O fascismo e a sua política – Antonio Gramsci

Apresentação

Coletivo do CVM

O fascismo constitui uma espécie de “moeda corrente” no discurso da esquerda brasileira contra a extrema-direita, especialmente contra o bolsonarismo. Muito se fala, pouco se entende. O termo até virou chavão de reacionário, em todos os aspectos, inclusive moral.

Para contribuir ao esclarecimento do que venha a ser fascismo, publicamos no portal um documento sobre a experiência histórica mais significativa de enfrentamento e resistência – a do Partido Comunista da Itália nos anos 1921 a 1926.

Trata-se da posição do Partido Comunista da Itália intitulada “O fascismo e sua política”, que faz parte das chamadas Teses de Lyon, assim conhecidas por terem sido aprovadas pelo III Congresso do PCI, realizado clandestinamente em janeiro de 1926, na cidade de Lyon.

Neste congresso, o partido assumiu abertamente o processo de “bolchevização” encaminhado no V Congresso da Internacional Comunista, em 1924, sob a direção de Zinoviev. O combate ao esquerdismo representado por Amadeo Bordiga (abstencionismo político, recusa à palavra-de-ordem do Governo Operário e Camponês) é especialmente destacado, uma vez que correspondia à corrente mais expressiva dentro do partido. Como está escrito nas Teses, tratava-se da “ideologia oficial do partido italiano no primeiro período de sua existência”.

Entretanto, da mesma forma, adverte-se, nas Teses, contra o perigo de uma tendência à direita, mais grave porque estava

…ligado à situação geral do país. A própria compressão exercida pelo fascismo tende a alimentar a opinião de que, estando o proletariado na impossibilidade de abater rapidamente o regime, é melhor tática a que conduz, senão a um bloco burguês-proletário para a eliminação constitucional do fascismo, a uma passividade ativa do Partido comunista na luta política imediata, para permitir que a burguesia se sirva do proletariado como massa de manobra eleitoral contra o fascismo. 

No artigo “O camarada G. M. Serrati e as gerações do socialismo italiano” de 14 de maio de 1926, por ocasião da morte daquele revolucionário e pouco depois do III Congresso, Gramsci assinala a importância de Serrati para o PCI.

Começa por apontar o seu empenho em criar a vanguarda proletária, deixando claro que esta era principal fraqueza do movimento revolucionário italiano: a falta de “um grupo forte e homogêneo de dirigentes revolucionários, que tivesse um estreito contato com o núcleo proletário fundamental do Partido Socialista”. Exigência para acumulação de experiências políticas revolucionárias e para uma direção coletiva capaz de aproveitar as conjunturas favoráveis à iniciativa revolucionária. Uma referência ao fracasso do partido, como aponta Broué, em catalisar a indignação e cólera entre os trabalhadores italianos e até mesmo na pequena burguesia, decorrente do assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti, em 10 de junho de 1924.

Gramsci foi um dos poucos revolucionários italianos que não subestimou o fascismo quando este apareceu no cenário político da Itália. No artigo “Socialistas e fascistas” (1921) analisa o papel do Estado burguês em propiciar a expansão do movimento fascista e critica a posição dos socialistas que se mantém estritamente no terreno da legalidade burguesa e destaca os erros deles, advertindo “Quem tem força, usa”.

Fontes:
– Antonio Gramsci. Escritos Políticos, volume IV. Lisboa: Seara Nova, 1978.
– Pierre Broué. História da Internacional Comunista (1919-1943). São Paulo: Sundermann, 2007.

O fascismo e a sua política[1]

Antonio Gramsci

 

15. O fascismo, como um movimento de reação armada que se propõe o objetivo de desagregar e de desorganizar a classe trabalhadora para a imobilizar enquadra-se no plano da política tradicional das classes dirigentes italianas e na luta do capitalismo contra a classe operária. É, portanto, favorecido, na sua origem, na sua organização e no seu caminho por todos os velhos grupos dirigentes, indistintamente, com preferência, porém, pelos agrários que sentem mais ameaçadora a pressão das plebes rurais. Socialmente, porém, o fascismo encontra a sua base na pequena burguesia urbana e numa nova burguesia agraria nascida da transformação da propriedade rural em algumas regiões (fenômenos do capitalismo agrário na Emília, origem de uma categoria de intermediários rurais, “bolsas de terra”, novas divisões de terrenos).[2] Este fato e a circunstância de ter encontrado uma unidade ideológica e organizativa nas formações militares, onde revive a tradição da guerra (“arditismo”) [3], e que servem de guerrilha contra os trabalhadores, permitem ao fascismo conceber e atuar um plano de conquista do Estado, contrapondo-se às velhas classes dirigentes. É absurdo falar de revolução. As novas categorias que se agrupam à volta do fascismo extraem, porém, da sua origem uma homogeneidade e uma mentalidade comum de “capitalismo nascente”. Isto explica como é possível a luta contra políticos do passado e como podem justificá-la com uma construção ideológica em contraste com as teorias tradicionais do Estado e das suas relações com os cidadãos. O fascismo modifica, na substância, o programa de conservação e de reação que sempre dominou a política italiana apenas numa diversa maneira de conceber o processo de unificação das forças reacionárias. Substitui a tática dos acordos e dos compromissos com o propósito de realizar uma unidade orgânica de todas as forças da burguesia num único corpo político controlado por uma única central que deve dirigir simultaneamente o Partido, o Governo e o Estado. Este propósito corresponde à vontade de resistir completamente a qualquer ataque revolucionário, o que permite ao fascismo recolher as adesões da parte decididamente mais reacionária da burguesia industrial e dos agrários.

16. O método fascista de defesa da ordem, da propriedade e do Estado, ainda mais do que o sistema tradicional dos compromissos e da política de esquerda, bloqueia a constituição dos interesses de classe, atingindo a estrutura social e suas superestruturas políticas. As reações que provoca devem ser examinadas em relação com a sua aplicação, quer no campo econômico quer no campo político.

No campo político, antes de tudo, a unidade orgânica da burguesia ­­­­­­­­­­­­­­no fascismo, não se realiza imediatamente depois da conquista do poder. Fora do fascismo, persistem centros de oposição burguesa ao regime. Por um lado, não é absorvido o grupo que tem fé na solução giolittiana do problema do Estado. Este grupo liga-se a uma secção da burguesia industrial e, com um programa de reformismo “trabalhista”, exerce influência sobre estratos de operários e pequenos burgueses. Por outro, o programa de fundar o Estado sobre uma democracia rural do Mezzogiorno e sobre a parte “saudável” da indústria setentrional (“Corriere della sera”, liberalismo, Nitti) tende a tornar-se um programa de uma organização política de oposição ao fascismo com base de massa no Mezzogiorno (União Nacional).

O fascismo é obrigado a lutar contra estes grupos sobreviventes com muita vivacidade e a lutar com vivacidade ainda maior contra a maçonaria, que ele considera justamente como centro de organização de todas as tradicionais forças de sustentação do Estado. Esta luta, que é, queiram ou não, o indicio de uma fratura no bloco das forças conservadoras e antiproletárias, pode favorecer, em determinadas circunstâncias, o desenvolvimento e a afirmação do proletariado como terceiro e decisivo fator de uma situação política.

No campo econômico, o fascismo age como instrumento de uma oligarquia industrial e agraria para centralizar, na mão do capitalismo, o controlo de todas as riquezas do país. Isto não pode deixar de provocar um descontentamento na pequena burguesia que, com o advento do fascismo, julgava chegada a era do seu domínio. Toda uma série de medidas foi adoptada para favorecer uma nova concentração industrial (abolição do imposto de herança, política financeira e fiscal, exacerbação do protecionismo) e a elas correspondem outras medidas a favor dos agrários e contra os pequenos e médios cultivadores (impostos, imposto sobre grãos, “batalha do trigo”).

A acumulação determinada por estas medidas não se traduz em acréscimo de riqueza nacional, mas é a espoliação de uma classe a favor da outra, isto é, das classes trabalhadoras e medias a favor da plutocracia.[4] O plano de favorecer a plutocracia aparece, sem pudor, no projeto de legalizar no novo código comercial, o regime das ações privilegiadas; um pequeno grupo de financistas é, deste modo, posto em condições de poder dispor, livremente, de grandes massas de poupança provenientes da média e pequena burguesia e estas categorias são expropriadas do direito de disporem da sua riqueza.

No mesmo plano, mas com consequências políticas mais vastas, enquadra-se o projeto de unificação dos bancos emissores, isto é, na prática, de supressão dos dois grandes bancos meridionais. Estes dois bancos cumprem hoje a função de absorver as poupanças do Mezzogiorno e as remessas dos emigrantes (600 milhões), isto é, a função que, no passado, cumpria ao Estado, com as emissões de títulos do tesouro, e ao Banco de Desconto, no interesse de uma parte da indústria pesada do Norte. Os bancos meridionais foram controlados, até agora, pelas próprias classes dirigentes do Mezzogiorno, que encontraram neste controle uma base real do seu domínio político. A supressão dos bancos meridionais, como bancos emissores, fará passar esta função para a grande indústria do Norte, que controla por meio do Banco Comercial, o Banco de Itália e, deste modo, acentuar-se-á a exploração econômica “colonial” e o empobrecimento do Mezzogiorno e, além disso, acelerar-se-á o lento processo de separação do Estado também da pequena burguesia meridional. A política econômica do fascismo completa-se com as providencias para realçar o curso da moeda, para sanear o orçamento do Estado, para pagar as dívidas de guerra e favorecer a intervenção do capital anglo-americano na Itália. Em todos estes campos, o fascismo realiza o programa da plutocracia (Nitti) e de uma minoria industrial-agrária em prejuízo da grande maioria da população, cujas condições de vida pioram progressivamente.

Coroamento de toda a propaganda ideológica, da ação política e econômica do fascismo é a sua tendência para o “imperialismo”. Esta tendência é a expressão da necessidade sentida pelas classes dirigentes industriais-agrarias italianas para encontrarem fora do campo nacional os elementos para a resolução da crise da sociedade italiana. Nela residem os germes de uma guerra que será combatida, aparentemente, para a expansão italiana, mas na qual, na realidade, a Itália fascista será um instrumento nas mãos de um dos grupos imperialistas que disputam o domínio do mundo.

17. Como consequência da política do fascismo, determinam-se profundas reações das massas. O fenômeno mais grave é a separação, cada vez mais decidida, das populações agrárias do Mezzogiorno e das Ilhas, em relação ao sistema de forças que regem o Estado. A velha classe dirigente local (Orlando, Di Cesare), De Nicola, etc.) já não exerce de modo sistemático a sua função de vínculo com o Estado. A pequena burguesia tende, portanto, a aproximar-se dos camponeses. O sistema de exploração e de opressão das massas meridionais é levado ao extremo pelo fascismo; isto facilita a radicalização também das categorias intermedias e põe a questão meridional nos seus verdadeiros termos, como questão que será resolvida apenas pela insurreição dos camponeses aliados do proletariado na luta contra os capitalistas e contra os agrários. Também os camponeses médios e pobres das outras partes da Itália adquirem uma função revolucionaria, ainda que de modo mais lento.

O Vaticano — cuja função reacionária foi assumida pelo fascismo — já não controla as populações rurais de modo completo através dos padres, da Ação Católica e do Partido Popular. Há uma parte dos camponeses, que foi despertada para as lutas em defesa dos seus interesses pelas próprias organizações autorizadas e dirigidas pelas autoridades eclesiásticas, e que agora, sob a pressão econômica e política do fascismo, acentua a própria orientação de classe e começa a sentir que seu destino é inseparável daquele da classe operaria. Indicio desta tendência é o fenômeno Miglioli. Um sintoma assaz interessante é também o fato de as organizações brancas (as quais, sendo uma parte da Ação Católica, são controladas diretamente pelo Vaticano), terem de entrar nos comitês intersindicais com as Ligas vermelhas, expressão daquele período proletário que os católicos indicavam até 1870, como iminente na sociedade italiana.

Quanto ao proletariado, a atividade desagregadora das suas forças encontra um limite na resistência ativa da vanguarda revolucionária e uma resistência passiva da grande massa, a qual continua fundamentalmente classista e ameaça pôr-se em movimento mal se afrouxa a pressão física do fascismo e se tornam mais fortes os estímulos do interesse de classe. A tentativa de levar ao seu interior a cisão com os sindicatos fascistas, pode considerar-se falida. Os sindicatos fascistas, mudando o seu programa, tornam-se agora instrumentos diretos de compressão reacionária ao serviço do Estado.

18. O fascismo reage às perigosas mudanças e aos novos recrutamentos de forças provocados pela sua política, fazendo agravar sobre toda a sociedade o peso de uma força militar e um sistema de compressão que mantem a população agarrada ao fato mecânico da produção, sem a possibilidade de ter uma vida própria, de manifestar uma vontade própria e de organizar-se para a defesa dos seus interesses. A chamada legislação fascista só tem como objetivo consolidar e tornar permanente este sistema.

A nova lei eleitoral política, as modificações do ordenamento administrativo com a introdução do administrador nos conselhos rurais, etc., tratam de pôr fim da participação das massas na vida política e administrativa do país. O controle das associações impede qualquer forma permanente “legal” de organização das massas. A nova política sindical tira à Confederação do Trabalho e aos sindicatos de classe a possibilidade de concluir acordos para excluí-los do contato com as massas que se tinham organizado a sua volta. A imprensa proletária foi suprimida. O partido de classe do proletariado, reduzido à existência completamente ilegal. As violências físicas e as perseguições da polícia são adoptadas sistematicamente, sobretudo nas zones rurais, para incutir o terror e manter uma situação de estado de sitio.

O resultado desta complexa atividade de reação e de compressão é o desequilíbrio entre a relação real das forças sociais e a relação das forças organizadas, fazendo com que, a um aparente regresso à normalidade e a estabilidade, corresponda uma agudização de conflitos prontos a romper em cada instante por novas vias.

18a. A crise que se seguiu ao delito Matteotti[5] forneceu um exemplo da possibilidade de a aparente estabilidade do regime fascista ser perturbada pelas bases, dada a explosão imprevista de conflitos econômicos e políticos agudizados sem aviso prévio. Ao mesmo tempo, deu provas da incapacidade da pequena burguesia para levar a cabo a luta contra a reação industrial-agrária no atual período histórico. Ao mesmo tempo, a crise forneceu a prova da incapacidade de a pequena burguesia guiar, com êxito, no atual período histórico, a luta contra a reação industrial-agrária.

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[1] Transcrito de “Escritos Políticos”, Vol. IV; pags. 212 a 217 – A. Gramsci. Edições Universidade Livre – Saara Nova. 1978. Cotejado com o original em italiano. www.marxists.org/italiano/gramsci/26/01-lione.htm

Parte integrante do documento intitulado “A situação italiana e as tarefas do PCI”, escrito por Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e outros membros da direção do partido presentes no III Congresso realizado clandestinamente em Lyon, de 23 a 26 de janeiro de 1926. Trata-se de uma nova versão da parte intitulada “O fascismo e sua política” do citado documento, constante nas páginas 212 a 217 do apêndice da obra Escritos Políticos, volume IV (Lisboa: Seara Nova, 1978), uma vez que foi cotejada com a versão original em italiano, publicada pelo Marxists Internet Archives, disponível em https://www.marxists.org/italiano/gramsci/26/01-lione.htm, assim como com a tradução portuguesa do mesmo documento no M.I.A., disponível em https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1926/01/26.htm. Nossa preocupação exclusiva foi a de tornar o texto mais claro e conciso de acordo com as normas da língua portuguesa adotadas no Brasil. As notas assinaladas em pé de página são de autoria do CVM.

[2] No original italiano: “borse della terra“. O termo, na medida em que é citado entre aspas, aponta para o desenvolvimento de um mercado (bolsa) informal, não regulado, de compra e venda de terras, de arrendamentos, etc.

[3]  “Ardito: Soldado dos batalhões de assalto instituídos durante a Primeira Guerra Mundial. – (N.do T.), p. 212 da edição de Seara Nova (1978). Ardistismo corresponde ao heroísmo militar desses batalhões.

[4] Plutocracia designa o domínio político da alta finança, quer dizer, de um grupo restrito do capital financeiro.

[5] Refere-se ao assassinato de Giacomo Matteotti, deputado socialista pelos fascistas em 10 de junho 1924 que causou grande comoção no país. Nas legislaturas anteriores pautou-se por uma oposição parlamentar ao fascismo, tendo formulado, naquele ano, uma denúncia, sustentada em provas, da violência fascista que estaria na origem da falsificação dos resultados das eleições de abril de 1924. Apesar da tentativa do Senado tentar levar adiante o processo, foi impedido por Mussolini. Em 1926 os partidos e movimentos de oposição foram declarados ilegais e na eleição parlamentar de 1928 participaram somente candidatos sancionados pelos fascistas. Antonio Gramsci, eleito deputado em 1924, foi preso em 8 de novembro de 1926 e somente obteve liberdade condicional em 1934, mas, com a saúde abalada, veio a morrer em decorrência de tuberculose contraída no cárcere, em 27 de abril de 1937.

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