“O fantasma da classe ausente”: ensaio sobre as bases sociais do Movimento da Reforma Sanitária

Eduardo Stotz*
*Doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1991). Atualmente é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: <eduardostotz@gmail.com>. ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-7021-398X>.
Publicado em Revista em Pauta Rio de Janeiro _1º Semestre de 2019 _n. 43, v. 17, p. 48 – 59
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

Não é correto dizer que a história passada dos comunistas, e de todos, já estava predeterminada, assim como não é verdade dizer que o futuro está nas mãos dos jovens que virão. A “velha toupeira” escavou e continua escavando, mas, como é cega, não sabe de onde vem e para onde vai, ou se anda em círculos. Quem não quer ou não pode confiar na providência deve fazer o que pode para entender e assim ajudar. (Lucio Magri)

 

 

Introdução

A tradição acadêmica determina, no que diz respeito ao conhecimento, uma rígida separação entre ensino e pesquisa. Dedicado à formação, o ensino é o domínio da instrução dos estudantes, informando e explicando conteúdos e métodos; deste modo, orientando a profissionalização. Não contribui, portanto, para a criação do conhecimento, tarefa exclusiva da pesquisa. Contudo, quando o professor sistematiza o conhecimento de um determinado campo científico, assinalando disputas, ambiguidades e lacunas existentes, não está próximo da pesquisa, em sua fase exploratória, contribuindo na delimitação do problema ou objeto de estudo?

É o caso do presente texto, escrito para responder a uma demanda dos alunos de disciplina oferecida no curso de Pós-Graduação em Saúde Pública, em sua edição de 2018. Durante sessão dedicada à Reforma Sanitária, a demanda apresentada ao professor responsável consistiu em explicar as razões do afastamento do Movimento da Reforma Sanitária em relação aos movimentos sociais pari passu com seu desenvolvimento no interior do aparelho de Estado.

A pesquisa bibliográfica realizada como parte da resposta à demanda identificou outro texto de mesmo título: O fantasma da classe ausente: as tradições corporativas do sindicalismo e a crise de legitimação do SUS, tese de Ronaldo Teodoro dos Santos defendida na UFMG em 2014. A leitura da tese conduziu-nos a perceber que, enquanto este autor fazia uma homenagem, nós identificávamos um problema. Valem aqui alguns esclarecimentos.

O tema que fundamenta o título da tese é desenvolvido apenas no capítulo 5 – O “fantasma da classe ausente” na formação da saúde pública brasileira. Neste subtítulo, o autor insere uma nota, a seguir reproduzida:

O uso desta expressão é uma forma de homenagear o destacado sanitarista Antonio Sérgio da Silva Arouca que, segundo Jairnilson Paim (2008), teria assim compreendido as dificuldades do movimento sanitarista em se articular, organicamente, com as massas populares. Ver PAIM, Jairnilson Silva. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. (SANTOS, 2014, p.101).

A defesa do Movimento da Reforma Sanitária dá o tom da tese. Quanto ao tema, o autor limita-se a reproduzir o ponto de vista oficial desse movimento, representado por Paim, deixando de lado, aliás, a sua fonte original, contida na dissertação de mestrado de Sarah Escorel (1987). Ainda que cite pontos de vista contrários ao discurso político daquele movimento, o faz por meio de outros e mesmo assim em nota de pé de página, como é o caso de Amélia Cohn (1992) citada por Francisco Lacaz (1994). Ele sequer faz referência à polêmica entre Sonia Fleury Teixeira e Gastão Wagner de Souza Campos, publicada na Revista Saúde em Debate e republicada no livro Reforma Sanitária: Itália e Brasil (referido, aliás, na bibliografia). Não aborda os debates da VIII Conferência Nacional de Saúde, especialmente sobre estatização da saúde, que sequer ocupa o espaço de um tópico na tese. E assim por diante.

Por outro lado, a alegoria do “fantasma da classe ausente”, mais do que simplesmente uma homenagem, torna-se, na tese de Santos (2014), uma quase-hipótese: “Compreende-se que esta alegoria é perfeitamente adequada para discutir o não-diálogo das teses sanitárias com o mundo sindical” (SANTOS, 2014, p. 114).

A ausência deste diálogo e o problema real da “classe ausente” no cenário político dos anos da década de 1980 – no que concerne ao papel do Partido Comunista Brasileiro e de sua vertente “eurocomunista”, à qual porta-vozes do Movimento da Reforma Sanitária como Sonia Fleury estavam vinculadas – somente se tornam compreensíveis à luz do estudo da luta de classes no país naquela década. É disso que o nosso texto pretende dar conta.

A ideia do “fantasma da classe ausente”

A discussão sobre a participação dos movimentos sociais na Reforma Sanitária brasileira é um dos “nós críticos” da teoria formulada pelos seus próprios intelectuais. Como assinala Amélia Cohn (1989), ao identificar o que caracterizaria esta reforma como expressão de um movimento, surgem alguns “fatos instigantes”:

O primeiro diz respeito a terem origem predominante no Executivo as propostas e medidas no sentido dos preceitos reformistas. O segundo exprime-se na dificuldade da extensa literatura a respeito para identificar as forças políticas que compõem o movimento da Reforma Sanitária brasileira. (COHN, 1989, p. 129-30).

Outro ponto é aquele das tensões no interior desse movimento (COHN, 1989, p. 131), tensões que Hésio Cordeiro caracterizou como caminho de “unificação pela base do sistema” de saúde, defendida por ele e por José Gomes Temporão, e outro, “pelo alto”, seguido por Antonio Sérgio Arouca (BRASIL, 2006, p. 77).

Interessa-nos aqui examinar os dois primeiros “fatos instigantes”. Antonio Sérgio Arouca foi quem apontou a correlação entre aqueles fatos por meio da alegoria do “fantasma da classe ausente”. De acordo com Sarah Escorel (1987), ele teria formulado a ideia do “fantasma da classe ausente” para dar conta de que a Reforma Sanitária no Brasil careceu de apoio num sujeito político popular – aliás, diferentemente do ocorrido na Itália no “outono quente” de 1969, a partir do que a Reforma Sanitária naquele país vinculou-se à emergência da classe operária como força política. Vale a citação integral do texto para se ter o entendimento do dilema que preocupava pelo menos Arouca e, por extensão, Sarah Escorel, a par das dificuldades em expressá-lo:

O movimento sanitário, em sua conformação, falava de uma classe operária que não aparecia no cenário político nem geral nem setorial. Por ser um movimento e não um partido, e por falar de uma classe ausente, o discurso médico-social de transformação continha esse outro ponto de tensão: sem contar com a participação direta da classe trabalhadora, o discurso e a prática do movimento sanitário era feito para ela (em direção a ela) ou por ela (no lugar dela). O distanciamento concreto entre o movimento e seu objeto fez emergir uma crítica interna questionando a representatividade e a própria legitimidade da existência do movimento sanitário. Arouca (1987) denominou esse conflito ‘o fantasma da classe ‘ausente’ como elemento de controle do movimento’. Em sua configuração, o movimento sanitário caracterizou-se por buscar – e ainda busca – seus sujeitos sociais. Mas é um movimento coletiva e organicamente ligado às classes populares e à proposta de melhoria de suas condições de saúde. (ESCOREL, 1987, p. 182).

A citação da frase completa de Arouca, contida na dissertação de Escorel 1987), permite entender a alegoria como uma assombração a perseguir o movimento reformista: “o fantasma da classe ‘ausente’ como elemento de controle do movimento” (ESCOREL, 1987, p. 182 – grifo nosso), interpretação confirmada na frase seguinte: “[…] o movimento sanitário caracterizou-se por buscar – e ainda busca – seus sujeitos sociais” (ESCOREL, 1987, p. 182). Porém, a palavra ausência, ao estar entre aspas, sugere pelo menos um questionamento a propósito da ausência efetiva da classe no cenário político. A última frase do parágrafo – “[…] é um movimento coletiva e organicamente ligado às classes populares […]” (ESCOREL, 1987, p. 182) – tenta contornar retoricamente o problema do distanciamento do Movimento da Reforma Sanitária em relação à classe operária. Aproximações também aconteceram em experiências como a dos Movimentos da Zona Leste de São Paulo e na VIII Conferência Nacional de Saúde. Contudo, aproximações; não enraizamentos. Tratava-se de um problema vital. A Reforma Sanitária, mesmo limitada a uma estratégia de luta democrática tendo por objetivo a derrota (e não, como veremos adiante, a derrubada) da ditadura militar, supunha forças sociais capazes de viabilizá-la. O problema é que essas forças, nos termos da alegoria de Arouca (apud ESCOREL, 1987), foram pressupostas como politicamente inexistentes. Ainda mais, em termos sociais, estavam separadas dos técnicos, professores e pesquisadores, isto é, do setor intelectualizado da pequena burguesia assalariada vinculada ao setor público (INAMPS, universidades públicas, FINEP, etc.).

 

A trajetória do PCB

O que não se podia e nem se disse desde então tem a ver com o papel histórico do PCB, de onde se origina um dos núcleos do Movimento da Reforma Sanitária, com Arouca na liderança. O vínculo partidário dele é apontado no depoimento de Sonia Fleury acerca do CEBES (MEMÓRIA E PATRIMÔNIO…, 2005).

Tendo monopolizado durante décadas o sentido da esquerda junto ao movimento operário brasileiro[1], o PCB caracterizou-se por uma estratégia de subordinação dos interesses da classe operária aos da burguesia “nacional”, supostamente antagônicos aos do imperialismo e do latifúndio. Essa subordinação se manteve mesmo quando a burguesia abandonou suas veleidades reformistas e apoiou abertamente o golpe militar de 1964. A derrota sem luta frente ao golpe foi a raiz de uma crise ideológica e política
que gerou vários e profundos desdobramentos, desde a perda de influência junto às classes trabalhadoras até as cisões que conduziram um grande número de seus quadros à luta armada contra a ditadura militar então instaurada (MARTINS, 1970).

Uma avaliação autocrítica que se aproxima do balanço de Ernesto Martins, dirigente da organização Política Operária (conhecida como Polop), aparece na autobiografia de Apolônio de Carvalho (1997), um dos comunistas históricos vinculados ao PCB, com o qual romperia após o golpe militar:

Apesar do ascenso sem precedentes do movimento popular e da permanente agitação golpista nos quartéis, na imprensa e junto à população, o PCB não se preparara – e não mobilizara o movimento popular para fazer frente ao golpe conservador. Alimentava a ilusão de que o exército estaria conosco. Tudo dependia, assim, do governo Goulart e de seu dispositivo militar. As ilusões de classe pairavam sobre a esquerda que, até o último lance, acreditaria nas mentiras oficiais. (CARVALHO, 1997, p. 186).

A autocrítica iniciada por Mário Alves, Marighella e Jover Teles semanas após o golpe considerava que “a orientação política anterior desarmara a organização, deixando de preparar o movimento popular para responder ao golpe”, entregando a direção política do movimento “nas mãos dos demais setores nacionalistas e democráticos” (CARVALHO, 1997, p. 195).

A trajetória do PCB entre 1964 e 1985 esteve pautada por uma estratégia de luta democrática pelo socialismo, cuja expressão foi, em cada conjuntura, a tática da “frente democrática” de luta contra a ditadura militar. O VI Congresso do partido, realizado em 1967, formulou, no entendimento do militante comunista Gilvan Cavalcanti Melo, os pressupostos desta linha política, em depoimento concedido a Fabrício Pereira da Silva (2008, p. 221):

[…] toda a nossa política de frente democrática, da questão já da Anistia, da Constituinte, nos documentos de 1967 já está explicitada toda essa política de abertura política, de se trabalhar através da sociedade, para ‘derrotar’ politicamente a ditadura, e não para ‘derrubar’ a ditadura. A ‘derrubada’ significa a luta armada, e a ‘derrota’ significava para nós o envolvimento da sociedade, dos movimentos políticos, da população no sentido de isolar a ditadura e dar uma saída até negociada, como na realidade aconteceu. (SILVA, 2008, p. 221).

Apesar da unidade em torno da estratégia democrática pelo socialismo, a linha política (tática) foi aprovada com dificuldade devido à cisão ocorrida em 1967, com perda de quadros e questionamento de outros, inclusive por Luiz Carlos Prestes, então no exílio. A crise, contudo, não desestruturou o partido. Atrelado ao MDB, no qual vislumbrava a “frente democrática” por excelência, chegando a conquistar cargos eletivos pela legenda, o PCB manteve-se razoavelmente coeso até os primeiros sinais evidentes do fim da ditadura militar, a saber, até a extinção do Ato Institucional no. 5 e a decretação da Anistia, em 1979 (SILVA, 2008).

A partir de então duas correntes passaram a disputar a direção centrista do partido, representada na figura de Giocondo Dias: de um lado, os “renovadores”, intelectuais como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Werneck Vianna, que propunham a adoção, no país, da concepção eurocomunista da democracia como valor universal, agrupados na revista Presença; de outro, os “prestistas”, a reivindicar o resgate do caráter revolucionário da luta contra a ditadura militar, formulada por Luiz Carlos Prestes na Carta aos comunistas (1980).

Como assinala ainda o autor citado acima, nesse período “o partido seguiu uma trajetória marcada por certa dubiedade, buscando equilibrar-se entre o necessário enfrentamento com o regime e o sempre temor de um retrocesso” (SILVA, 2008, p. 223).

 

A linha sindical do partido

Temendo que a radicalização das greves e lutas populares viesse a desestabilizar a “transição democrática”, o PCB assumiu um papel de contenção no movimento sindical. Não por acaso, em nome da Unidade Sindical, colocou-se contra a formação da Central Única dos Trabalhadores e do Partido dos Trabalhadores, isolando-se do movimento operário que estas organizações expressavam como consequência da retomada das lutas operárias nos anos 1978-1980.

Um exame mais específico da atuação do PCB no meio sindical encontra-se no estudo de Batistoni (2001), especialmente na análise do processo da eleição para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, que representava na década de 1980 a maior base operária do país e da América Latina.

Expressão de um processo de lutas e de organização que remontava ao final da década de 1970, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) obteve, na eleição para a direção do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, em 1984, o consenso, ainda que difícil, com os petistas para lançar uma chapa única de oposição. A chapa concorreu contra a situação, representada por Joaquim dos Santos Andrade (conhecido como Joaquinzão, homem de confiança da Fiesp e denominado nas esquerdas de “arqui-pelego”), e Luis Antonio de Medeiros, ainda militante do PCB. Na indicação de Medeiros para a vice-presidência do sindicato, o PCB conquistava uma importante posição para tentar retirar da cena, sem traumas, o velho peleguismo, a esta altura um estorvo para uma categoria metalúrgica, que havia adquirido um grau de organização razoavelmente avançado nas grandes fábricas e mantinha uma profunda desconfiança do sindicato.

Os resultados da eleição consagraram novamente Joaquinzão por uma pequena diferença, principalmente graças aos votos dos aposentados e metalúrgicos das pequenas empresas, enquanto a oposição fora majoritária nas médias e grandes empresas. Numa categoria estimada em 370.000 metalúrgicos, a sindicalização alcançava apenas 55.000 associados ou 14% do total de trabalhadores, mas a eleição havia mobilizado somente 43.081 votantes, com um declínio do número de sindicalizados das fábricas, em parte fruto do desemprego causado pela recessão econômica entre 1982-1983 (BATISTONI, 2001).

A atuação sindical do PCB ao chancelar o peleguismo em 1984 abriu a porta, em 1987, para o “sindicalismo de resultados” entre os metalúrgicos de São Paulo, que, sob a liderança de Luiz Antonio Medeiros, já então um ex-comunista, fundou a Força Sindical com apoio de Antonio Rogério Magri, ministro do Trabalho de Fernando Collor de Mello (1990-1992).

O Movimento da Reforma Sanitária, porém, desenvolveu-se à margem do movimento operário, tendo inclusive estado de costas para iniciativas como a criação do departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT), fundado em agosto de 1980 (LACAZ, 2011). Optou por manter-se dentro da coalizão política (Aliança Democrática), que promovia, sob hegemonia burguesa, a transição do poder dos militares para os civis. Foi também o que propiciou a participação dos quadros do PCB e de sua área de influência no governo do general Figueiredo, por meio do Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), em 1981.

A opção de participar do aparelho de Estado provocou uma cisão no Movimento Popular de Saúde (MOPS), um movimento que integrava lideranças populares e profissionais de saúde, recém-constituído no III Encontro Nacional de Medicina comunitária (ENEMEC) em maio de 1981. Como assinalamos em artigo que inclui esta experiência (STOTZ, 2005), o encontro decidiu pela institucionalização do movimento, mas conforme o depoimento de um dos participantes, Neilton de Oliveira, o MOPS já nasceu “rachado” (STOTZ, 2005, p. 23). O pano de fundo das divergências entre as esquerdas era de cunho político geral, opondo principalmente o PCB ao Partido dos Trabalhadores, culminando na participação do primeiro e na exclusão do último do Colégio Eleitoral, quando da eleição indireta para a Presidência da República em 1985.[2]

 

A ausência da classe operária no cenário político

A ideia ou a representação do “fantasma da classe ausente”, como não podia deixar de ser, tinha uma base objetiva. Em outros termos, indicava que a classe operária estava ausente politicamente como força própria e independente, apesar da radicalização das lutas econômicas e dos enfrentamentos políticos ocorridos no período do fim do regime militar, a exemplo da greve de 1979, quando o fundo de greve substituiu o sindicato sob intervenção (RAINHO; BARGAS, 1983), e do esboço de greve geral ocorrido em 1983 (STOTZ, 2018). Quando a classe operária entrou no cenário político dessa época por meio do nascente Partido dos Trabalhadores (PT), o fez de modo ideologicamente subordinado à corrente pequeno-burguesa democrática radical dominante neste partido, pois carecia de experiência política própria para imprimir a sua direção aos fatos da conjuntura (MARTINS, 1983).

Nesse sentido, a hegemonia burguesa jamais foi posta em questão, o que explica a tranquilidade com que a classe dominante enfrentou a crise da ditadura e incorporou os diferentes matizes da oposição. A atuação da maioria das organizações de esquerda, incluindo o PCB, ao consagrar o Colégio Eleitoral que formalizou o fim da ditadura militar, manteve-se nos estreitos limites da democracia burguesa renascente. Apesar de opor-se a esta forma de redemocratização pelo alto, tutelada pelos militares, o PT, única força partidária efetivamente de oposição, acabou legitimando, mais tarde, a Carta Constitucional de 1988.

Obviamente este não é o balanço que os intelectuais do Movimento da Reforma Sanitária fizeram da conjuntura da época. Uma das imagens condizentes com a estratégia do PCB referida no subtítulo anterior é aquela apresentada por Paim (2008), com base em Sonia Fleury Teixeira (1989), de que a conjuntura da crise da ditadura militar e da redemocratização do poder político burguês não teria contribuído “para a constituição das classes populares como sujeito político” (PAIM, 2008, p. 637-638). Esse argumento, pela sua generalidade, não permite avaliar o papel real desempenhado pelos partidos políticos, assim como legitima a tese defendida por Sonia Fleury de que “o caráter político da Reforma Sanitária será dado pela natureza de transição democrática experimentada em cada contexto nacional” (TEIXEIRA, 1989, p. 39). Interpretado por Paim nos termos da tese gramsciana da “revolução passiva” e ilustrado no caso brasileiro pela transição para a democracia formal como uma “pactuação pelo alto” (entre as elites políticas), esse processo teria restringido “a mobilização das energias populares” (PAIM, 2008, p. 638), conferindo à “coalizão reformadora” um papel decisivo na formulação e implementação do SUS.

Alegações de quem se encontrava à margem dos setores mais combativos do movimento operário, em decorrência de sua estratégia democrático-burguesa. Incapaz, portanto, de entender que a classe operária sempre luta por reivindicações econômicas específicas. Que geralmente é obrigada a se manifestar politicamente, a exemplo da recusa e resistência à política econômica que afeta seus direitos e conquistas materiais. E que, no decorrer dessas lutas, apoiado por organizações de vanguarda, organiza-se em torno delas por serem instrumentos mais eficazes na luta de classes.

 

Considerações finais

Por último, devemos nos indagar sobre o contexto específico em que a ideia de Antonio Sergio Arouca foi elaborada, de modo a inferir uma possível razão de ser. A dissertação de Sarah Escorel, defendida em 1987, base do livro publicado no ano seguinte, contém a seguinte nota de referência sobre a ideia: “Análise feita por SERGIO AROUCA no processo de orientação deste trabalho” (ESCOREL, 1987, p. 338). Ou seja, remontava
pelo menos a 1986.

O que se passava então? O Governo Sarney conquistara, mediante o Plano Cruzado (1986), uma adesão social importante das classes médias. O PMDB conseguiu, na eleição de 15 de novembro de 1986, baseado na euforia causada pelo plano, eleger 22 governadores e a maioria do Congresso Nacional. Politicamente, o PCB e também o Movimento da Reforma Sanitária apoiavam Sarney, tendo inclusive Arouca utilizado a linguagem governamental para defender um choque heterodoxo na saúde. Porém, devido à política que preservava o arrocho salarial da época da ditadura militar (impunha, por exemplo, a incorporação automática de apenas 60% da variação dos preços aos salários), o Governo Sarney voltara contra si o movimento sindical. O isolamento social do PCB junto aos trabalhadores aprofundou-se, tanto mais porque, finda a apuração dos votos nas urnas em 1986, o governo liberou os preços represados e o país assistiu ao início da chamada hiperinflação (STOTZ, 2018).

A perda de substância social do partido iria atingir também o Movimento da Reforma Sanitária durante o processo da Constituinte. Esta, aliás, não fora convocada autonomamente: o Congresso Nacional, eleito com base na popularidade lograda pelos efeitos imediatos do Plano Cruzado, transformara-se em Constituinte. No interior dessa Constituinte Congressual, na qual predominava a posição de centro-direita, a expressão do Movimento da Reforma Sanitária valia mais por seus nomes, trajetórias e vínculos com o poder executivo federal do que pelas bases sociais e do poder de pressão que estas poderiam fazer. A emenda popular da saúde, aliás, obteve 54.133 subscrições, contra 1,2 milhões de assinaturas da emenda do ensino público conseguidas pelo movimento estudantil. Fechado na Academia, o Movimento Sanitário demorou a chegar às ruas e sua proposta não encontrou eco na sociedade (RADIS, 2008).

* * *

Notas

[1] Segundo Hércules Corrêa (1980), a força do partido no pós-guerra dependeu do trabalhismo, devido ao predomínio desta corrente ideológica e política no movimento operário.

[2] A adesão implicava uma linguagem moderada, substituindo, por exemplo, o uso do termo ditadura militar pelo de Estado autoritário ou regime burocrático-autoritário, referido inclusive em documento preparado por Sonia Fleury para a VIII Conferência Nacional de Saúde (TEIXEIRA, 1986).

Referências

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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria da Gestão Estratégica e Participativa. A Construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do Processo Participativo. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
CARVALHO, A. de. Vale a pena sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
COHN, A. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova, São Paulo, n. 19, nov. 1989.
CORRÊA, H. A classe operária e seu partido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, ENSP, São Paulo, 1987, mimeo.
FLEURY, S. Reforma Sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, maio/jun. 2009.
LACAZ, F. A. de C. A atuação do PCB e a Reforma Sanitária Brasileira. Portal do PCB. 2011. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/1788/a-atuacao-do-pcb-e-a-reforma-sanitaria-brasileira. Acesso em: 3 mar. 2019.
LACAZ, F. A. de C. Reforma Sanitária e Saúde do trabalhador. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 3, n. 1, jan./jul. 1994.
MAGRI, L. O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano. São Paulo: Boitempo, 2014.
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MEMÓRIA E PATRIMÔNIO da saúde pública no Brasil: a trajetória de Sérgio
Arouca. Unirio, set. 2005. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/. Acesso em: 10 mar. 2019
PAIM, J. S. A reforma sanitária brasileira – contribuição para a compreensão
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