Marx e o Marxismo – Georges Haupt

O repentino desaparecimento de G. Haupt nos privou da possibilidade de dispor da reelaboração deste ensaio, prevista especialmente para a História do Marxismo. Esta, portanto, é a primeira versão, que redigiu para o volume A Internacional Socialista da Comuna a Lênin, Turim 1978, e na qual apenas foram introduzidas algumas modificações, encontradas na última redação do manuscrito.

Texto publicado em : Eric Hobsbawm (org). História do Marxismo. Volume 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, páginas 347-376. 

 

 

Os termos “marxista” e “marxismo” são conhecidos universalmente, empregados correntemente e às vezes usados sem muito critério. Alguns marxólogos chegaram a pôr em discussão a própria legitimidade desses termos; Maximilien Rubel, por exemplo, considerou-os “abusivos e injustificáveis”. Em particular, Engels, “o fundador”, é acusado por ele de ter “cometido o erro imperdoável de dar sua aprovação a essa excrescência”, de tê-la “sancionado com a sua autoridade”, pois, se tivesse oposto o seu veto, “este escândalo universal jamais se verificaria”.[1]

A tese, formulada tão brutalmente, parece-me discutível, pois esse modo de pôr o problema corre o risco de simplificar excessivamente um processo bem mais complexo. Isso não significa que o ponto de vista de Rubel deva ser posto entre parêntese: ao contrário, deve ser destacado, justamente porque nos obriga a formular indagações sobre alguns lugares-comuns cômodos e enganosos, e sobretudo a nos dedicarmos mais profundamente ao estudo dos mecanismos de formação e difusão de conceitos cuja adoção abusiva inquina o nosso vocabulário político.[2] A história dos termos “marxista” e “marxismo” pode ser esclarecedora por várias facções, particularmente por ilustrar a difusão e enraizamento das ideologias no movimento operário internacional, revelando-nos a natureza, as transformações e as metamorfoses que sofreu essa teoria revolucionária designada com um termo tão genérico. A mim me parece que o problema consiste mais em examinar o modo como uma noção deste tipo se impôs, as razões de sua difusão e de sua utilidade, do que indagar sobre a sua legitimidade ou fidelidade com referência ao projeto inicial de Marx.

A confusão terminológica é contemporânea do surgimento da dupla “marxista-marxismo” e continua até hoje, através do uso e da interpretação que se lhe deu. São termos ligados a tantos significados distintos e a tantos preconceitos de partidários e inimigos, e o conteúdo coberto pela palavra “marxismo” se revelou de tal modo elíptico, que é justo indagar o que se pretendeu definir com esse termo nas diversas fases de sua história.[3] Tanto mais que o aparecimento, a difusão e as sucessivas modificações ocorridas no significado do termo podem fornecer-nos em certa medida o sentido do processo que levou à ascensão e à difusão em escala mundial do marxismo.

 

  1. Marxismo: uma facção ou uma ideia?

Como acontece frequentemente na história dos grandes movimentos políticos e intelectuais, a denominação não nasceu de dentro, das fileiras dos partidários, mas de fora, das hostes dos opositores. As várias etapas de cristalização do novo termo estão ligadas às etapas percorridas pelo movimento operário. Desde os anos 40 do século passado, mas sobretudo no processo de dissolução da Liga dos Comunistas, no início da década de 50, os adversários de Marx falam de um “partido de Marx”.[4] Entre 1853 e 1854, no curso da polêmica entre os seguidores de Weitling e Marx, surge a qualificação de “marxiano” (Marxianer), que designa Marx e “os seus cegos seguidores”, que representam na Alemanha a “kritische õkonomische Richtung”.[5]

A palavra “marxiano” se difundirá no decênio seguinte, contraposta a “lassalliano”.[6] Na Primeira Internacional, Bakunin e seus adeptos usarão, em sua dura luta contra Marx e o Conselho Geral, o atributo “marxistas”,[7] e a expressão então corrente de “marxianos” (sinônimo de “dinastia dos marxistas”, “lei de Marx”, “comunismo autoritário”), bem como o novo termo onomástico “marxistas” servirão mais para acusar Marx e seus partidários, do que para definir-lhes as ideias. De resto, recorrendo a esses epítetos onomásticos, Bakunin não faz mais que pagar a Marx na mesma moeda: com efeito, em seus escritos abundam termos como “proudhoniano”, “bakuniniano”, usados para desqualificar ou ridicularizar os seus adversários. Como observa Margarette Manale, “à primeira vista o termo ‘marxianos’ escapuliu da pena de Bakunin por analogia verbal com o termo ‘mazziniani’”, e Bakunin utiliza habilmente esses epítetos polêmicos para encerrar a Marx “no sectarismo em que estes haviam lançado os seus adversários e críticos”. Por outro lado, “o uso dessa etiqueta terminológica, que conhece uma série de transformações”,[8] desemboca em Bakunin e nos jurassianos em dois termos distintos: “marxianos” ou “partido marxiano, o da democracia dita socialista”, que serve para designar os partidários, os “agentes” de Marx, e “marxista”, para definir sua orientação e suas ações. [9] O termo adquire um forte cunho polêmico; Bakunin e seus seguidores, por exemplo, falam do Congresso “marxista” de Haia ou de “falsificações marxistas” a respeito das resoluções do Congresso de Haia, ou de “inquisidores marxistas” para designar a comissão de inquérito nomeada por aquele Congresso. Numa palavra, o uso da etiqueta “marxista” serve para acusar (“os marxistas não têm por objetivo a emancipação imediata do proletariado”, e somente ao fim de um longo processo linguístico a ser elucidado, todas as diversas etiquetas são englobadas no vocábulo infinitamente mais cômodo, linguisticamente plausível e já despido de qualquer conotação negativa: “marxista”.) [10]

Com a cisão ocorrida no Congresso de Haia da A.I.T. é que a etiqueta “marxista” começa a difundir-se. Seu significado é, no entanto, bastante distinto do que lhe atribuíra Bakunin. O termo designa a fração que permanecera fiel ao Conselho Geral e é usada em contraposição a “aliancista” ou “bakuninista”. Mas se trata apenas de um entre vários apelativos integrantes do vasto arsenal dos internacionalistas. Assim, na Mensagem do Grupo Revolucionário Socialista de Nova Iorque ao Congresso Internacional de Genebra de 1873, pode-se ler: “Queremos a união, mesmo às custas do sacrifício de algumas de nossas ideias; mesmo com o sacrifício de alguns indivíduos; e que romandos e jurassianos, federalistas e centralizadores, marxistas e aliancistas se deem novamente a mão.” [11] A imprensa burguesa hostil ao Congresso se apodera gostosamente do termo.[12] Estamos diante de uma “sistemática confusão terminológica”, observa em setembro de 1872 Johann Philipp Becker, próximo das posições de Marx’, falando’ do “Journal de Genève”. Seu protesto caracteriza bem a reação dos atingidos diretamente:

Chamando de “marxistas” os seguidores do socialismo internacional, autêntico fruto do terreno científico, a imprensa burguesa ou demonstra sua ignorância das coisas ou revela um péssimo gosto, tanto mais chocante, quanto age assim para opô-los à seita insensata dos “bakuninistas”, que por seu turno carrega essa denominação cheia de ironia e de escárnio como um castigo bem merecido.[13]

Por seu turno, os “antiautoritários”, como o belga Verrycken, deploram igualmente o fato de “os jornais burgueses, manipulando o malfadado incidente de Haia, (fazerem) personalismos, quando se trata de questões de princípio”.[14] Pelo menos em um ponto “marxistas” e “bakuninistas” estão de acordo: que “duas correntes de ideias agitaram a Internacional, e não a luta entre dois chefes”.

O apelo aos epítetos onomásticos e a personalização das correntes ideais daí resultante chocam a sensibilidade dos militantes operários. Um certo número deles se insurge contra essa prática. É o caso dos internacionalistas genebrinos, como Henri Perret, correspondente de Marx, que, num opúsculo publicado às vésperas do Congresso de Genebra da A.I.T., em setembro de 1873, data o surgimento desses termos de 1869, colocando-os na polêmica provocada pelas manobras divisionistas da Aliança Internacional da Democracia Socialista em Genebra: “Ê naquela primeira disputa que surgem as expressões marxistas e bakuninistas.” É bastante reveladora a maneira como ele repele os termos onomásticos:

Já o fato de as seções se agruparem em torno de nomes próprios é deplorável, contrário aos nossos princípios e aos interesses da emancipação dos trabalhadores. O amor próprio, o orgulho, a ambição, todas as paixões humanas inerentes à personalidade humana tomam o lugar dos interesses gerais da massa. Esquece-se a ação lenta, fria, contínua, metódiça, necessária a esses interesses, e acendem-se as paixões a favor ou contra esta ou aquela individualidade, sempre mais fácil de exaltar ou derrubar, do que conquistar um progresso ou eliminar um abuso.

O tom obreirista dessa argumentação se explicita, quando Perret assinala:

Essas personalidades raramente são operários; são burgueses desclassificados, doutores, professores, escritores, estudantes, às vezes até mesmo capitalistas.

E condenando ambos os campos adversários, julgados responsáveis da crise da Internacional, conclui:

(É preciso) não somente mudar os homens, mas destruir a raiz do mal. Chega de marxistas e bakuninistas! (Impõe-se) a aliança sincera e real dos trabalhadores.[15]

Terá sido atendido o apelo? O fato é que em pouco tempo – entre 1874 e 1877 – tais epítetos tendem a desaparecer do vocabulário socialista. Os bakuninistas, por exemplo, que inicialmente aceitavam sem grande mossa o apelativo que lhes fora impingido, recusam-no em nome dos próprios princípios. Assim, em 1876, no Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (federalista) de Berna, Errico Malatesta declara que, não obstante a dedicação e o respeito que o ligam a Bakunin, os seus partidários não são “bakuninistas”, antes de tudo porque “não compartilhamos todas as ideias práticas e teóricas de Bakunin”, depois – e sobretudo – “porque seguimos as ideias, não os homens; rebelamo-nos contra o hábito de encarnar um princípio num homem, hábito que é bem digno dos partidos políticos, mas totalmente incompatível com as tendências do socialismo moderno”. Faz notar ainda que “o próprio Bakunin sempre protestou contra essa qualificação dada aos seus amigos. “[16] No mesmo Congresso, o deputado social-democrata alemão Vahlteich, que comparecera a título pessoal, censurava “os ataques endereçados pela Alemanha contra esta ou aquela personalidade” socialista estrangeira, e declarava: “Entre nós não há nem ‘marxistas’, nem ‘dühringuianos’, e os outrora lassallianos uniram-se sem segundas intenções ao movimento geral.” [17]

Ê uma linguagem que decorre do espírito de reconciliação difundido com os esforços dos internacionalistas belgas para organizar em 1877 um Congresso geral socialista em Gand; mas a iniciativa, tendente a avançar “no caminho de uma reaproximação das diversas frações hostis”,[18] fracassa totalmente. Daí por diante as hostilidades tendem a agravar-se, num contexto bem diferente. Os qualificativos onomásticos reaparecem e até se enriquecem: paralelamente d “marxista”, surge outro neologismo: “marxismo”. Logo formarão um par estreitamente ligado. Quem inventou esse termo? A resposta é difícil. Pode-se afirmar, com certeza, que em 1882 ele já aparece no título de um panfleto polêmico, “O marxismo na Internacional”, de Paul Brousse, um ex-antiautoritário, “anarquista extremado” no Congresso de Gand, que se tornara o dirigente dos possibilistas na França.[19] Nas páginas daquele que Engels, em 1881, definira como um ótimo rapaz – “Kreuzbraver Kerl” – mas “totalmente incapaz no plano da teoria e da expressão escrita”, o “ser mais confuso que encontrou na vida” [20], o termo “marxismo” não designa uma teoria, mas a prática e o objetivo da social- democracia, dos partidos operários que se situam no terreno da luta de classes.

O marxismo não consiste em ser partidário das ideias de Marx (…). Nesse sentido, muitos de seus atuais adversários, e particularmente o autor destas linhas, seriam marxistas”, declara Brousse, que polemiza contra o modo de agir de uma “facção marxista que existe na Europa”, ou seja “os social-democratas da escola de Marx”, que pretendem impor na França a sua concepção de partido. Em suma, o termo “marxismo”, usado indiferentemente com o adjetivo “marxista”, não indica para Brousse uma teoria, mas a tendência dos supostos partidários “das doutrinas alemães de Marx , o partido marxista”, ou seja a social-democracia alemã e seu “apêndice” na França, formado pelos guesdistas.[21]

O tom polêmico dos dois termos, não obstante a persistência do uso polêmico pelos anarquistas, [22] começa a atenuar-se a partir do início dos anos 80. Seu significado e sua utilização demonstram rapidamente notáveis mudanças. É o caso, por exemplo, da Rússia, onde esses termos sempre tiveram uma conotação positiva, e isso desde 1881. [23] Tal fato pode ser explicado pelo interesse precoce que a obra de Marx despertou nos arrais populistas e a imediata acolhida de que foi objeto de modo muito intenso e realmente especial, chegando a penetrar profundamente na ideologia.[24] Sob esse ponto de vista, é característica a carta de 7 de fevereiro de 1883, enviada por J. Stefanovitch a Lev. Dejtch, que estivera entre os fundadores do primeiro grupo marxista na Rússia, o grupo Libertação do Trabalho:

Há uma coisa que não entendo: por que contrapor o populismo ao marxismo? Pode parecer que o seu princípio fundamental não seja idêntico ao adotado pela economia política contemporânea (para Kireevski e Dostoievski, realmente, não era assim). Mas nós falamos do populismo atual. O populismo consiste – ao que me parece – na aplicação daqueles princípios marxistas a um caso particular, entendendo por isso o perfil espiritual e físico de um dado país, o nível e as características de sua civilização e da sua cultura…Ser marxistas enquanto teóricos, e não enquanto membros de um partido socialista militante no Ocidente, não impede absolutamente de ser populista; mas o contrário, naturalmente, nem sempre é verdadeiro. [25]

A partir dos anos 80 os termos “marxista” e “marxismo” entram no vocabulário socialista internacional em diversas acepções. Servem em primeiro lugar, de identificação e demarcação, e são múltiplas as razões das rápidas mudanças verificadas no seu emprego. Deve-se ter presente, antes de mais nada, as modificações que vão ocorrendo na terminologia socialista, particularmente na auto- designação das várias correntes, em sua vontade de distinguir-se das outras correntes socialistas rivais. Recordemos a esse respeito que, nos tempos da I Internacional, três termos definem as três tendências principais, seus objetivos e métodos: o primeiro – comunismo – refere-se a Marx (mas é reivindicado também pelos blanquistas); o segundo – coletivismo – indica Bakunin e a sua tendência; e finalmente o termo socialismo é aplicado às tendências moderadas, de características pequeno-burguesas. Ora, essas três denominações tendem a desaparecer ou a modificar-se com a dissolução da A.I.T. O substantivo social-democrata se destina a substituir o de comunista, [26] e indica as correntes e os partidos que se situam no terreno da luta de classes e da luta política. Ele se propagará, não obstante as resistências de Marx e Engels. 37[27] A etiqueta de “anarquismo” [28] será adotada por uma corrente numerosa e heterogênea, unida pela sua oposição à luta política como instrumento de ação socialista. As tendências moderadas, de caráter reformista, serão designadas por seus adversários, na maioria das vezes, como “possibilistas”. No léxico socialista dos anos’80, o termo “marxista” está ligado ao de social-democrata, como para assinalar a distinção dos “possibilistas”. Assim, os dois congressos internacionais que se reuniram em Paris, em julho de 1889, foram identificados pelos contemporâneos como “Congresso marxista” e “Congresso possibilista”. [29]

Desde aqueles anos, fala-se correntemente na França do Parti Ouvrier Français como da “fração marxista do conjunto do Partido Socialista” ou como do “Partido operário marxista”. [30] Por outro lado, os militantes guesdistas se autodenominam marxistas: Dormoy, por exemplo, ao anunciar a Guesde em 1888 a sua intenção de não candidatar-se às eleições parlamentares, mas de aspirar a um mandato no Conselho Municipal, explica sua decisão nos seguintes termos: “Digo-lhe hoje como ontem: não foi Dormoy quem voltou ao Conselho Municipal, mas todo o partido marxista”.[31] A 8 de novembro do mesmo ano, ao relatar-lhe os trabalhos do III Congresso Nacional dos Sindicatos reunido em Bordeaux, escreve igualmente: “Os marxistas dominavam com uma sólida maioria, e embora muitos não fossem marxistas… todas as nossas resoluções foram aprovadas por unanimidade”.[32] Por seu turno, Osip Zetkin, também guesdista, numa pequena história do movimento socialista na França após a Comuna de Paris, escrita em alemão no ano de 1888, para os militantes do Partido Social-Democrata alemão, fala dos filiados ao partido francês como “marxistas”, distinguindo-os dos “blanquistas” e dos “socialistas independentes”.[33]

O uso dos termos “marxista” e “marxismo” adquire então um sentido preciso no seio da social-democracia alemã. Ao invés de alcunhas pejorativas, tornam-se indicações positivas e penetram no vocabulário político com um novo sentido.

A evolução semântica ocorrida num lapso de tempo relativamente curto deve ser entendida em relação com os profundos fenômenos de transformação do movimento operário no período de transição da I para a II Internacional. A “grande depressão”, aberta pela crise de 1873, acelera uma inversão de tendência. A corrente abstencionista, em maioria após o Congresso de Haia da A.I.T., perde rapidamente terreno, enquanto a coalizão “antiautoritária”, reunida em torno da A.I.T. federalista, se divide em 1876. Assim os partidários da luta política se tornam majoritários no movimento operário e, a exemplo da SPD, acelera-se a formação de partidos operários independentes; num decênio, entre 1884 e 1892, completa-se a constituição dos principais partidos socialistas europeus. Nesse processo, o instrumental ideológico muda suas funções, e a formação de partidos operários coloca as premissas para a difusão e a aceitação do marxismo, que oferece as bases para suas ideologias oficiais: o princípio da luta política, meio de ação e de autolegitimação, e o princípio da luta de classes, elemento constitutivo de sua identidade e de sua consciência coletiva.

Essas transformações provocam mudanças importantes também na sensibilidade dos militantes. Os termos onomásticos “marxista” e “marxismo” não ferem mais as suas convicções, mas, ao contrário, encontram acolhida favorável, a ponto de serem assumidos conscientemente, por vontade de distinção e de demarcação; tanto mais que a difusão do marxismo e sua capacidade de penetração crescente no movimento operário internacional, após a fundação da II Internacional, conferem aos mesmos um novo conteúdo.

 

  1. A difusão das ideias de Marx

Que representam os “marxianos” na I Internacional? Falar dos “marxistas” como de uma corrente no seio da A.I.T. corresponde mais às argumentações polêmicas de Bakunin, que à realidade dos fatos. Paradoxalmente, foi uma cerca historiografia que se proclama marxista quem assumiu por conta própria tais afirmações, emprestando-lhes um significado positivo, para construir, graças a um estranho amálgama, um esquema linear de difusão do marxismo. Não resta dúvida que, tanto no Conselho Geral, quanto em certo número de seções, reuniam-se em torno de Marx muitos militantes, que formam o “partido de Marx”; mas salvo poucas exceções, mesmo aqueles que explicitamente se vinculam à “escola de Marx” ou aqueles que são considerados “marxianos” não compartilham suas ideias ou simplesmente não as conhecem.[34] Seus partidários mais próximos, como W. Liebknecht, aceitam sua orientação, sua plataforma política, mas nem por isso são “marxistas”.

No Conselho Geral, observa Kautsky, “a orientação particular de Marx se fazia presente com grande parcimônia”. Somente graças à sua supremacia intelectual e à sua “arte de manejar os homens”, Marx consegue levar a A.I.T. para as suas linhas estratégicas.[35] Seria errôneo confundir a estrutura de Marx, que domina as instâncias da A.I.T., e a força de repercussão das suas ideias teóricas no âmbito ideológico do movimento operário da época. A autoridade pessoal de Marx nos ambientes socialista é enorme. Desfruta de extraordinária notoriedade não somente na cúpula da Internacional, mas também entre os militantes. Seus dotes científicos e sobretudo a qualidade da sua obra econômica são reconhecidos até mesmo por seus mais ferrenhos adversários. Bakunin chega a declarar que Marx é “o apoio mais seguro, mais influente e mais sábio do socialismo, uma das mais sólidas barreiras contra a penetração das diretrizes e das aspirações burguesas de todo tipo”.[36] E reconhece: “Marx é o primeiro cientista economista e socialista de nosso tempo”. [37]Mesmo na imprensa alemã, o autor do Capital é definido como “o maior economista vivo, o doutor Karl Marx, mestre de Lassalle”. [38]

A publicação do primeiro volume do Capital, em 1867, consolidou a fama de Marx, que superou as fronteiras dos meios socialistas. Em primeiro lugar isso repercute em sua posição no seio do movimento operário. Em 1868, por exemplo, na Asembléia Geral da Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein, realizada em Hamburgo, W. Bracke lê um informe de orientação dedicado à “obra de Karl Marx” e apresenta uma resolução, aprovada sem debate, que diz: “Por sua obra sobre o processo de produção do capital, Karl Marx tornou-se um benfeitor eterno da classe operária.” [39] Mas no que se refere às teses de sua obra-prima, elas penetram com muita lentidão na realidade do movimento operário; e se O Capital chega a ser conhecido é graças aos vários opúsculos de síntese e divulgação, nem sempre obras de partidários de Marx.

A difusão das ideias de Marx ao longo dos anos 60 e 70 do século XIX se dá sobretudo através dos documentos fundamentais da A.l.T. redigidos por ele, a começar da Conferência Inaugural, depois as resoluções dos Congressos, e finalmente as Conferências do Conselho Geral, das quais as mais importantes e divulgadas são aquelas sobre a “guerra civil” na França. Essa “propaganda educativa”, observa Mehring, exprime e resume o marxismo da I Internacional.[40] Os documentos programáticos da A.l.T. são instrumentos eficazes de recrutamento e de conversão de militantes isolados. Sua influência se exerce em primeiro lugar na Alemanha, particularmente no partido eisenachiano. Foi justamente a leitura da Conferência Inaugural que levou Bebel a aderir as ideias de Marx; essa mesma Conferência é invocada como exemplo e como argumento essencial pelos relatores da comissão de programa da Conferência de Nuremberg, em setembro de 1868, quando o partido adere a A.I.T. Os internacionalistas alemães explicam a influência e a força da A.I.T. pelo fato de ela dispor de um rigoroso programa científico. Assim, o operário tipógrafo Hillmann, eisenachiano, publica no jornal da Associação dos Tipógrafos um longo artigo sobre a A.I.T., frisando q papel exercido por Marx, na condição de autor da Conferência:

Um Manifesto às classes trabalhadoras da Europa, redigido por Karl Marx, o famoso economista social, foi apresentado na Associação; a Conferência concorria com um projeto de estatutos mazziniano, de natureza tão conspirativa, que ameaçava sufocar no embrião o nascimento de uma Associação Internacional dos Trabalhadores. Consequentemente este foi rejeitado, enquanto o Manifesto apresentado por Marx, como também os Estatutos (definitivamente sancionados depois, no Congresso de Genebra de 1866) foram aprovados. A iniciativa de fundar essa Sociedade se deve portanto a um alemão. Este Manifesto é um dos escritos mais importantes saldos da pena dessa autoridade científica; contém a crítica mais contundente já. levantada contra uma classe dominante ao longo da história universal. [41]

A Comuna de Paris teve um peso importante para levar Marx à notoriedade europeia. A imprensa o aponta como chefe da onipotente Internacional, e através da identificação da A.I.T. com a insurreição parisiense, o “partido de Marx” e o próprio Marx pessoalmente adquirem uma fama que contribui de modo significativo para suscitar interesse por sua pessoa em vastos setores da opinião pública. A reputação científica de Marx servirá de poderoso instrumento aos seus discípulos e epígonos para fazer prevalecer a sua teoria no movimento operário. No necrológio publicado peia “Neue Zeit”, por exemplo, acentua-se o fato de Marx, o fundador do socialismo científico, ter sido um dos mais eminentes doutos do seu tempo.

Através da investigação das leis do movimento histórico e econômico, Marx colocou-se entre os maiores pensadores e cientistas. Ninguém poderá ou pretenderá contestá-lo. A sua teoria adquiriu para a ciência a mesma importância da teoria darwiniana; assim como esta última domina das ciências naturais, aquela domina as ciências econômicas e sociais.[42]

Nessas linhas estão contidos os temas em que se baseará a difusão do “marxismo” em fins do século XIX.[43]

No período de transição da I para a II Internacional, a teoria de Marx torna-se um fator essencial na polifonia ideológica. Aumenta o interesse pelos escritos de Marx e Engels e expande-se sua divulgação. Todas as tendências e todas as correntes de pensamento socialista se posicionam, daí por diante, em relação com as posições teóricas dos fundadores do “socialismo científico”. As várias escolas dentro do movimento socialista, exceto os anarquistas, reconhecem a importância da obra, curvam-se ante a autoridade inconteste de Marx e Engels. A linguagem socialista sofre uma longa transformação em direção ao vocabulário de Marx, enquanto se multiplicam as citações de seus escritos. Mas esse processo de aceitação se insere numa ideologia socialista eclética dominante, que integra Marx e Lassalle, Bakunin e Proudhon, Dühring è Benoit Malon. As linhas gerais do socialismo “eclético” dos anos 70-80 na Alemanha são assim analisadas por Kautsky:

Os resultados das investigações de Marx e de Engels eram geralmente aceitos, mas o seu fundamento frequentemente mal digerido, e era escasso o número de marxista consequentes. O Programa de Gotha, a influência de Dühring, o sucesso da Quintessência do Socialismo do senhor Schãffle no meio partidário mostram a que ponto o ecletismo se achava difundido.[44]

A partir do início dos anos 80 determina-se uma distinção entre a escola marxista e o “socialismo eclético”, e o fenômeno se verifica no seio da social-democracia alemã. O impulso parte do próprio Engels, com a sua polêmica contra Düihring, cuja influência sobre os socialistas alemães era enorme. O Anti-Dühring assinala sob vários aspectos um momento crucial na formação do “marxismo” como sistema. Entre numerosos testemunhos, recordemos o de Kautsky:

A subversão que produziu em nossas cabeças A Subversão de Dühring, de que modo aprendemos a compreender completamente Marx, graças a esse texto, a percebê-lo globalmente, de que modo ele nos livrou dos resíduos do socialismo utópico, do socialismo de cátedra, dos modos de pensar democrático-burgueses, só são capazes de avaliá- lo aqueles que viveram o processo.[45]

O núcleo marxista que se forma na social-democracia alemã torna-se uma corrente bem definida, que se apresta, através de uma luta ideológica incessante, a conquistar a hegemonia. O destino dos termos “marxista” e “marxismo”, sua apresentação e difusão numa nova configuração e com um novo conteúdo ocorrem no fogo de uma longa e dura batalha teórica e política, dirigida por um grupo que desde o início se define como “marxista consequente” e se propõe fazer triunfar o “marxismo”, elevando-o a doutrina oficial da Parteibewegung (movimento do partido). Ele se vale do apoio teórico de Engels, cujo papel nesse progresso de hegemonização será bastante notável, e do apoio político dos dois chefes incontestes do partido, Bebel e Liebknecht. Mas o batismo da escola e da doutrina se dão sem o conhecimento de Marx e Engels e contra a sua vontade. Eles jamais deram visto de entrada a esse neologismo, ao contrário, reagem irritados diante dele, rejeitam-no. Marx prefere definir a sua teoria como “socialismo materialista crítico”; Engels por sua vez fala de “socialismo crítico e revolucionário” (o que o “distingue dos seus predecessores (…) é justamente essa base materialista”); ou o chama de “socialismo científico”, termo usado em contraposição ao “socialismo utópico”.[46] Apenas excepcionalmente e com tom vagamente irônico Engels recorre, nos anos 70-80 a defini-lo já corrente na pena dos adversários. Assim, em 1877, a respeito da “Dühringmania” difundida na SPD, fala das “afirmações dos marxianos e dos dühringuianos”; em novembro de 1882, com ama alusão irônica ao panfleto de Paul Brousse, faz uso dos termos “marxista” e “marxismo” entre aspas. Numa carta de resposta a Bernstein, a 2-3 de novembro de 1882, escreve:

Quanto à vossa afirmação repetida, da grande desgraça do ‘‘marxismo” na França, não tendes provavelmente outra fonte que não esta, ou seja: “Malon de segunda mão”. Com efeito, o pretenso “marxismo” é na França um produto verdadeiramente particular, tanto que Marx chegou a dizer a Lafargue: “O que é certo é que eu não sou marxista”. Mas se no verão passado o “Citoyen” vendeu 25.000 exemplares e conquistou posições tais, que Lissagaray pôs sua reputação em jogo para controlá-lo, isso entra em certa contradição com a famosa desgraça.[47]

Essa frase de Marx é relatada por Engels em várias oportunidades. Citada com bastante frequência, se extraída do contexto, todavia, fica desvirtuada,[48] Marx e Engels se rebelam contra o uso de um termo que consideram ridículo e que sentem caricatural. São reações características em pessoas que militam no movimento operário de antes dos anos 70: a etiqueta onomástica é considerada um “ferrete sectário”. Em 1873, ao denunciar uma prática semelhante por parte da grande imprensa hostil à A.I.T., J. P. Becker observa:

Até mesmo no campo socialista encontram-se membros de uma grande sociedade que, por orgulho fanático e ignorância ou por uma astúcia interessada, adotam o nome de lassallianos e se opõem esse ferrete sectário. Não será esta a crítica mais contundente da ação lassalliana, já quase totalmente encerrada na camisa-de-força dos seus dogmas?[49]

Marx reage do mesmo modo; ele também considera particularmente perigosos esses termos, que podem servir para isolá-lo enquanto chefe de uma seita e para aprisionar as suas teorias em dogmas.

 

  1. Kautsky e o marxismo como ciência

Os discípulos mais próximos de Marx e Engels, ao contrário, não compartilham, no início dos anos 80, dessa repugnância e julgam injustificados esses temores. Compreenderam as mudanças ocorridas na mentalidade coletiva e na constelação ideológica socialista, que impõem uma denominação clara dos grupos e das tendências. Os militantes não mais evitam recorrer ao nome de um homem para identificar-se; ao contrário, sentem-se orgulhosos de uma etiqueta que os liga ao grande pensador, cuja fama de cientista, de “fundador” do socialismo científico já se acha consolidada.

A paternidade das noções de “marxista” e de “marxismo” no sentido que assumiu em nosso vocabulário cabe a Kautsky. Enquanto nos escritos dos seus contemporâneos alemães e dos colaboradores de Engels essas expressões aparecem ainda em caráter fortuito, Kautsky as utiliza desde 1882 de modo consciente, sistemático, dentro de um contexto bem definido e com um significado ideológico e político que não tem absolutamente nada a ver com o mimetismo ou a contaminação da linguagem.

O contexto é a publicação, a partir de 1883, da revista teórica “Neue Zeit”, que Kautsky vinha preparando há um ano, com o auxílio de Heinrich Braun:

No instante de maior desalento, no verão de 1882 (ao tempo das leis de exceção antissocialistas), ousei propor ao editor Dietz fundar uma revista mensal. Acabara de libertar-me do socialismo eclético, então amplamente difundido, uma mixórdia de elementos lassallianos, rodbertussianos, langhianos, dühringuianos com elementos marxianos, para tornar-me um marxista consequente, unido a Bernstein, com quem colaborava desde janeiro de 1880. Queríamos dedicar todos os nossos esforços justamente à difusão dessa nova conscientização.[50]

Em várias oportunidades, Kautsky assinala que a “Neue Zeit” tornada semanal um decênio após a fundação, desde suas origens fora “redigida como órgão marxista”, e assumira a tarefa de elevar o baixo nível teórico da social-democracia alemã, desagregando o socialismo eclético e fazendo triunfar o programa marxista.[51]

A ambição de Kautsky não se limitava apenas à Alemanha. Dois anos após o início das publicações, escrevia a Engels:

Talvez os meus esforços para transformar a “Neue Zeit” num ponto de encontro da escola marxista venham a ser coroadas de sucesso. Vou adquirindo a colaboração de tantas forças marxistas, quanto me livro de ecléticos e rodbertussianos.[52]

Desde 1882, portanto, Kautsky e o pequeno grupo que o cercava fazem uso corrente, em sua correspondência e depois na revista, dos novos termos. Ao enviar o primeiro número da revista a Leo Frankel, Kautsky escreve-lhe, em abril de 1883:

Estou muito curioso em saber sua opinião sobre esta iniciativa. Sem dúvida é incontestável que seja extremamente útil e oportuna, mas eu próprio me dou conta e até demais do que lhe falta para realizar o nosso ideal. E, no entanto, me parece que a “Neue Zeit” não é pior que a “Zukunft” ou a “Neue Gesellschaft”; é mais variada e até mesmo mais atraente, e creio que o marxismo, em sentido amplo – e é neste terreno que todos nos colocamos, na medida do possível num regime de leis de exceção – constituirá sempre a linha diretriz do seu pensamento.

E expondo a sua posição sobre a questão judaica, que preocupava Frankel, assim concluía a carta: “Mas por que dizer tudo isto a um velho marxista?” [53]

Os termos “marxista” e “marxismo” têm para Kautsky e o grupo reunido em seu redor um valor programático e serve como instrumento de luta ideológica e política. Com energia, agressividade, de modo ofensivo, Kautsky se dispõe, à frente de um pequeno grupo que dirige a “Neue Zeit”, a executar o objetivo prefixado, que consiste em levar à vitória a escola marxista. Aquele que trinta anos depois declarará ser apenas um teórico, mas um político medíocre, dá provas então de uma grande habilidade tática. Escolhe inteligentemente o seu alvo e o terreno de luta: os seus ataques não se dirigem contra os lassallianos, mas contra os partidários de Rodbertus. Os primeiros continuam a exercer uma forte influência no meio operário, e suas posições sobre os problemas essenciais da luta de classe, da luta política e do partido não dissente dos “marxistas”. As teorias de Rodbertus, ao contrário, seduzem os intelectuais, ante os quais Kautsky tem uma atitude mais distanciada.[54] Explica claramente a Engels a sua escolha tática:

Está cada vez mais em moda, hoje, na Alemanha, jogar Rodbertus contra Marx; o socialismo venceu no plano científico na Alemanha, e para barrar a vitória de Marx a canalha científica reacionária corre para esconder-se por trás de Rodbertus.[55]

Assim, os seus ataques se concentram em C.A. Schramm, que, como economista, divulgador das ideias de Marx e de Rodbertus, conquistou certa fama de teórico nas fileiras da social-democracia.[56]

É exatamente em polêmica com estes que os termos “marxista” e “marxismo” são empunhados, publicamente na “Neue Zeit”, em 1883. A “escola marxista” se apodera do termo e o faz justamente para definir o próprio programa. Os termos exprimem a ideia de uma polarização de duas correntes, e é a linha apoiada por Kautsky cm sua revista: “Há duas escolas socialistas que dominam os espíritos na Alemanha de hoje: a de Marx e a de Rodbertus”. A primeira recruta seus partidários entre os operários, a segunda encontra sua expressão no “socialismo universitário” (“Akademischer Sozialismus”). [57]

Líder da escola marxista – “uma escola mais marxista que Marx”, segundo Schramm – Kautsky adquire a fama, desde 1883, de “fanático defensor da concepção materialista da história”. [58] Ele próprio a reivindica, quando em maio de 1884 escreve a Engels a respeito da “Neue Zeit”, com evidente satisfação:

Para os senhores antimarxistas alemães ela é há muito tempo a espada que fere, pois na verdade é o único órgão socialista na Alemanha que se coloca no terreno do marxismo. [59]

No clima intelectual fortemente polêmico, as avaliações de Kautsky sobre a situação não deixam de ser exageradas, de ter uma ponta de parti pris; mas não resta dúvida que a atividade e a orientação da “Neue Zeit” encontravam fortes resistências no interior da SPD. Elas têm origem variada e tendem a evitar um ataque direto a Marx ou a contrapor-se à difusão de sua doutrina; se lançam contra o “modo de agir” de um grupo, de um conventículo, a autodenominada “escola marxista”, acusada de haver usurpado o nome de Marx para alcançar seus próprios fins. Os argumentos dos rodbertussianos, dos lassallianos e sobretudo da ala moderada do partido se situam próximo aos de Brousse e dos possibilistas franceses. Distinguindo a obra teórica de Marx do “marxismo”, no qual enxergam uma ideologia construída por discípulos inconsistentes, eles apontam a Kautsky como o maior responsável, o pérfido inspirador, o inventor de um dogma por ele pregado e erigido em evangelho, apropriando-se da autoridade de Marx, na tentativa de impor ao partido as próprias doutrinas como doutrina oficial. Auer fala com sarcasmo aos seus correspondentes dos “mistérios do puro marxismo geridos por Karl Kautsky e por seus amigos”,[60] enquanto Schramm ataca publicamente os “falsos profetas”, a dupla Kautsky-Bernstein, que há anos vem pregando na social-democracia alemã “a infalibilidade do marxismo, declarando que o marxismo é o evangelho”. E carrega na dose, afirmando: “Eu não conheço uma religião de Marx, nem um programa de Marx ao qual eu ou outros companheiros tenhamos jurado fidelidade; só conheço um programa do partido. Kautsky prega uma religião de Marx.”[61] Essa imagem da Igreja e do Evangelho, bem assim a do sumo sacerdote serão retomadas por certos círculos da SPD, para ridicularizar os dogmas e o dogmatismo de Kautsky, e na realidade para deste modo atacar o marxismo. Assim, em plena crise revisionista, Ignaz Auer declara nas tribunas da SPD: “Eu não sou marxista, no sentido em que o marxismo foi progressivamente desenvolvido pelos padres da Igreja do marxismo”, ou seja, Kautsky e Bebel. [62]

Para Kautsky, nos primeiros anos de publicação da “Neue Zeit”, uma das melhores formas de repelir esses ataques e demonstrar sua inconsistência é assegurar a colaboração de Engels na revista, publicando alguns de seus escritos ou então manuscritos inéditos de Marx. Assim, a publicação em alemão da Miséria da Filosofia (editada originariamente em francês, em 1844) no auge da polêmica contra os rodbertussianos assume para Kautsky uma importância fundamental: “Será uma bela bofetada para todos os adversários do marxismo.” [63]

Mas que conteúdo atribui a esta noção a “escola marxista” formada em torno da “Neue Zeit”? Kautsky jamais usa esse termo de modo casual, mas atribui-lhe um significado preciso. “Marxista” se refere a Marx e aos seus escritos: “Pretender vulgarizar o modo de escrever marxista é, ao meu ver, insensato, pois Marx escreveu de modo bastante popular e compreensível;[64]  define também uma posição de princípio: “H. Braun não é um socialista de cátedra, ele se coloca completamente no terreno marxista, o terreno da luta de classes;” [65] onde “marxista” se refere a um certo conteúdo ideológico (“a literatura marxista”). E finalmente o termo indica uma tendência, uma escola: “Braun é um membro diligente e consciencioso da escola marxista.” [66] No que se refere à escolha do termo “marxista”, sua definição liga-se estreitamente à interpretação kautskiana da teoria de Marx e à sistematização que dela empreende. Em termos globais, a palavra é sinônimo de “sistema de Marx”, absorvendo uma dupla função, em particular. A primeira consiste cm designar o princípio diretor: “O marxismo, a concepção do nosso partido como organização do proletariado empenhado na luta de classes;” [67] a segunda serve para definir a teoria de Marx como ciência em geral e como socialismo científico em particular. Kautsky o precisa amiúde. No décimo aniversário da “Neue Zeit”, por exemplo, escreve: “O termo “científico” cobriria sem dúvida todos os aspectos do marxismo, mas ao mesmo tempo diria demais ou poderia ser tomado como mais ambicioso do que marxismo, que de fato não pretende dizer a última palavra em matéria de ciência.” E na polêmica com Bernstein acrescenta uma outra dimensão: “É o método que resulta da aplicação da concepção materialista da história à política: graças a ele o socialismo se tornou uma ciência (…). No socialismo marxista o essencial é o método, não os resultados.” [68]

Essa insistência na definição do marxismo como ciência pode fornecer a chave para compreender as razões que levaram Kautsky a apropriar-se do termo e a interpretação que ele dá ao “sistema de Marx”. Deve-se recordar a este respeito que nos anos 80 Kautsky, fervoroso admirador de Darwin – como toda a sua geração – parece inspirar-se no sucesso, na repercussão, na força de atração do termo “darwinismo”: o desejo de exprimir simbolicamente uma dimensão essencial da obra de Marx orienta o seu modo de proceder, e se darwinismo é sinônimo de ciência da natureza, marxismo é sinônimo de ciências sociais. Nisso Kautsky não é um inovador; o paralelo entre Darwin e Marx é constante no discurso socialista do fim do século e corresponde à sensibilidade e à mentalidade coletivas do tempo, saturadas de cientismo, dominadas pelo materialismo monista e pelas ideias de progresso e de evolução derivadas das ciências naturais.

Para Kautsky, o caráter essencial do marxismo como ciência é a concepção materialista da história. Essa é a definição que fornece em 1883, em sua polêmica com Schramm, ao declarar que seu adversário não pode entender Marx “porque (…) o conteúdo histórico do marxismo lhe é totalmente estranho”; quem diz escola marxista “diz também escola histórica marxista. Pode-se falar dos economistas da escola marxista, pode-se falar também dos seus historiadores (…). Marx introduziu o materialismo, a economia na história, mas introduziu também a história na economia. Para ele ambas constituíam uma unidade indissolúvel”. [69] Ante a réplica de Schramm, que põe em dúvida a existência de uma escola histórica marxista (afirmação que também Engels considera forçada), Kautsky esclarece que está se referindo ao Capital, “que é uma das obras de história mais grandiosas”, e declara peremptoriamente:

Com Marx abre-se uma nova era para a ciência histórica. E todos aqueles que pertencem à tendência marxista devem ser historiadores, como foi Marx. Aquele que não é historiador e aquele a quem a história foi estranha permanecerão igualmente impermeáveis à concepção marxista em sua totalidade. [70]

O historicismo marxista da II Internacional é contemporâneo da emergência da escola marxista em torno da “Neue Zeit”. A definição do marxismo adotada por Kautsky nos anos 80 foi pelo mesmo conceituada em 1908 numa fórmula que se tornou famosa: “O socialismo marxista, em última análise, não é mais que a ciência da história do ponto de vista do proletariado.” [71] Vinte anos depois, por ocasião do septuagésimo aniversário de Kautsky, o marxista americano Louis Boudin assim sintetiza o resultado de uma evolução iniciada nos anos 80: o marxismo, que “era a teoria geralmente aceita pelo movimento socialista” é “hoje em dia uma teoria geral da história e não uma teoria particular da revolução”. [72]

 

  1. A crise revisionista e o surgimento dos “marxismos”

Nos anos da primeira grande penetração do “marxismo” no socialismo internacional, às vésperas da constituição da II Internacional, as definições inicialmente polêmicas sofrem, como vimos, uma transformação radical, assumindo um significado teórico e político e assim se enraizando no uso socialista. Nos anos 80 tais lermos se imporão na acepção kautskiana, adquirindo uma repercussão internacional tão ampla, que Engels – sem convalidar-lhes o uso   – aceita-os, embora não recorra a eles com muita convicção. “Os anarquistas – escreve a Laura Lafargue a 11 de junho de 1889,[73] – morderão a mão por nos terem atribuído tal qualificação.” De sua parte, irá sancioná-la? Por outro lado, tem condições de opor-se a uma prática que não depende mais apenas do uso linguístico, mas se tornou um verdadeiro fato político? O modo como são adotados esses termos (sistematicamente utilizados pelos seus correspondentes), o significado que assumem e os conteúdos que compreendem continuam a suscitar a sua irritação. A.M. Voden, por exemplo, que visita Engels em 1893, conta mais tarde em suas memórias que “ele preferiria que os russos – bem assim todos os outros – parassem de colecionar citações de Marx e Engels e começassem a pensar como Marx e Engels teriam pensado em seu lugar. Se uma palavra como “marxista” tivesse direito de existir, seria somente neste sentido”. [74]

Todavia, mesmo amplamente difundidos e correntemente usados, esses apelativos não recebem consagração oficial antes da crise revisionista. É certo que, em 1895, a enciclopédia Meyer consagra o termo “marxista”, incluindo-o na nova edição daquele ano, com uma remessa a “social-democracia”.[75] Mas na primeira enciclopédia socialista, publicada em 1897 e redigida por dois membros da “escola marxista”, Stegman e Hugo, a expressão “socialismo marxista” é a única que aparece. O termo é usado por eles de preferência no que se refere à social-democracia alemã, mais precisamente, para indicar as etapas e os momentos mais significativos da ascensão do marxismo. 76[76] Os eisenachianos são definidos como “partidários do socialismo marxista internacional”; Dühring é caracterizado por “sua posição hostil em relação ao socialismo marxista”; a “Neue Zeit” é apresentada “desde o início órgão do socialismo marxista”; e a propósito da Internacional se afirma que “o Congresso de Bruxelas (1891) foi um sucesso completo do socialismo marxista, cujos dirigentes dominaram os debates”, assim as resoluções do Congresso adotaram “os dois pontos principais do programa marxista”: 1) o Congresso “se coloca no terreno da luta de classes”; 2) ele recomenda “conquistar através da luta os direitos políticos que permitirão chegar ao poder político”.

O termo “marxismo” é consagrado definitivamente pela crise revisionista e a partir daí é usado em vários sentidos:

Ao volver do século o termo “marxismo” (…) serve para designar o pensamento e a obra de Marx, sem levantar qualquer problemática no que se refere às controvérsias já então numerosas sobre o texto mais importante do autor. O termo “marxista”, usado correntemente como adjetivo ou como substantivo, designa ou uma obra de Marx, ou um seguidor de suas teorias, ou um movimento político que se pretende a ele vinculado.[77]

Essa observação refere-se apenas parcialmente às múltiplas interpretações que são dadas ao termo e às quais ele se presta. Como observa Bernstein, no auge do debate revisionista: “Com o termo “marxismo” define-se não apenas uma teoria científica, mas também uma doutrina política”. Isso explica em parte o uso do termo no vocabulário político, a partir dos primeiros anos deste século, com um duplo significado: o primeiro, restrito, a indicar a teoria de Marx e o socialismo científico; o segundo, de acepção bem ampla, não se aplica mais apenas à teoria de Marx, mas também às contribuições dos seus sucessores e engloba ao mesmo tempo o instrumental ideológico dos partidos operários. A extensão ilimitada do termo assume, portanto, em última análise, a forma de uma identificação do marxismo com a social-democracia, particularmente com o partido social-democrata alemão.

Por outro lado, o apelo aos termos “marxista” e “marxismo” é bastante desigual na utilização que deles fazem os vários protagonistas e intérpretes de primeiro plano nos vários países. Tal como Kautsky, os marxistas russos e sobretudo Lênin, adotam a prática já corrente na Rússia e fazem amplo uso dos mesmos desde os anos 90: definem-se na imprensa legal como “marxistas”; propõem-se a desenvolver “o ponto de vista marxista”; assumem posições em nome do “marxismo” contra os populistas, que tentam apoderar-se de Marx para utilizá-lo contra a social-democracia. Rosa Luxemburgo, ao contrário, na virada do século, é mais parcimoniosa no uso e prefere recorrer aos termos “socialismo científico” e “social- democracia”. Seria errôneo, no entanto, tirar conclusões apressadas sobre a frequência do uso desses termos. O assunto não pode ser encarado em termos de quantificação léxica, pois tanto se vincula ao contexto e ao uso intelectual e político, quanto ao estilo pessoal dos autores, bem como à expressão individual e a uma determinada concepção que se tem da atividade e da expressão ideológica. Num país como a Rússia, por exemplo, onde o marxismo se insere numa pluralidade de doutrinas e de tendências socialistas, todas marcadas pela obra de Marx, sua frequência precoce se explica pela vontade de caracterizar-se e qualificar-se como corrente política e teórica distinta. Mas tão logo se delinearia várias tendências no interior do campo “marxista”, aparecem vários termos políticos – além da definição de “marxistas legais” – que não são mais onomásticos: economicismo, bolchevismo, menchevismo, liquidacionistas, etc.

Na Alemanha, onde se tornou a ideologia oficial da SPD, o marxismo domina formalmente o campo teórico do movimento do partido, e as diferenças são indicadas então através da denominação das correntes: revisionismo, ortodoxia, radicalismo de esquerda, etc. A partir do exemplo da SPD, pode-se identificar uma tendência mais geral: quando o marxismo conquista a hegemonia no movimento operário internacional, as expressões onomásticas tendem a ceder lugar a epítetos genéricos, para designar as correntes em disputa no seio da II Internacional.

As razões do sucesso destes neologismos estão ligadas à sua utilidade. Eles se revelam instrumentos úteis num processo que supera as previsões de Marx e ao mesmo tempo corresponde aos objetivos pretendidos pelos marxistas ao criarem a I Internacional. À medida que se produzem deslocamentos no significado, a utilidade e as vantagens do uso dessas noções são rapidamente percebidas por aqueles que assim eram designados por seus adversários. Apropriados e reivindicados pela “escola marxista”, empunhados como bandeira, “marxista” e “marxismo” servem como ponto de referência, como termo de identificação e de demarcação. Mas, acima de tudo, indicam uma ideologia universal e um saber totalizante, encarado a um só tempo como método, visão do mundo e programa de ação.

De certa maneira, suas vicissitudes refletem o ascenso do marxismo e depois suas diferenciações internas. Os termos entram no vocabulário preferencial e se impõem na virada do século. O seu reconhecimento oficial corresponde a um momento histórico preciso – o da separação e da rotura definitiva entre social-democracia e anarquismo, da sistematização e da corporificação das teorias de Marx, da delimitação da escola marxista face a todas as outras correntes socialistas, e da afirmação da sua hegemonia política na II Internacional. A conquista da social-democracia internacional em ascenso, em plena expansão, mas também em plena transformação, pelo marxismo, desemboca ao mesmo tempo na crise provocada por Bernstein. A exemplo de T. Masaryk, os contemporâneos falarão de “crise do marxismo” ou de “crise no marxismo”. A crise revisionista, se produz consequências diversas, garante em particular a estabilização do uso dos dois termos, bem assim uma difusão e uma publicidade inesperadas. Mas evidencia também a ambiguidade de noções que englobam aspirações e diretrizes não raro contraditórias. O “marxismo” se divide em escolas hostis, e a terminologia, consequentemente, sofrerá várias modificações. Daí por diante “marxismo” será acompanhado de algum qualificativo e o conjunto comporá uma série de etiquetas: haverá o marxismo “verdadeiro” e “falso”, “estrito” e “amplo”, “ortodoxo” e “revolucionário”, “dogmático” ou “criador”. Mas, assim, o termo muda fundamentalmente de significado, acabando por designar orientações e interpretações contrastantes, cujo único denominador comum vem a ser uma profissão de fé a uma simples referência a Marx. A partir de então, ao invés de falar-se de marxismo em geral, talvez seja melhor usar o plural: marxismos.

Notas:

[1] M. RUBEL, La légende de Marx ou Engels fondateur, in ID„ Marx critique du marxisme. Essais, Paris 1974, pp. 20-21.

[2] Cf. J. GABEL, Idéologies, Paris 1974, p. 43.

[3] Cf. I. FETSCHER, Karl Marx und der Marxismus. Von der Philosophie des Proletariats zur proletarischen Weltanschauung, München 1967, pp. 61 ss.

[4] Cf RUBEL, La charte de la Première Internationale, in Marx cit., p. 26, nota 2.

[5] Cf. Republik der Arbeiler, Centralblatt der Propaganda fur die Verbrüderung der Arbeiter, in “New York”, V. n* 14, 1* de abril de 1854. Devo esta indicação a Gian Maria Bravo, a quem quero aqui agradecer.

[6] V. E. RAGIONIERI, Il marxismo e L’Internazionale. Studi di storia del marxismo, Roma 1968, p. 17, nota 34, onde são fornecidas algumas indicações esclarecedoras sobre a questão.

[7] Mas não somente os partidários de Bakunin; em 1869 A. Herzen por seu turno fala de “marxidas”. Cf. A.l. HERZEN, Sobranie sotchineniia, vol. 30, Moscou, 1966.

[8] Cf. M. MANALE, Aux origines du concept de “marxisme”, in “Economie et sociétés. Cahiers de L’ISEA”, série S, outubro de 1974, n. 17, p. 1424.

[9] A observação de Rubel, segundo a qual desde os anos 40 “o uso dessas etiquetas correspondia à necessidade de designar ou denunciar um grupo de indivíduos submetidos à ascendência de um “chefe”, ou uma mentalidade coletiva ligada aos ensinamentos desse “chefe” (Marx cit., p. 26), requer, parece-me, uma correção cronológica: a atitude daqueles que se vinculam ao “ensinamento de um chefe” só começa a cristalizar-se no período de inflexão correspondente aos anos 80.

[10] MANALE, Aux origines du concept de “marxisme” cit., p. 1424.

[11] Le groupe révolutionnaire socialiste au Congrès International rémi à Genève de 1er septembre 1873, La Première Internationale. Recueil de documents, publié sous la direction de Jacques Freymond. Textes établis et annotés par Bert Andréas et Miklos Moinar (daqui por diante citado: Première Internationale), vol. 4, Genève 1971, p. 109.

[12] Veja-se, por exemplo, a resenha do Congresso de Genebra, de 1873, publicada no “Journal des débats politiques et littéraires de Paris”, na quais as disputas são assim resumidas: “Os anarquistas reprovaram o comportamento dos autoritários no Congresso da Paz, e a isso os autoritários replicaram, lembrando o que sucedera no Congresso de Basiléia, no qual os bakuninistas fizeram antecipadamente tudo aquilo que depois reprovaram nos marxistas” (Première Internationale. vol. 4, p. 196).

[13] J P. BECKER, A propos des Congrès de Genève; esses artigos, reproduzidos ibid., pp. 242 ss., apareceram no “Volkstaat” de 5 e 8 de outubro de 1873.

[14] Compte rendu du Congrès de Bruxelles, 1874 (Fédéraliste) in Première Internationale. vol. 4, p. 270.

[15] Brochure génevoise (sem título), reproduzida in Première Internationale cit., pp. 229-32.

[16] Congrès de Berne, 1876 (Fédéraliste), in Première Internationale, cit., p. 487.

[17] Ibid., p. 463.

[18] Ibid., pp. 483 e 500.

[19] Rubel observa que este é “o primeiro texto a acolher o termo no título”. Mas tal hipótese pode ser contestada, tanto mais que “o termo parece já ter recebido sua consagração quase oficial” (Marx cit., p. 27).

[20] Cf. E. BERNSTEIN, Briefwechsel mil Friedrich Engels, organizado por H. Hirsch, Assen 1970, p. 49; F. ENGELS, Briefwechsel mit Karl Kautsky, organizado por B. Kautsky, Viena 1955, p. 39.

[21] São explícitas a esse respeito as cartas que escreveu nos anos 1884-88 a César De Paepe. Cf. Entre Marx et Bakounine: César De Paepe. Correspondance, presentée par B. Dandois, Paris 1974. Aí ataca em particular “as doutrinas alemães de Marx, declarando que o partido operário na França não tem o direito de professá-las oficialmente, e acusa Guesde e Lafargue de pretender impor um “socialismo de importação”: “não nos reuniremos jamais numa nova Internacional marxista” (p. 247).

[22] No vocabulário anarquista, o termo conservará o seu significado polêmico inicial. Assim, a respeito do Congresso Internacional de Londres de 1896, no qual foram expulsos da Internacional, falam exclusivamente de “maquinações e manobras marxistas”.

[23] Cf. a carta de Vera Zassulitch a Marx com data de 16 de fevereiro de 1881.

[24] Cf. A. WALICKI, The Controversy over Capitalism. Studies in Social Philosophe of the Russian Populist, Oxford 1969, pp. 132 ss.

[25] “Grupo Osvobojdenie trudá”, Moscou-Leningrado 1926, coleção n? 4, p. 196.

[26] Uma das razões pelas quais o termo “comunismo” é repelido, em favor do termo “social-democracia”, pode ser explicada a partir do que diz César De Paepe em seu Relatório ao Congresso de Bruxelas da A.I.T., em 1874: “A palavra comunismo teve o singular destino de ser repelida pelos socialistas como uma calúnia, de ser vista pelos economistas como a maior das utopias, de ser finalmente, aos olhos da burguesia, uma teoria que consagra o furto e a promiscuidade permanente, em suma, a pior das pestes” (Compte rendu du Congrès de Bruxelles, IS74, Fédéraliste cit., p. 323). Por seu turno, De Paepe protesta contra a recusa do termo, que, no seu entender, possui um significado preciso e “representa uma ideia realmente científica”.

[27] Rappoport lembrava frequentemente: “Ouvi da própria boca de Engels,(…) que Marx e ele próprio só aceitaram o termo social-democracia a contragosto, por uma espécie de compromisso com a realidade; mas que a definição favorita de suas ideias fundamentais era comunismo.”

[28] Sobre a origem e a adaptação do termo, cf. J. MAITRON, Le mouvement anarchiste en France, Paris 1975, vol. 1.

[29] O termo “possibilista” foi a réplica dos guesdistas ao adjetivo “marxista”, e observa-se a sua difusão durante a polêmica que eclodiu às vésperas do Congresso de Saint-Étienne, em 1882, na qual se verificou a ruptura entre as duas correntes. Osip Zetkin dá a seguinte explicação: “Em 1881, após o insucesso da eleição de Jouffrin, braço direito de Brousse, Guesde e seus amigos pediram ao Conselho Nacional da Federação dos Trabalhadores Socialistas que fosse votada uma moção de censura pela falta de disciplina demonstrada por Joufírin com referência ao programa do partido, durante as eleições.” O Conselho, por 25 votos contra 5, rejeita a censura e aprova a atitude de Jouffrin. Então o “Êgalité” atacou o Conselho Nacional por essa decisão, e o Conselho Nacional replicou através do seu órgão “Le Prolétaire”, taxando os redatores do “Egalité” de “autoritários” e de “marxistas”. O “Egalité” por sua vez respondeu cunhando uma alcunha: “possibilistas”. Com efeito, o “Prolétaire” escrevera em sua réplica polêmica que era preciso “colocar imediatamente, de qualquer modo, algumas das nossas reivindicações, para torná-las finalmente possíveis”, Cf. O. ZETKIN, Der Sozialismus in Frankreich seit der Pariser Kommune, Berlim 1889, pp. 25-26.

[30] Carta de Fournière a J. Guesde, de 27 de março de 1893: Am I1SG, Archives Guesde, 224/6.

[31] Am IISG, Archives Guesde, 180/3.

[32] Ibid., 172/3.

[33] ZETKIN, Der Sozialismus cit., p. 37.

[34] Numa réplica a uma carta de Lafargue publicada no “Egalité” de I? de junho de 1872, pode-se ler: “Quantos não existem (…) no Conselho Geral que são marxistas sem jamais haver aberto o livro de Marx (O Capital)?” (Première Internationale, vol. 2: Les conflits au sein de l’Internationale, p. 315).

[35] Cf. as suas memórias, Aus der Frühzeit des Marxismos, publicadas como introdução a ENGELS, Briefwechsel mit Karl Kautsky cit., p. 26.

[36] Carta a Herzen, de 29 de outubro de 1869, in M. BAKUNIN, Sozialpolitische Briefwechsel mit Alexander Herzen und Ogarëv, Stuttgart 1895, pp. 174-77.

[37] Carta a Ludovico Nabuzzi, de 23 de janeiro de 1872, in Archives Bakounine, vol. 1. parte II: Michel Bakounine et l’Italie, Leiden 1966, pp. 199-207.

[38] MEW, vol. 32.

[39] Citado por H. J. STEINBERG, Sozialismus und deutsche Sozialdemokratie. Zur Ideologie der Partei, Hannover 1967, p. 16.

[40] Zum Gedachtnis der Internationale, in F. MEHRING, Gesammelte Schriften, Berlim 1963, voi. 4, p. 360.

[41] K. HILLMANN, Die Internationale Arbeiterassociation (1864-1871). Ihre Geschichte. Programm und Tätigkeit, extraído do “Correspondent für Deutschland Buchdrucker und Schriftgiesser”, 1871, p. 1.

[42] “Neue Zeit”, I, 1883, p. 448.

[43] São sensivelmente distintos daqueles dos anos 70; os partidários de Marx, como J P. Becker, escrevem. “Mui raramente pensadores e pesquisadores independentes agiram como Marx, que jamais absolutamente pretendeu ter inventado princípios, mas apenas tê-los descoberto, ou seja, ter provado cientificamente a sua presença no processo de evolução socioeconômica” (BECKER, A propos des Congrès de Genève cit., p. 242).

[44] K KAUTSKY, Darwinismus und Marxismus, in “Neue Zeit”, XIII, vol. 1, 1894- 95, p. 715.

[45] ibid.

[46] MEW, voi. 34, p. 403.

[47] BERNSTEIN, Briefwechsel mit F. Engels, cit., p. 154.

[48] Assim a resposta Kautsky, deformando-lhe o significado. Fala de Lafargue como se tivesse sido o único, junto com o próprio Kautsky, a ter-se “pronunciado bem cedo pela concepção materialista da história e tê-la utilizada em suas pesquisas”, mas assinala o paradoxo, que “às vezes deixava Marx desesperado” e acrescenta: “É justamente a ele que se refere a frase de Marx, tantas vezes citada e geralmente deformada: ‘Se o marxismo é isto, eu não sou marxista’” (ENGELS, Briefwechsel mil K. Kautsky cit., p. 90).

[49] BECKER, A propos des Congrès de Genève, cit., p. 242.

[50] K KAUTSKY, Zum 70. Geburtstag Heinrich Dietz, in “Neue Zeit”, XXXII, 1914. pp. 1-8.

[51] Tais afirmações são submetidas a análise crítica por Ragionieri (O Marxismo e a Internacional cit., pp. 57-58, 63 e 81), que expõe quais foram o perfil, a orientação e os objetivos da “Neue Zeit”. A publicação da “Neue Zeit” foi considerada pelos contemporâneos uma “reviravolta na história teórica da social-democracia alemã”.

[52] Carta de Kautsky a Engels, de 9 de janeiro de 1885, in ENGELS, Briefwechsel mit K Kautsky cit., p. 163.

[53] Am IISG, Fundo Kautsky (em preparação Kautsky et les socialistes des Balkans. Correspondance).

[54] Em sua correspondência dos anos 1883-85 Kautsky identifica sistematicamente os adversários da escola marxista com os intelectuais dentro e fora da social-» democracia. Cf. Steinberg, Sozialismus cit.

[55] Carta de 14 de fevereiro de 1884, in ENGELS, Briefwechsel mit K. Kautsky cit., p. 98. Três meses depois ele volta à carga, escrevendo: “Reina entre os nossos intelectuais um enorme ódio contra Marx e o marxismo e eles agarram avidamente qualquer socialista não marxista, de Louis Blanc a Rodbertus, para lançá-lo contra Marx” (p. 118).

[56] Sobre esta polêmica, cf. STEINBERG, Sozialismus cit. e RAGIONIERI, II marxismo e l’Internazionale cit.

[57] “Marx geralmente encontra apoio entre as classes trabalhadoras (…). Rodbertus, ao contrário, tornou-se o guia bajulado do socialismo universitário” (K. KAUTSKY, Das Kapital, in “Neue Zeit”, II, 1884, p. 337).

[58] São palavras de C. A. SCHRAMM, Kautsky und Rodbertus, in “Neue Zeit”, II, 1884, pp. 484 e 488!

[59] Em outubro de 1884 escreve a Bebei nos mesmos termos: “Pretendo continuar a “Neue Zeit”: o meu apoio se deve ao fato de ela ser na Alemanha o único órgão que se coloca plena e inteiramente no terreno marxista” (A. BEBEL, Briefwechsel mit K. Kautsky, organizado por K. Kautsky Jr„ Assen 1971, p.21)

[60] Citado por STEINBERG, Soziatismus cit., p. 39, nota 81

[61] Ibid., p. 37.

[62] Protokoll über die Verhandlungen des Parteitages der Spd. Abgehallen zu Hannover vom 9-14.10.1899, Berlim 1899, p. 208.

[63] ENGELS, Briefwechsel mil K. Kautsky cit., p. 108.

[64] Ibid., p. 92.

[65] Ibid., p. 60, carta de 6 de setembro de 1882. Para o uso desse termo é significativo o que escreve a Bebei em 14 de fevereiro de 1885: “Devemos tratar os acontecimentos alemães do nosso ponto de vista, do ponto de vista marxista e não do ponto de vista do socialismo pequeno-burguês e filisteu” (BEBEL, Briefwechsel- nut K. Kautsky cit., p. 27).

[66] BEBEL, Briefwechsel mH K. Kautsky cit., p. 24, carta a Bebel de 8 de novembrode 1884.

[67] K. KAUTSKY, Bernstein und das sozialdemokratische Programm, Stuttgart 1899, p. 17.

[68] Relatando a Bebei, em sua carta de 14 de fevereiro de 1885, as dificuldades que encontrava a “Neue Zeit” e as pressões contra seu editor, voltava à mesma ideia: “A ‘Neue Zeit’ deve (…) ser um órgão resolutamente marxista, um órgão que se coloca no terreno do Manifesto Comunista, no terreno da concepção da história desenvolvida naquele texto” (BEBEL, Briefwechsel mit K. Kautsky cit., p. 27).

[69] K. KAUTSKY, Eine Replik, in “Neue Zeit”, II, 1884, p. 496.

[70] ID., Die historische Leistung von K Marx, Stuttgart 1908, p. 30. Já em 1886 enunciava essa ideia, ao formular a tese de que, graças à concepção materialista da história, “Marx realizou a união do socialismo com o movimento operário, demonstrando que o objetivo socialista (…) será natural e necessariamente alcançado através do desenvolvimento do modo de produção moderno e da luta de classes, e não poderá ser compreendido a não ser através do estudo desse modo de produção, de sua influência e da sua gênese” (1D., Das Elend der Philosophie unit das Kapital, in “Neue Zeit”, IV, 1886, p. 15).

[71] L. B. BOUDIN, Theorien der Révolution, in “Die Gesellschaft”, Karl Kautsky zum 70. Geburtstag; p. 38.

[72] F. ENGELS, Correspondance avec Paul et Laura Lafargue, textes recueillis, annotés et présentés par E. Bottigelli, Paris, 1956, vol. 2, p. 288.

[73] Conversações com Marx e Engels. Testemunhos sobre a vida de Marx e Engels-, reunidas por H. M. Enzensberger, Turim, 1977, p. 525.

[74] MANALE, Aux origines du concept de “marxisme” cit., pp. 1400-1.

[75] C. STEGMANN e C. HUGO, Handbuch des Sozialismus, Zurich 1897, pp 164,166, 387 e 640.

[76] MANALE, Aux origines du concept de “marxisme” cit., p. 1401

[77] E. BERNSTEIN, Prefácio à edição francesa de Voraussetzungen des Sozialismus. Paris 1902.

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