Quem chora pelos mortos de Taguaí?

André Valpaços

 

Uma tragédia na reta final da campanha eleitoral pela prefeitura de São Paulo

 

 

Quarta-feira, dia 25 de novembro de 2020, seria mais um dia de trabalho. A pandemia, o desemprego, a crise capitalista, contra tudo e contra todos, 52 trabalhadores seguem de ônibus a caminho da empresa para mais um dia de trabalho. Cansados, de máscara, cansados e sem máscara, seguem os trabalhadores, homens e mulheres em busca do pão nosso de cada dia. Vida precária, todos cansados e prontos para mais um dia de labuta, silêncio no ônibus que segue pela estrada, levando em seu interior os corpos cansados de homens e mulheres, quase todos jovens. Monótono caminho para mais uma jornada trabalho. Mas guardados em cada um, neste silêncio pesado, sonhos e esperanças de um futuro melhor.

Por volta das 7h o silêncio é subitamente quebrado por um baque forte da colisão contra um caminhão que vinha no sentido contrário na altura do km 172 da Rodovia Alfredo de Oliveira Carvalho:

Com a força do impacto, várias vítimas foram arremessadas do ônibus e ficaram amontoadas na pista, relatou o oficial do Corpo de Bombeiros presente no local. Algumas pessoas ficaram presas às ferragens. Os feridos foram encaminhados para três hospitais da região em Taguaí (SP), Fartura (SP) e Taquarituba (SP).

A delegada responsável pelo caso disse que:

Ele [alegou que] acionou o freio, que não funcionou. Para evitar a colisão, tirou o ônibus à esquerda”, contou a delegada ao Metrópoles, conforme o relato do motorista.

A companheira do Gelson, o motorista do caminhão, informou a um jornalista que ele não tinha habilitação para dirigir caminhão, tinha apenas habilitação provisória para carro e, por isso, levava outro caminhoneiro junto nas viagens. Jovem de 22 anos, provavelmente ganhava experiência na profissão ou fazia um bico para sobreviver, ou as duas coisas. E o prato de comida daquele dia ? Não precisou. A sua companheira há de recordar os sonhos e um futuro que nunca virá.

A imprensa burguesa baseada nas informações da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp), corre para revelar que a empresa de ônibus Star Viagem e Turismo é clandestina e não tinha autorização para operar.“ Ficaram de apresentar a documentação”. “Eles confirmam em certo ponto a falta dos registros”. “Atribuem à Covid-19 não terem conseguindo a renovação” – tudo isso disse a delegada. E ainda mais:  o veículo tinha 11 multas e estava com IPVA, licenciamento e DPVAT atrasados.

Em nota à imprensa, no entanto, a empresa negou irregularidades. “Toda a documentação relativa ao veículo envolvido no trágico acidente está em conformidade com os órgãos governamentais e em perfeita validade”.

Com esta declaração antecipa os primeiros movimentos de uma longa, desgastante e provavelmente infrutífera luta judicial para as famílias dos trabalhadores mortos.

 

Mortos pelo Capital

As prefeituras de Taguaí e Itaí decretaram luto oficial por três dias. Assim ninguém se compromete e nessas horas, véspera de eleição, é importante devotar respeito aos mortos.

O luto e o medo andam juntos. Paira sobre a tragédia o espectro da luta de classes, queiram ou não os mortos e os seus sobreviventes. Uma das funcionárias da confecção que teve dezenas de companheiros mortos (no dizer do jornal para escamotear a exploração capitalista eram apenas “colaboradores”) ocorridas no acidente entre um ônibus e um caminhão no interior de SP relatou ao G1 que o transporte dos funcionários era contratado pela empresa:

A mulher, que não quis ser identificada, não estava no veículo no dia do acidente, mas usava o transporte. Segundo ela, no dia em que foi contratada, a empresa informou sobre o pagamento e sobre o valor descontado para o transporte.

Contaram que no holerite teria o desconto da passagem do ônibus, mas que na verdade aquele preço não seria descontado. Isso foi conversado provavelmente com todos nós, mas a gente não pagava o transporte, afirmou.

O ônibus, toda essa parte de contrato não era diretamente com nós, funcionários, era tudo entre eles [empresas]. A gente não tinha nada sobre a empresa do ônibus ou como ele era contratado. A gente apenas sabia que a empresa disponibilizava o ônibus para a gente. Pelo menos, na minha cabeça, eu achei que o ônibus era da empresa mesmo.

À outro órgão de imprensa, o advogado da Stattus Jeans, Emerson Fernandes, afirmou que o ônibus era uma espécie de “lotação” contratada pelos próprios funcionários, sem ligação direta com a empresa. Todos os ocupantes eram da cidade de Itaí (SP), segundo o advogado. Movem-se as peças no tabuleiro jurídico da eterna empulhação a que são submetidos os trabalhadores em busca de justiça. Mas essa justiça é uma instituição burguesa, sem concessões.

O cinismo é mais um ingrediente que não pode faltar na tragédia operária pois os agentes da classe dominante querem e precisam enterrar este assunto com a máxima celeridade.

“Minha solidariedade aos familiares e amigos das vítimas do grave acidente que ocorreu nesta manhã em Taguaí, interior de SP”, disse em tuíte o Governador João Doria no início da tarde de hoje. “Muito triste”, afirmou….

Na capital do Capital, distante a 4 horas de Taguaí, dois candidatos estavam na reta final da disputa pela Prefeitura. Consta na agenda de campanha que Boulos, o candidato psolista participou na quinta-feira (26) de um encontro com pequenos comerciantes e empreendedores da região central de São Paulo. Falou sobre o projeto Renda Solidária como uma maneira de liberar recursos para incentivar a economia local e sobre a Operação Delegada. O projeto já existe e consiste em PMs de folga fazendo patrulhamento da cidade. O que vem a ser isso? Bico de segurança?

A agenda do tucano Bruno Covas nesta quinta-feira (26) foi de entrevistas e uma carreata no bairro de Santana, na zona norte de São Paulo.

Covas falou durante a caminhada que irá adotar a proposta do adversário do primeiro turno Orlando Silva (PCdoB) de caçar o alvará de funcionamento de estabelecimentos comerciais que cometerem crime de racismo. Taí. Um burguês branco e cheiroso falando de racismo, é difícil de acreditar, ainda mais no amargo dia seguinte, em que a classe trabalhadora perdeu mais 42 dos seus.

Soa novamente o cínico tuíte:

“Minha solidariedade aos familiares e amigos das vítimas do grave acidente que ocorreu nesta manhã em Taguaí, interior de SP”, disse em tuíte o Governador João Doria no início da tarde de hoje. “Muito triste”, afirmou.

Mais triste e, principalmente, revoltante é saber que a tragédia de Taguaí estava prevista na legislação. A Lei n° 13.467, de novembro de 2017, também conhecida como Reforma Trabalhista (um verdadeiro assalto aos direitos do trabalhador), foi aprovada trazendo mudanças sobre acidente de trajeto ou de percurso.

Antes, se um trabalhador fosse vítima de uma colisão de ônibus no transporte de casa para a empresa, por exemplo, teríamos um acidente de trabalho. Porém o texto da “Reforma” abriu brecha para que essa classificação já não se aplique.

Agora, a alteração do segundo parágrafo do artigo 58 da CLT, determina o seguinte:

O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador“.

Logo, se o tempo em que o trabalhador está em seu trajeto de ida ou volta da empresa não é considerado tempo à disposição do empregador, o acidente de trajeto deixa de ser considerado um acidente de trabalho. Os capitalistas fecham o cerco da exploração do trabalho ao seu limite máximo, o trabalhador doente é descartado mais facilmente.

O Brasil vem ocupando a quarta posição no ranking mundial de acidentes de trabalho. A Previdência Social registra por ano cerca de 700 mil casos, e, segundo dados do Observatório Digital de Segurança e Saúde do Trabalho, o país chega a contabilizar uma morte por acidente em serviço a cada três horas e 40 minutos.

Os números revelam os mortos pelo Capital. Entre 2014 e 2018 registrou-se 1,8 milhão de afastamentos por acidente de trabalho e 6,2 mil óbitos no país, conforme dados da Previdência oficial. Os mortos de Taguaí juntam-se a essa terrível estatística.

Quem chora pelos mortos de Taguaí? Toda classe trabalhadora chora esses mortos. Chora cada um e por todos. Foram mortos pelo Capital, que levou deles a vida até o última gota de sangue, de suor, e até o último suspiro, bravos jovens trabalhadores e trabalhadoras mortos nesta tragédia.

Dizem os bruxos em suas premonições que os cadáveres ficarão insepultos e que suas almas assombrarão os capitalistas até a sua derrocada final. E haverá luta ! Pelos trabalhadores mortos de Taguaí e do mundo!

 

Em memória dos mortos de Taguaí

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Trecho de A FLOR E A NÁUSEA de Carlos Drummond de Andrade)

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