Greve da Renault – ensinamentos do ponto de vista de classe

Coletivo do CVM

A HORA DO PEÃO

A greve dos trabalhadores da Renault iniciada em 21 de julho chegou ao seu fim ontem, dia 11 de agosto de 2020. Foram 21 dias de uma mobilização diária, com piquete organizado em barraca diante do portão principal da fábrica em São José dos Pinhais (PR) – uma paralisação conhecida pela luta em torno da reintegração dos 747 trabalhadores demitidos pela empresa. Mas que colocou em questão, do ponto de vista prático, o “Programa de Manutenção do Emprego e dos Salários” encaminhado pelo governo Bolsonaro na MP 936, transformado na lei 14.020 de 07 de julho de 2020, pelo Congresso Nacional. Os operários começaram a tomar consciência de que o sentido prático deste programa para os patrões tem sido o de descobrir como um número menor de trabalhadores pode produzir mais, de modo mais intenso, com um salário menor.

Apesar da intensa mobilização durante esses 21 dias e de sua repercussão nacional, o movimento não conseguiu se generalizar e construir a necessária solidariedade para travar uma luta enquanto classe, o que poderia acontecer se o “Programa de Manutenção de Emprego e dos Salários” fosse transformado em alvo da ação coletiva.

Tirante esta limitação, foi um passo importante neste rumo. Por isso nós temos de nos perguntar quais são os ensinamentos da paralisação da Renault, tanto para os operários da fábrica como para o conjunto classe operária no Brasil, neste momento em que ameaças aos que estão empregados persistem ao lado do desemprego crescente de outras parcelas, inclusive nas montadoras, com automação e robotização das plantas. O número de desempregados no setor deve alcançar 6.000 trabalhadores até o momento, podendo alcançar 10.000 em breve se as demissões na General Motors forem implementadas.

O que nos propomos nesta Nota é tomar em consideração o sentimento coletivo expresso na resistência à exploração – tal como se expressou nos comentários registrados nos meios de comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba – para fazer uma baliza, para demarcar uma orientação possível a seguir na perspectiva de classe, compreendida para além dos limites de uma empresa ou mesmo uma categoria específica de trabalhadores. [1]

Assim, vale inicialmente perguntar:

O que foi aprovado na assembleia que terminou a greve?

Os metalúrgicos da Renault aprovaram, por votação eletrônica após assembleia, a proposta negociada entre o sindicato e a empresa em São José dos Pinhais.

Em primeiro lugar a readmissão dos 747 metalúrgicos que permanecerão afastados, recebendo salário normalmente, até dia 20 de agosto, quando termina o Plano de Demissão Voluntária (PDV) aberto pela Renault. Os trabalhadores do grupo dos demitidos que não entrarem no PDV e nem retornarem para a fábrica serão colocados em “layoff” por prazo inicial de cinco meses. O retorno dos demais trabalhadores ao expediente normal a partir de 12 de agosto inclui, contudo, um “pacote” que contempla a data-base, a terceirização de atividades produtivas com redução de 15% no piso salarial, a Participação em Lucros e Resultados (PLR) doravante denominada Programa de Participação de Resultados (PPR), e a possibilidade de aplicação da redução de jornada e de salário e de “layoff” [2], medidas em vigência até 2021.

Eis a declaração do presidente do SMC:

“A reintegração e o fechamento de um acordo que mantém os empregos é uma vitória dos trabalhadores que mostraram união e mobilização num momento difícil como esse. A garantia para manter os empregos tem sido a nossa maior luta atualmente. Como ficou claro, existem ferramentas que podem ajudar nesse sentido. Basta ter boa vontade para sentar e negociar. No final, a mobilização e o diálogo prevaleceram. É o que temos procurado fazer aqui no Paraná”, disse o presidente do SMC e da Federação dos Metalúrgicos do Paraná (FETIM), Sérgio Butka.

O que significa a suposta garantia de emprego alegada pelo dirigente da Força Sindical?

Nas palavras de Butka, o compromisso do sindicato é com o “emprego”. Quer dizer, com a exploração da força de trabalho “sadia” e produtiva pelo capital aparentemente em condições mais “vantajosas” para o trabalhador. Contudo, esta é a lógica do capital: descartar aqueles cujo trabalho está abaixo da produtividade exigida pela concorrência intercapitalista da qual a Renault, em aliança com a Nissan e a Mitsubishi, faz parte num ramo automobilístico composto por 20 grandes empresas-marcas mundiais (Toyota, Honda, Volkswagen, General Motors, etc.).

Assim é que os outros, ou seja, a maioria na lista dos 747 demitidos, são “improdutivos”, por estarem adoecidos, “lesionados” ou “compatíveis” ou, ainda, por serem considerados de “baixa performance”. Eles receberão vantagens financeiras adicionais se aderirem ao PDV. Em outros termos: a porta da rua, com um pequeno saco de dinheiro nas mãos para sobreviver pouco tempo.

Por outro lado, o aprofundamento da terceirização, quando a fábrica retomar o patamar de produção de 2019, vai contar com o novo salário de contratação que até a deflagração da greve ficaria 20% abaixo do piso salarial atual, mas então será de “apenas” 15%. Somente a partir de 2022 haverá aumento real, o que, entretanto, representa o agravamento da exploração absoluta da força de trabalho, ao lado da exploração relativa baseada na PLR, este um verdadeiro salário por produção.

 

O balanço da greve feita pelos operários

Um balanço da greve ainda será certamente realizado pelos próprios trabalhadores e nesta avaliação tanto a representação interna de fábrica (delegados sindicais de base) como a dos diretores sindicais que foram incluídos na demissão dos 747 trabalhadores terá um importante papel. Mas o processo de aprendizagem se faz principalmente no calor da luta, depois se sistematiza e aprofunda em busca da explicação dos processos mais amplos e dos desafios para assumir a luta num patamar mais elevado.

A luta foi organizada em torno do piquete-barraca no portão principal da fábrica, com um revezamento por turnos, ao longo dos 21 dias de paralisação. Participaram delegados e diretores do sindicato, alguns dos quais incluídos no “facão” dos #747; os trabalhadores do chão de fábrica, vindos de municípios dormitórios limítrofes, como Fazenda Rio Grande; e trabalhadores de outras empresas metalúrgicas da base sindical. Menção especial merece as companheiras dos grevistas que foram “muito guerreiras”, bem como os familiares deles.

Muitos operários descobriram a ilusão de fazerem parte da empresa enquanto “colaboradores”, uma suposta colaboração que apenas existiu enquanto foram considerados produtivos. O orgulho de vestir a camisa da empresa acabou para eles, apesar de vários puxa sacos continuarem a defender a empresa.

Muitos criticaram a posição da diretoria do sindicato por ter aceito as demissões dos 350 temporários que não foram efetivados em maio, sem mobilizar os demais para defender o emprego. Perguntaram: “que papo é esse de ‘mexeu com um mexeu com todos?” Então, com os 747 demitidos em julho, o total das demissões alcançou 1.097 trabalhadores.

Também denunciaram o abandono da luta nas metalúrgicas menores, outros setores metalúrgicos também foram demitidos, mas não contaram com apoio do sindicato. Por isso mesmo, um dos operários declarou que o sindicato não é constituído por aqueles que estão no palanque, com o microfone e os meios de comunicação encerrados em suas mãos, negociando em salas fechadas com os diretores da empresam e sim pelos trabalhadores que lutam pelos seus direitos.

Como defenderam alguns trabalhadores, demissão por PDV continua sendo demissão: “não é PDV, é pé na bunda” Trata-se de uma forma de efetuar a demissão com aceitação perante o sindicato e os órgãos públicos, como Assembleia Legislativa, Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho.  Muitos trabalhadores certamente ficarão iludidos com a “bolada” do PPR e do PDV. Mas a experiência pela qual passaram milhares de operários em todos os cantos do país mostra que tais recursos são pequenos para tornar realidade o sonho de montar o próprio negócio, deixando os poucos sobreviventes na condição de motoristas de caminhão e outros micro negócios. Em geral, esses trabalhadores entram em situação de desemprego ou subemprego, tentando sobreviver como profissionais autônomos, a exemplo de motoristas e entregadores de aplicativos.

Talvez o balanço mais significativo tenha sido feito na avaliação coletiva da greve em 11 de agosto

Ao contrário dos diretores do sindicato que, com o presidente, destacaram que a greve resultou num “ganha-ganha” (além de falar em harmonia na planta da Renault no Paraná, em “baixar a guarda para o entendimento e até estender “bandeira branca”) para os dois lados em luta e que o impasse foi provocado por “maus gestores” na planta da Renault em São José dos Pinhais, houve vozes discordantes, fortes e contundentes. Encararam a paralisação como uma oportunidade para mostrar que os capitalistas negociam com os trabalhadores apenas quando são pressionados, na luta. Lembraram que, no ano de 2019, ao contrário das expectativas de que a PLR em 2020 seria a melhor da empresa ao longo dos 15 anos desde sua instalação no município, os sinais de crise estavam evidentes e alerta para demissões foi então explicitada pela própria empresa. Mais importante: de que o acordo firmado para o retorno ao trabalho não é garantia de que palavra dada é palavra empenhada. Ainda mais porque precisam ganhar tempo para a retomada da produção e fazer o acerto do “facão” contra os 747 formalmente reintegrados, em compasso de espera pela adesão ao PDV até o dia 20 de agosto.

Um sindicalismo, seja de “de resultados” como o da Força Sindical, seja um “propositivo” como o da CUT, pautado pela defesa do emprego como objetivo principal oculta o processo de exploração da força de trabalho pelo capital e acaba por fazer o jogo dos patrões. Esta posição coloca um questionamento à unidade entre as centrais (dominadas pela ideologia burguesa) e sindicatos classistas na defesa dos empregos, salários e direitos.

A mobilização independente dos trabalhadores

Quando o SMC, em resposta à suspensão do pagamento dos dias parados pela Renault, abriu o Fundo de Greve para os trabalhadores sacarem o valor de até R$ 1.000,00, poderia ter se dirigido aos metalúrgicos de sua própria base da Grande Curitiba e também às centrais, a começar pela Força Sindical a qual é filiado, pedindo um apoio efetivo. Mas, para além da sustentação financeira, mais relevante teria sido buscar apoio dos trabalhadores para um enfrentamento do conjunto da classe capitalista que se escudou na Lei 14.020/2020 para reduzir jornada e salários, suspender contratos ou colocar empregados em “lay off”, conforme o artigo 476 A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).  Em resumo: mobilizar os trabalhadores para uma luta enquanto classe, com seus próprios métodos e formas de organização.

Entretanto, o caminho escolhido pelo SMC foi o de pressionar a empresa a negociar mediante o apoio de lideranças partidárias na Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP).

Na audiência pública realizada no dia 31 de julho na ALEP, deputados e representantes do Ministério Publico do Trabalho e da Justiça do Trabalho buscaram, por assim dizer, “mediar” o conflito entre trabalhadores e empresa. Os órgãos públicos argumentaram que a empresa descumpriu a legislação estadual sobre incentivos ficais e um acordo feito com o MPT. Tal “mediação” significava pôr fim à greve, readmitir os 747 e colocar sindicato e empresa frente a frente para negociar os termos de um acordo. O sindicato reafirmou seu compromisso com a “competitividade” da Renault e a abertura para a negociação, sugerindo a abertura de PDV com a inclusão dos lesionados e de outros trabalhadores “infelizes”, que encontrariam “um mecanismo sem traumas para se desligarem da empresa”. Leia-se: trabalhadores cujo descontentamento com a situação chegou ao nível da insubmissão e que, portanto, se tornariam “má influência” para os demais.

Em 05 de agosto, decisão da Justiça do Trabalho determinou a readmissão dos 747. Sindicato e empresa negociaram os termos para o fim da greve, retomando a proposta anteriormente rechaçada pelos trabalhadores em assembleia no mês de julho, agora disfarçada de “conquista” e “vitória” da categoria.

Com relação ao desrespeito da empresa à legislação estadual sobre os incentivos fiscais, cabe ressaltar que, para o capital, a lei escrita não vale nada: apenas tem validade uma “lei” maior, a exigência imperiosa da exploração da mais-valia para compor a taxa de lucro.

Enquanto isso acontecia, o SMC ignorou a greve na Nissan, com quem a Renault e a Mitsubishi formam uma aliança empresarial mundial. Durante 95 dias, esta greve tensionou as forças do trabalho e do capital na cidade de Barcelona e se ampliou pela Espanha adentro. O Sindicato apenas divulgou a luta no dia 6 de agosto, quando a greve terminou, ao impedir o fechamento da planta industrial da Nissan com o acordo da manutenção do seu funcionamento por um ano.

A criação de redes internacionais organizadas a partir do chão das fábricas enquanto elos organizativos da classe operária para o enfrentamento das “cadeias produtivas” estabelecidas pelas empresas em todo o mundo é um desafio que também a organização sindical precisa assumir. [3] Ainda mais por que, no decurso dos últimos anos e agora, durante a pandemia de coronavírus no mundo, as grandes empresas-marcas do setor automotivo, houve um aumento enorme da robotização nas plantas industriais.  Ao contrário do que se supõe, este avanço na automação industrial apenas retira a força dos trabalhadores se eles abrirem mão da luta coletiva, dos métodos próprios de mobilização e de organização independentes. Pois as empresas, para fazer os trabalhadores colaborar nas plantas automatizadas, fazem constantes tentativas de cooptação individual, de grupos e mesmo dos dirigentes sindicais, usando as migalhas dos enormes lucros auferidos na exploração da força de trabalho.

As lutas se decidem no âmbito nacional, mas a perspectiva precisa ser internacional. Porque as “cadeias produtivas” transformam a desigualdade na exploração da força de trabalho entre as nações nas condições para aumentar ainda mais a exploração em cada país. Sob o objetivo de aumentar a “produtividade do trabalho por trabalhador”, chantageiam os trabalhadores e seus sindicatos com a oferta de novos empregos com “novos produtos”. Este e não outro é o sentido da terceirização progressiva dentro das próprias empresas, como atesta o acordo dos metalúrgicos com a Renault em São José dos Pinhais (PR), aprovado pela assembleia de 11 de agosto.

O que esteve e estará em jogo para os trabalhadores foi expresso na Mensagem da delegação dos operários franceses à sessão inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional, em 28 de setembro de 1864 cujas palavras aqui transcrevemos:

Progresso universal, divisão de trabalho, liberdade de comércio, eis aqui três fatores que devem fixar nossa atenção, dado que são capazes de transformar radicalmente a vida econômica da sociedade. Obrigados pela força das coisas e pelas necessidades desses tempos, os capitalistas formaram poderosas uniões financeiras e industriais. Se não adotarmos medidas de defesa seremos esmagados sem piedade. Nós, operários de todos os países, devemos nos unir e opor uma barreira intransponível à ordem de coisas existente, que ameaça dividir a humanidade, por um lado, em uma massa de homens famintos e furiosos e, por outro, em uma oligarquia de reis das finanças e magnatas satisfeitos, Ajudemo-nos uns aos outros para lograr nosso objetivo.

CVM, 13/08/2020

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Greve da Renault ensinamentos do ponto de vista de classe 

Referências:

[1] Como escreveu Marx, em A Miséria da Filosofia (1847): “As condições econômicas tinham a princípio transformado a massa da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, esta massa já é uma classe diante do capital, mas não o é ainda em si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe em si mesma. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe.  Mas a luta de classe com classe é uma luta política.https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/cap08.htm

[2] O termo de língua inglesa significa suspensão temporária do contrato de trabalho, regido pela CLT em seu artigo 476. O trabalhador nesta condição não recebe salário, mas torna-se beneficiário do seguro-desemprego. Pode receber uma ajuda compensatória da empresa que, contudo, não entra na folha de pagamento e nem para cálculo de indenização.

[3] Victor A. Meyer. Reação: articulação e organização internacional dos trabalhadores ante a globalização – um fenômeno emergente. Salvador: Casa da Qualidade, 2001.

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