Fatos & Crítica n° 39 : A vitória eleitoral de Lula e a ameaça bolsonarista

Após a vitória de Lula no segundo turno das eleições, caminhoneiros bloquearam rodovias em vários pontos do país – em movimento orquestrado por determinação de donos de grandes frotas e pela vontade própria de motoristas autônomos – e aguardaram as ordens de Bolsonaro, como já haviam feito no dia 7 de setembro de 2021.

Como há um ano, quando teve que baixar o tom e se desculpar pelas agressões verbais a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o pronunciamento do líder decepcionou suas bases: Bolsonaro veio a público dois dias depois da derrota e, em rápido discurso, agradeceu a votação que recebeu e disse que as manifestações eram resultado do “sentimento de injustiça”. Porém, condenou o “cerceamento do direito de ir e vir” (ou seja, os bloqueios das estradas) e reafirmou o seu compromisso com a Constituição.

Depois do banho de água fria ocasionado pelo dúbio pronunciamento, agravado pela visita do capitão ao STF, na qual teria reconhecido a sua derrota eleitoral, os comunicadores bolsonaristas se recuperaram do choque e interpretaram a postura do “mito” como uma inteligente manobra de despiste, necessária para preparar os últimos detalhes do ansiado golpe militar.

Assim, atendendo à mensagem implícita no pronunciamento do presidente pela continuidade pacífica das manifestações, os setores bolsonaristas envolvidos nas manifestações diminuíram o bloqueio nas estradas, enquanto outros passaram a acampar diante de quartéis de todo o país, contando com o apoio financeiro de empresas de transportes e de pecuaristas, para mostrar aos militares supostamente recalcitrantes que o “povo” estaria dando suporte ao golpe. Bandeiras verde-amarelas e cantorias de hinos patrióticos, entretanto, não foram capazes de alterar a situação.

Também causou decepção entre os manifestantes o parecer do Ministério da Defesa, divulgado logo após o segundo turno das eleições. No mesmo estilo dúbio do capitão, o parecer negava a existência de fraudes na votação eletrônica, mas apontava a necessidade de seu aperfeiçoamento, deixando uma interrogação no ar.

Mais uma vez a imaginação interpretativa das lideranças bolsonaristas entrou em ação e as suas bases foram informadas de que os militares, com o parecer, haviam dado um verdadeiro xeque-mate no TSE. Porém, agravando a decepção, isso também não produziu qualquer deslocamento de tropas.

O fato é que as condições objetivas para um golpe militar bem-sucedido no Brasil ainda não existem. A classe dominante como um todo não está disposta a renunciar à sua dominação direta sobre o Estado, poder que exerce pelo controle do Parlamento e da Justiça (além do próprio Executivo, em diferentes esferas de governo).

Desde a deposição de Dilma Roussef em 2016, a unificação dos “poderes” do Estado na defesa dos interesses da burguesia contra os trabalhadores, a exemplo da reforma trabalhista, tem evidenciado não existir uma crise política que um movimento golpista ou mesmo de cunho fascista pudesse se aproveitar e se apresentar como alternativa.

Ademais, a burguesia como um todo não tem razões para temer o proletariado – cujo movimento está em defensiva atualmente – e ela estima um terceiro mandato de Lula tomando como base a experiência dos seus dois primeiros (de 2003 a 2010), período no qual a acumulação de capital não foi minimamente ameaçada, muito pelo contrário.

Por outro lado, considerando as manifestações de apoio a Lula vindas de Biden e outros líderes internacionais, a classe dominante tem consciência de que um golpe militar isolaria o país do mundo e afetaria o curso normal dos seus negócios com o exterior.

Mas não se pode exigir que as lideranças bolsonaristas tenham a capacidade de fazer uma análise realista da situação conjuntural e, assim, elas continuam a apostar no sonhado golpe militar.

 

Renascimento de um movimento fascista no Brasil?

Como já mencionado, dois dias após a vitória de Lula no segundo turno, Bolsonaro rompeu o silêncio. No mesmo discurso lacônico em que acendeu uma vela para o santo e outra para o diabo, Bolsonaro saudou a existência de um movimento de direita no país e autonomeou-se como seu líder, bradando o conhecido lema fascista “Deus, pátria e família”.

O fascismo é um movimento político de extrema-direita que conquistou o poder na Itália, em 1926, e na Alemanha, em 1933, no contexto de prolongadas crises do Estado burguês frente a um movimento operário que não foi capaz de atrair e liderar a massa dos trabalhadores desses países para uma alternativa revolucionária.

Movimentos de massa ultranacionalistas e ferozmente anticomunistas, organizadas com o apoio de milícias, sustentados principalmente na pequena-burguesia empobrecida, conseguiram um atalho para o poder utilizando a via eleitoral para, imediatamente depois, em nome da unidade nacional, suprimir a democracia burguesa.

Nos anos 1920 e 30, a pequena-burguesia veio a fornecer a base de massas e as lideranças para o fascismo italiano e o nazismo alemão, época em que pôde usufruir das migalhas produzidas pelas políticas racistas e nacionalistas, que atendiam de fato e principalmente aos interesses imperialistas do grande capital dos respectivos países.

Mas o fenômeno de movimentos de massa fascistas ou de extrema direita não é nada novo no Brasil: basta lembrar o integralismo dos anos 1930, um verdadeiro movimento fascista – ultranacionalista, anticomunista e contra a liberdade de organização e de manifestação da classe operária. Também são exemplos de movimentos de extrema direita o udenismo e o lacerdismo dos anos 1950 e 60 e a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que deu sustentação civil de massas para o golpe militar de 1964.

Como observou Ernesto Martins (pseudônimo de Érico Sachs) no documento “Classe e Estado, democracia e ditadura” , uma contribuição para o debate do Programa Socialista para o Brasil, em 1967, o agravamento das lutas de classes no Brasil reproduziu, no tempo relativamente curto decorrido desde 1930, diversas experiências de governos burgueses, de ditadura velada e direta (democracia burguesa) à ditadura aberta e indireta (bonapartismo e ditadura militar).

As diferentes formas de ditadura aberta não se apresentam de forma pura e, na prática, diferentes governos tomam emprestado seus métodos de governo uns aos outros. Mais importante é saber situá-las à luz do estágio histórico do desenvolvimento do capitalismo e do nível da luta de classes em cada país para entender a emergência de fenômenos como o do fascismo. A falta de amadurecimento das contradições de classe permite entender por que tendências fascistas como a do integralismo e o Clube da Lanterna não chegaram a se materializar no Brasil naquela época.

O ressurgimento da extrema-direita e da ideologia fascista também não são fenômenos exclusivos do Brasil. Com a crise econômica generalizada afetando as condições de vida da pequena-burguesia em todo o mundo – e o fracasso dos partidos democrático-burgueses (de direita ou de esquerda) de dar respostas a ela –, os fascistas aparecem como lutadores “antissistema” e preenchem o vácuo produzido pela inexistência de uma esquerda que defenda o socialismo como a única saída para os impasses atuais, econômicos, sociais e mesmo ambientais.

A composição social desse novo movimento de extrema-direita no Brasil que tomou forma a partir de 2018 no bolsonarismo compreende, sobretudo, mas não exclusivamente, a pequena e média burguesias, urbanas e rurais. Abriga membros dos aparelhos repressivos oficiais (nas Forças Armadas, nas Polícias Militares, nas Polícias Civis e no Corpo de Bombeiros) e das milícias, dos caminhoneiros autônomos, dos grileiros e garimpeiros ilegais e mesmo de microempresários que se autodefinem como “empreendedores”. Importante destacar que atrai também parte do proletariado, aquela dominada nos bairros populares pela ideologia propagandeada pelas igrejas neopentecostais.

Os traços fascistas no bolsonarismo são mais evidentes na relação ideológica entre o líder e as massas da pequena-burguesia, retomando a experiência italiana dos anos 1920, de configuração do novo Estado baseado no movimento coletivo: essa classe se vê como “o povo” guiado pelas ideias da pátria, da família patriarcal, da preservação dos costumes e da defesa da propriedade privada, traduzidas politicamente na conjuntura diária pelo chefe que fala e sente por ela.

A entrega ao líder é intensa, expressa na relação entre o povo e o Presidente, representante da Pátria, “acima de tudo” e inspirado por Deus, “acima de todos”: é capaz de aceitar a possibilidade de doença e de morte, a exemplo do ocorrido na pandemia, quando Bolsonaro defendeu a exposição ao vírus para supostamente criar imunidade coletiva. O confronto armado com os “inimigos da pátria”, seria, obviamente, um passo adiante.

Para o bolsonarismo, o PT no poder representaria uma ameaça à sua existência enquanto classe social proprietária.  Assassinar 30.000 esquerdistas, como propôs o “mito” certa vez, não lhes parece má ideia, se o objetivo for a preservação de sua propriedade.

O ideário disseminado pelos fascistas inclui o medo visceral de que o “comunismo” venha a retirar-lhes as propriedades, quer estas existam de fato ou sejam apenas um sonho a ser conquistado depois de muito esforço, provavelmente com a ajuda de Deus. O medo da expropriação, mesmo que esta seja atualmente uma possibilidade remotíssima, fornece-lhes aparentemente a energia que os impele ao movimento.

Mas o verdadeiro temor entre as camadas mais ricas da pequena burguesia diz respeito ao controle que o Estado, num governo petista, mesmo coligado com a direita, viesse a exercer sobre seus negócios, os quais vão desde a exploração da força de trabalho sem assinatura de carteira e mesmo a imposição do trabalho escravo, até a sonegação de impostos e transações ilegais de todo o tipo.

A ameaça é representada pela possibilidade de que a exploração sem limites da força de trabalho vá se defrontar novamente com a atuação fiscalizadora do Ministério Público do Trabalho (apesar de ser sempre pontual), apoiada pelos sindicatos.

Defendem o uso da violência letal na segurança pública e fazem a crítica ao “sistema”, ou seja, aos “políticos”, ao judiciário e à grande imprensa. Apresentam-se como combatentes intransigentes contra a corrupção – desde que a sua origem esteja no PT –, e abraçam a ideologia do empreendedorismo e da busca da prosperidade como saídas para o desemprego e para a crise.

Em consequência dessa ideologia, defendem um governo de força, identificado na intervenção das Forças Armadas, inspirados pelo longo período da ditadura militar.

Em síntese, o bolsonarismo constitui um movimento de extrema-direita, marcado pelo personalismo típico do populismo de direita e influenciado pela ideologia fascista.

O bolsonarismo no Brasil seria mais perigoso se estivesse mais bem organizado. Algumas células nazistas em Santa Catarina não bastam e não são representativas. O movimento atual é mobilizado fundamentalmente pelas redes sociais, mas isso não é suficiente. Bolsonaro não é, porém, um homem de partido. Fracassou em criar um e já se serviu de vários em sua trajetória política, os últimos dos quais foram o PSL (em 2018) e agora, o PL.

Ocorre que esse tipo de partido tem dono e abriga os bolsonaristas apenas na medida em que possa auferir algum lucro ou vantagem. A tendência é que, com a força gravitacional do novo governo, os partidos ditos “fisiológicos” acabem mudando mais uma vez de posição e se coloquem a serviço das novas forças políticas dominantes.

Devemos entender que a relação entre Bolsonaro e o Alto Comando das Forças Armadas é complexa e contraditória. Apareceu como uma liderança na média oficialidade do Exército, com a defesa do aumento do soldo. Quando se candidatou e passou a polarizar a direita na campanha presidencial de 2018, o Alto Comando decidiu encampar seu movimento para o controlar e evitar sua autonomização.

Apesar de sua atual debilidade organizatória e da falta de condições objetivas para tentativas golpistas no curto prazo, os bolsonaristas constituem uma força de reserva que o Alto Comando das Forças Armadas pode manipular por meio da correia de transmissão dos oficiais de reserva e que poderá ser usada para limitar ao máximo os movimentos do novo governo, quando e onde julgar necessário.

De imediato, o mais provável é que, esgotadas as suas esperanças e energias, o movimento de massas bolsonarista absorva a derrota e reflua gradativamente.

Certamente voltará mais adiante, aproveitando as contradições da Frente Ampla de Lula, ou se a movimentação da classe trabalhadora vier a ameaçar, como em 1964, o domínio social da burguesia. Neste último caso, os bolsonaristas poderão servir de massa de manobra para um novo golpe militar, dessa vez com condições de sucesso.

Considerando ainda o alto nível de radicalização e ódio que este movimento cultivou entre seus componentes, também não se pode descartar que os seus elementos mais violentos e reacionários venham a preparar no futuro atos terroristas, nos moldes do atentado do Riocentro, com o objetivo de provocar uma reação militar.

 

O resultado eleitoral

Lula obteve no primeiro turno 48,4% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro alcançou 43,2%, percentagem que contrasta com aquela que havia sido atribuída pelas pesquisas eleitorais pouco antes do pleito, que era de apenas 36%. Tudo indica que a tática do “voto útil” no primeiro turno, defendida pelo PT, acabou por produzir uma migração de votos dos eleitores de Ciro Gomes e de Simone Tebet na direção oposta à pretendida.

O movimento do centro e da direita em direção ao candidato da extrema direita prosseguiu no segundo turno, quando Lula alcançou 50,9% dos votos válidos e Bolsonaro, 49,1%, mostrando que o capitão atraiu mais votos nessa etapa do que o petista.

Não fosse a quantidade extraordinária de votos que obteve no Nordeste (69,3% dos votos válidos), Lula não teria sido eleito. De 2003 a 2013, os investimentos e as políticas compensatórias dos governos do PT levaram o Nordeste a crescer em média 4,1% ao ano, mais do que a média nacional, que foi de 3,3%. A melhora relativa das condições de vida na região, proporcionada por essas políticas, ajuda a explicar a enxurrada de votos a favor de Lula.

A pequena-burguesia pendeu majoritariamente para a candidatura de extrema direita, principalmente no Sul, no Centro-Oeste e no interior de São Paulo, regiões onde têm grande relevância o agronegócio e as pequenas e médias propriedades urbanas e rurais. Na Grande São Paulo, a periferia ocupada pelas massas trabalhadoras inclinou-se para Lula, enquanto os bairros ricos centrais votaram em Bolsonaro. No Rio de Janeiro, ao contrário, a periferia da Zona Oeste – dominada pelas milícias e igrejas neopentecostais – votou majoritariamente no capitão, enquanto a pequena-burguesia das Zonas Sul e Norte preferiu Lula.

Nas eleições parlamentares, o caráter reacionário da representação se acentuou ainda mais, tendo o atual partido de Bolsonaro (PL) conquistado a maioria relativa na Câmara dos Deputados, com 99 cadeiras. Figuras da direita tupiniquim, como os generais Mourão e Pazuello, a mística Damares Alves e os líderes da Operação Lava-Jato, tiveram expressivas votações e foram eleitos.

Como explicar tamanho sucesso eleitoral da extrema direita?

Em primeiro lugar, houve um pequeno crescimento econômico, previsto para alcançar 2,7% neste ano, e uma queda no índice de desemprego para 8,7%. O número ainda é muito alto, pois atinge cerca de 9,5 milhões de pessoas, porém é o menor desde 2015. Foi observado também um pequeno aumento na renda média do trabalhador e um recuo da inflação em bases anuais para 6,85%, por conta principalmente da retirada dos impostos sobre os combustíveis.

Em segundo lugar, Bolsonaro e as raposas políticas do Centrão viabilizaram o aumento do Auxílio Brasil (sucessor do Bolsa Família) para R$ 600,00 por mês até o final deste ano, atingindo em cheio o período eleitoral e explodindo o sacrossanto teto de gastos, em busca de votos junto à população mais pobre, reduto político tradicional de seu concorrente, em especial no Nordeste.

Em terceiro lugar, como retribuição ao apoio político do Centrão, Bolsonaro já havia viabilizado o “orçamento secreto” e irrigou os parlamentares governistas com vultosas verbas para projetos em suas bases eleitorais (e, como “ninguém é de ferro”, para atender também a suas necessidades pessoais). Isso lhe garantiu uma forte base de apoio em nível local.

Em quarto lugar, a já referida diminuição dos preços dos combustíveis beneficiou de imediato a tradicional base de caminhoneiros que apoia Bolsonaro. Coube a ela ainda um bônus suplementar de R$ 1.000,00 por mês, válido até o final do ano, extensivo também aos taxistas de todo o país.

E por último, complementando a compra escancarada de votos, além da retomada da pauta reacionária dos costumes, ocorreu a ameaça pura e simples: foram denunciados pela imprensa diversos atos de assédio patronal contra os trabalhadores nas empresas, ameaçados de perderem o emprego no caso da derrota de Bolsonaro. Também sofreram constrangimentos os eleitores que utilizavam os ônibus para se deslocarem pelas rodovias do Nordeste para votar, bloqueados nas estradas pela Polícia Rodoviária Federal, à guisa de uma fiscalização de tráfego “de rotina”.

 

Que esperar do governo de Frente Ampla?

Para enfrentar Bolsonaro nas urnas, o PT constituiu no primeiro turno uma frente com partidos de esquerda e de centro e apresentou Geraldo Alckmin (ex-candidato presidencial do PSDB em eleições passadas) como candidato a vice-presidente, de forma a deixar muito claro que os interesses fundamentais da burguesia seriam respeitados no novo governo. Manobra semelhante já havia sido feita nas eleições de 2002 e 2006, quando um grande empresário da indústria têxtil, José Alencar, ocupou o posto de vice de Lula. Em 2010 e 2014, Michel Temer cumpriu esse papel de garantidor da ordem burguesa.

No segundo turno eleitoral, a frente que já era ampla tornou-se amplíssima com o apoio dos candidatos derrotados Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) e de diversas personalidades do mundo burguês, como os economistas autores do Plano Real.

Confiante nas pesquisas eleitorais que davam a vitória a Lula e limitada pelo caráter de suas alianças, a campanha petista foi despolitizada, apática, ancorada basicamente na defesa da democracia burguesa e na lembrança das melhores condições de vida do passado, com debates televisivos de baixíssimo nível, em que as trocas de acusações pessoais mútuas foram a tônica.

A exceção das promessas de manutenção dos R$ 600,00 do Bolsa Família / Auxílio Brasil e da elevação real do salário-mínimo – aliás incorporadas rapidamente também pela plataforma do adversário –, a campanha de Lula não se pautou pela defesa dos interesses básicos dos trabalhadores.

Falou-se em aumento real do salário-mínimo, mas evitou-se o compromisso com um valor que cubra minimamente as necessidades de subsistência de uma família, conforme o cálculo do DIEESE; nada foi dito sobre a recuperação do poder de compra dos salários com o aumento da inflação; nem sobre a redução progressiva da jornada de trabalho; nada sobre o fim da lei de greve e nada contra o atrelamento dos sindicatos ao Estado.

Embora no início da campanha tenha sido proposta a revogação total da reforma trabalhista do governo Temer, a equipe de transição do novo governo já reduziu a pretensão a apenas três pontos da lei: o restabelecimento do princípio da ultratividade, a limitação do trabalho intermitente para apenas algumas atividades e o fim da negociação direta entre patrões e empregados sem a participação dos sindicatos.

Esses pontos são importantes, mas, além de implicar a judicialização do conflito de classe entre capital e trabalho, não tocam no essencial, como a terceirização de todas as atividades, a prevalência do negociado sobre a lei, a incorporação do regime do banco de horas, afetando a jornada de trabalho, assim como a eliminação ou redução dos intervalos dentro da jornada.

Vencida a eleição, a força gravitacional dos cargos e recursos financeiros do futuro governo começa a atrair mais partidos da direita para a formação de uma maioria parlamentar no Congresso Nacional. Assim, PSD, União Brasil e siglas do Centrão como os Republicanos (leia-se Igreja Universal) vão um a um fazendo fila para oferecer seus préstimos e negociar o apoio e a participação no novo governo.

E a frente amplíssima adquire uma conformação política cada vez mais de centro-direita. A participação de Geraldo Alkmin na condução da equipe de transição, o afastamento do keynesiano Guido Mantega, após ter trabalhado para impedir a candidatura do neoliberal Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e as críticas da imprensa às declarações de Lula sobre o mercado financeiro mostram que o novo governo nasce “emparedado” e que a política de conciliação de classes será de dificílima execução.

As perspectivas cada vez mais visíveis de recessão mundial, com a diminuição do crescimento econômico na China e na Europa – agravado pela continuidade da pandemia e pelas consequências da guerra da Ucrânia –, levaram a uma previsão de crescimento do Brasil em 2023 de apenas 1%, segundo o FMI. Isso será insuficiente para baixar os altos níveis atuais de desemprego e representará uma forte restrição aos aumentos reais de salários.

No momento, a disputa no interior da amplíssima coalizão vencedora das eleições está centrada em resolver a contradição entre o desejado aumento dos gastos sociais, prometido na campanha eleitoral, e a obediência ao teto de gastos exigido pela política de austeridade fiscal. A carta subscrita por Armínio Fraga e outros economistas neoliberais que apoiaram a candidatura de Lula é um alerta para que o novo governo não rompa com os fundamentos da política econômica atual, o que significa restringir consideravelmente os gastos sociais.

A equipe de transição do novo governo pretende retirar os recursos reservados para o Bolsa Família do orçamento e, assim, liberar o saldo para empreender uma política keynesiana de investimentos públicos, com ênfase na indústria da construção civil. Procurará também atrair recursos internacionais para a preservação da Amazônia. Mas isso tudo será insuficiente para reverter a tendência à estagnação que a economia brasileira vem apresentando desde 2014, pelo menos.

Considerando a composição política do novo governo e as forças sociais que o apoiam, os trabalhadores não devem alimentar qualquer ilusão em relação a esse terceiro mandato presidencial de Lula. Todas as conquistas futuras só poderão ser alcançadas por meio da luta e nada virá de graça.

A atuação do novo governo, apoiado no seu esquema sindical, tende a desmobilizar os trabalhadores em nome da “governabilidade” e da legalidade burguesa para combater a extrema direita. “Não provocar o inimigo” deverá ser a palavra de ordem em defesa da ordem burguesa, “garantida” na lei.

Se os trabalhadores não escolhem as condições em que se dá a sua luta, devem preparar-se, portanto, para mobilizar-se e atuar em situação adversa. Estruturados pela base, nos locais de trabalho e de moradia, de modo independente, precisam elevar o nível de solidariedade entre as diferentes fábricas e categorias profissionais, atuar para a realização de campanhas salariais conjuntas e levantar bandeiras unificadoras. Somente assim será possível acumular forças para poder pesar nas lutas de classes e essa será também a única maneira de deter o avanço da extrema direita e mesmo a ameaça de um golpe militar ou de inspiração fascista no país.

No curto prazo, entretanto, é preciso exigir do novo governo que sejam revogados todos os dispositivos legais criados por Bolsonaro para incentivar o armamento da extrema direita no país e dissolvidos os clubes e entidades que abrigam os CAC – colecionadores, atiradores esportivos e caçadores –, que são verdadeiros disfarces para a organização dos braços armados do bolsonarismo, embriões de milícias fascistas.

Coletivo do CVM – 29/11/2022

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