou a rainha: estava tudo sob controle.

Eis a descrição do evento daquela noite nas palavras de Williams:

Em 23 de julho, cerca de 60 mil trabalhadores, vindos de diversas partes do país, marcharam por Oxford Steet e Edgware Road, em direção ao Marble Arch. A polícia foi reunida em frente aos portões fechados. Os líderes da marcha exigiram a entrada, mas o acesso lhes foi recusado. A maior parte dos manifestantes dirigiu-se, então, a Trafalgar Square. Mas um grupo manteve-se em Hyde Park e começou a derrubar as grades. Muitos que os observavam juntaram-se a eles. Eles derrubaram em torno de 1,5 quilômetro de cerca e entraram no parque. Conta-se que canteiros foram pisoteados, que as pessoas “correram sobre o gramado proibido”, e que pedras foram atiradas contra algumas mansões em Belgravia. Parece não haver razão para se duvidar disso. Tal como a proposta de montar em burros em Rotten Row [2], estava-se testando “se esta ou qualquer outra parte do Hyde Park pertence a uma classe ou a todo o povo”. Tropas foram chamadas, mas antes de chegarem todos já haviam retornado para suas casas.

Assim terminou aquele evento memorável. Novos embates nos quais interesses de todas as classes estavam em jogo, inclusive o direito de voto, aconteceram na Inglaterra. O movimento operário inglês também se organizou em partido político próprio. Essa é outra história a se contar [3]. Nesse meio tempo se constituiu o partido social-democrata alemão, inspirando-se nas teses do socialismo científico formuladas por Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848. No prefácio da obra As lutas de classe na França, de Marx, publicada em 1895, Engels faz um balanço da experiência revolucionária desde 1848 e propõe à social-democracia alemã a tática eleitoral revolucionária adequada à nova situação. Além de descrer que as eleições pudessem ser instrumento da conquista do poder, Engels defende a participação das eleições onde quer que o partido pudesse exercer influência direta, de modo a avaliar as próprias forças, perceber a influência sobre as amplas massas da classe trabalhadora e se preparar para o dia decisivo, lembrando que o direito à revolução é o “único ‘direito histórico’ real sobre o qual repousam todos os estados modernos sem exceção”. Vale ressaltar: Engels fala da tática da social-democracia como partido político operário próprio, independente e oposto à burguesia. [4]

A experiência européia dos séculos XIX e XX deixa claro que a formação das lideranças e o aprendizado nas lutas constituem dois aspectos de um mesmo processo no qual se constrói o partido político, verdadeiro desafio histórico em nosso país que nada tem a ver com a pretendida reforma política e radicalmente oposto, portanto, a um alistamento em torno de “grandes nomes” para fins eleitorais. Um partido que expressa a consciência mais avançada das lutas de classe desenvolvidas, um partido desse tipo precisa orientar-se por uma compreensão da sociedade, de suas contradições e tendências, de modo a dispor de um programa para orientar as lutas pela transformação desta sociedade. Esse é o significado mais forte da pedagogia política das ruas capaz de render frutos por um longo tempo e mudar o rumo da história.

Notas:

[1] É interessante como certos intelectuais burgueses, a exemplo de Bolívar Lamounier, descaracterizam os protestos conduzidos pelo Movimento Passe Livre (MPL). Após afirmar que se trata de um movimento “difuso, sem direção, envolvendo violência” o cientista político conclui que “ficar protestando difusamente e romanticamente é inaceitável. Não é compatível com a democracia”. (O Globo, 10/06/2013) Em outros termos, a democracia significa interesses estabelecidos por representação. Tudo o mais – ou seja, a luta contra a exploração e a opressão social, mesmo a esperança de uma sociedade mais justa – pertence à categoria “incompatível”, o que nos leva à idéia de… revolução. Na mesma página em que Lamounier se pronuncia, o jornal entrevista Mayara, estudante de Geografia da USP que trabalha como garçonete, uma das “lideranças” do MPL. Ela diz: “Podemos ser qualquer pessoa” e deixa claro que não se trata de nenhum movimento “difuso e sem direção”. A análise do MPL feita por Roberto Leher serve de contraponto à visão de Lamounier.

[2] A esse respeito escreve Williams, na mesma obra: O povo se reunia frequentemente em Rotten Row, ao sul de Hyde Park, local onde a pequena nobreza cavalgava, e houve uma proposta de lotar essa parte do parque com 10 mil vendedores ambulantes e seus burros.

[3] Ver A história social do movimento trabalhista europeu, de Wolfgang Abendroth (Paz e Terra,1977): as correntes políticas atuaram na intensa disputa em torno da organização dos trabalhadores qualificados e não qualificados, distinguindo duas organizações sindicais distintas (Trade-unions e New Unionism). Nesse processo surgiu, em 1893, o Independent Labour Party. De acordo com Abendroth, o ILP representou o ressurgimento da luta política sistemática e autônoma de grandes parcelas da classe operária.

[4] O Prefácio encontra-se disponível  em:

https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/introducao.htm

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