DOSSIÊ – A greve nas 3 montadoras e a atuação da UAW

Apresentação

 

Em “Somos parte da revolução mundial”, trecho de Caminho e caráter da revolução brasileira (pg 9.), documento escrito no exílio em 1970, Erico Sachs levantou a possibilidade de que um novo ciclo da revolução mundial viesse a ocorrer nos países industrializados do Ocidente, destacando a Europa Ocidental. Cogitou que o ponto mais baixo da curva parecia superado, com a emergência de crises cujos primeiros sintomas eram a queda de produção e o desemprego seguintes à crise do dólar e do ouro nos EUA e a radicalização do proletariado europeu. Essas previsões não se confirmaram. A luta dos operários para garantir institucionalmente as conquistas parciais – e não um processo revolucionário – foram revertidas depois que a crise econômica aberta com a recessão mundial de 1974 foi superada mediante a chamada “reestruturação produtiva” do capitalismo, permitindo elevar a taxa de exploração da força de trabalho e deprimir os salários reais a partir da década de 1980, até nossos dias.

Os trabalhadores pareciam estar completamente submetidos ao capital, integrados no capitalismo, exprimindo assim o retorno à escravidão assalariada denunciada por Marx na sua época. Contudo, a contradição entre capital e trabalho continuou a se desenvolver nas últimas décadas. Bastou a volta da inflação para o ressurgimento de greves no centro do capitalismo, inicialmente na Europa. A queda do salário real no período apontado constitui um dos motivos da greve que, a partir de 15 de setembro de 2023 tomou conta da indústria automobilística nos EUA, ainda em curso, afetando principalmente as três maiores empresas (GM, Ford, Stellantis). Superar a divisão de dois níveis, entre trabalhadores empregados permanentes e temporários constitui uma razão adicional da mobilização, sobretudo com a expansão dos contratos temporários entre os trabalhadores nas fábricas de veículos elétricos. A sindicalização traduziu o esforço organizativo aí surgido.

A greve tem um sentido internacional pela dimensão contratual que envolve toda a rede de empresas de cada grupo automotivo[1] e por apontar uma direção à luta sindical para o conjunto dos trabalhadores do setor industrial no mundo, inclusive no Brasil, como aliás sugere a participação de delegação da UAW no 14º. Concut.

O que nos importa, desde numa perspectiva revolucionária, é responder às questões aí surgidas. Alguns articulistas de esquerda levantaram a hipótese de que disposição de luta manifestada na paralisação permite falar em militância com sentido de classe. Porém temos de nos perguntar se esse fenômeno está de fato acontecendo. Por outro lado, a combatividade da massa operária nas fábricas nessa direção se encontra bloqueada pela liderança reformista do sindicato?

O presente dossiê traz algumas contribuições[2] para responder a tais questões, com a seleção de artigos e do discurso do dirigente da UAW, para, no final iniciar uma reflexão sobre o que se passa no movimento sindical dos EUA.

Além dessa apresentação, o sumário e a avaliação da atuação da UAW estão publicados a seguir e a versão integral em PDF, com todos os textos podem ser acessados  aqui.

João Ferreira – 23/10/2023

Notas

[1] Enquanto a General Motors e a Ford são empresas americanas que se expandiram mundialmente, a Stellantis é o conglomerado que resultou, em 2021, da fusão da Fiat-Chrysler com o Grupo PSA (Peugeot Société Anonyme), expressando o movimento do grande capital europeu na direção dos EUA. A Stellantis é composta por 14 empresas.

[2] Os textos foram copiados e traduzidos de Jacobin, Labor Notes, WWS e Viento Sur, com sites disponíveis na internet.

Sumário

1. Na véspera

2. A greve em curso

3. Dossiê: uma avaliação da greve – João Ferreira [p. 65]

 

Dossiê: Uma Avaliação Da Greve

João Ferreira – 23/10/2023

A greve “stand up” dirigida pela UAW contra as 3 Grandes é um capítulo inconcluso no momento em que escrevemos estas palavras.

Vamos agora tentar responder as questões inicialmente propostas para a leitura do material selecionado neste Dossiê.

Podemos afirmar que a disposição de luta manifestada na paralisação permite falar em militância com sentido de classe?

Os sindicatos travam uma luta secular contra a exploração da força de trabalho pelo capital, ora defensiva, ora ofensiva, quase sempre reduzida aos limites das relações sociais capitalistas e da ordem política por elas garantidas. Portanto, o sindicato tende a ser um instrumento de resistência à exploração, mas apresentado como meio de negociação em torno das condições em que se efetiva a exploração, quer dizer, do contrato de trabalho. O termo “exploração”, comum na vertente marxista, está ausente do movimento sindical em todo o mundo.

No caso atual da greve contra as três grandes empresas do ramo automobilístico nos EUA pode-se dizer que se trata de uma situação em que o mais importante sindicato desse país procura superar a completa subordinação do trabalho ao capital a que foi conduzida pela direção sindical nas últimas décadas. Uma das palavras de ordem do dirigente sindical, Shawn Fain a expressa com clareza: “já é tempo de defender a classe trabalhadora.” Nesse sentido, a greve confere à defesa das reivindicações um sentido de ataque ao capital, desde que se tenha em mente a prioridade conferida ao contrato de trabalho.

Há algumas características manifestadas nessa greve tidas pela sua liderança como uma inovação: diferentemente do passado recente, quando as greves começavam por uma empresa com o intuito de obter ganhos para em seguida generalizá-los às demais, esta paralisação foi desencadeada simultaneamente contra os três maiores fabricantes de veículos automotivos. Assim, de um total de 147.000 operários na base, apenas 33.700 operários estiveram efetivamente envolvidos diretamente.[1] Aqui se manifestou a “estratégia” do sindicato de suscitar uma “guerra de guerrilhas” contra as empresas escolhidas, colocando-se no centro de uma disputa na qual as empresas ficam em segundo plano e concorrendo entre si.[2] Como é típico dessa forma de luta, o ataque nunca é definido com alguma antecedência, sendo a surpresa um aspecto central. Um exemplo é a paralisação da unidade da GM em Arligton, Texas. Foi um dos alvos por ser uma das unidades mais lucrativas da empresa no mundo e porque planejava reduzir a produção de SUV’s em favor da alternativa de veículos com motor elétrico.[3]

As principais reivindicações são o aumento salarial (40%) para recompor a perda de décadas, a aplicação do COLA, o fim dos níveis diferentes entre trabalhadores permanentes e temporários, os benefícios de aposentadoria. A intensificação do trabalho e o aumento da jornada de trabalho, fortemente denunciadas nas matérias publicadas no Dossiê (veja-se, especialmente, À medida que os três grandes contratos de automóveis expiram: velocidades de linha apressadas e horários horríveis), ou seja, os aspectos mais relevantes da exploração da força de trabalho pelo capital, não foram incluídos na negociação.

Certamente a estratégia de enfrentamento seguida pela UAW somente poderia dar certo se houvesse a mobilização do conjunto dos trabalhadores, com a disposição e a presteza de entrar na luta quando convocados pelo sindicato. A organização sindical nos “locais” garante o elo de ligação entre a direção e a base, num sistema verticalizado. A necessária mobilização dos operários é um traço que o discurso de Fain enfatiza constantemente. Não por acaso radicalizou o seu discurso, afastando-se da trajetória do sindicato anterior à sua eleição recente e conferindo um tom de classe à religiosidade mediante a qual estabelece um vínculo com a maioria dos trabalhadores. Sob esse aspecto, vale chamar atenção para o distanciamento aos evangélicos, quando caracteriza o mundo sob controle absoluto das empresas gananciosas como o “inferno”. Simbolicamente é o único na imagem na manifestação que ergue o braço e fecha o punho do lado esquerdo (ver A greve do UAW é importante para toda a classe trabalhadora dos EUA). Todo esse empenho significa a necessidade de afirmar a liderança: porque ele venceu a eleição para dirigir a UAW por estreita margem.

Por outro lado, a participação do senador Bernie Sanders, um social-democrata açucarado que tomou a palavra para se dirigir aos operários no comício inaugural da greve em Detroit, favoreceu a inserção do movimento grevista no processo eleitoral para a presidência da República em 2024. Toda ênfase de Fain na necessidade de os trabalhadores terem seu quinhão na retomada do crescimento econômico, aliás fundado na intensificação da exploração dos trabalhadores e sustentado nos generosos subsídios do Estado ao capital, tem por objetivo atrair a atenção dos operários para “pressionar” Biden a reconhecer a contribuição do trabalho nesse crescimento. Não há, portanto, nenhuma posição independente do movimento sindical liderado por Fain diante da burguesia. Ao contrário, afirma-se a conciliação de classe com a expectativa de ganhos materiais imediatos.

A opção pela forma de luta traduzida como “greve stand up” (de pé), foi apresentada por Fain como uma inspiração e uma diferença em relação à greve histórica da GM em 1937, identificadas como “sit-down” (sentada). Não é verdade. Como assinala Leon (Está funcionando: A estratégia de greve dos trabalhadores do sector automóvel está a forçar as 3 grandes empresas a pagar) a referência da forma “stand up” deve ser buscada na greve dos aeroviários da Alaska Airlaines, em 1993. Por outro lado, a greve dos operários da General Motor em Flint, no ano de 1937, surgiu e desenvolveu-se como uma greve de ocupação, teve influência comunista e forte organização independente do sindicato, conforme a história narrada pela BBC. Em certo sentido, esse marco histórico ainda não foi superado e pode-se afirmar que continua a projetar uma grande sombra no movimento sindical americano.

Em contrapartida, a combatividade da massa operária numa perspectiva de classe não estaria sendo bloqueada pela liderança reformista do sindicato?

Esta questão surge na análise do WWS, site do Comitê Internacional da IV Internacional. Ao definir quem são, o site assume a oposição revolucionária ao sistema capitalista. Afirma não excluir “de forma alguma a objetividade e o debate honesto (…) Apenas integridade intelectual e compromisso com a verdade histórica são exigidos daqueles que desejam contribuir para o site.” Supomos que é o critério adotado nas matérias publicadas, inclusive sobre a greve nas automobilísticas sob a direção da UAW.

Não é, contudo, o que o artigo publicado neste Dossiê mostra. Começa por uma denúncia, de tal modo que o debate fica excluído: apesar da vontade de quase 150 mil trabalhadores pela greve ter delegado o caminho da luta à direção da UAW, Shawn “ordenou” que 95% dos trabalhadores continuassem trabalhando; pior, esse método ou “estratégia” (a greve stand up”) foi concebido “em estreita colaboração com a administração Biden e as empresas de automóveis”, numa violação da vontade de 97% das bases que votaram pela greve para conquistar as reivindicações dos trabalhadores.”

Ao invés de uma análise do movimento dos grevistas, apontando qual o nível de consciência expresso na votação, de que forma a organização da greve tomou forma, quais eram as expectativas dos operários, deparamo-nos com denúncias do conluio entre a burocracia sindical com o governo e as empresas.

Em que WWS se baseou para fazer a afirmativa de que a Casa Branca e as empresas ajudaram a inventar a “greve seletiva”? Uma visita de Biden e o aumento inicial dos preços das ações. O fato da UAW ter escolhido fábricas lucrativas, porém não “cruciais” não deve ser interpretado necessariamente como um acordo com as empresas e sim como um comportamento para pressionar as mesmas. Suscetível de crítica, aliás.

O problema, portanto, não está nas condições de luta, no nível de consciência e de organização dos operários – no qual se situa necessariamente o sindicato – e nas relações de força na sociedade para um enfrentamento mais amplo, mas situa-se exclusivamente na direção burocrática que restringe o imenso potencial representado pelos trabalhadores.

Qual o caminho proposto? Mobilizar-se em cada fábrica e em cada turno para organizar comitês capazes de lançar um ataque total contra as 3 Grandes. Contudo a UAW não está fora das fábricas, dispõe de uma organização de base (“locais”). Para convencer os operários a seguir o caminho do confronto seria necessário atuar nas fábricas e, numa paciente construção com quadros operários, estabelecer “estruturas de poder alternativas” ao sindicato quando evidenciada sua falência na defesa das reivindicações dos trabalhadores.

Com todas as limitações do Dossiê a respeito da greve, principalmente por não se basear nos relatos dos próprios operários, há passagens instigantes que mostram como esse trabalho pode incluir setores do movimento sindical de base. Veja-se, a propósito, as posições de Katie Deatherage, trabalhadora de montagem da GM Ventzville, Saint Louis: “A GM tem uma coisa em que tenta eliminar uma porcentagem da mão de obra todos os anos. A velocidade da linha é mais rápida e os trabalhos são um pouco mais pesados porque não temos pessoal. Nossos ossos e nossas articulações não foram feitos para isso.” Nesta primavera, Deatherage venceu a eleição como presidente de seu local, destituindo um titular com a promessa de enfrentar a empresa. (À medida em que os três grandes contratos de automóveis expiram: velocidades de linha apressadas e horários horríveis).

Portanto, uma análise da atuação dos piquetes e da mobilização para a greve seria extremamente importante para entender o movimento dos operários em seu momento atual, que parece ganhar confiança na sua própria força.

Notas:

[1] O sindicato é organizado por plantas industriais, definidos como “locais” enumerados.

[2] Há também outra vantagem: o sindicato pode gastar mais do fundo de greve com pouca gente envolvida diretamente.

[3] A sigla SUV é de origem inglesa e significa Sport Utility Vehicle, ou, numa tradução livre Veículo Utilitário Esportivo aplicável a Esse tipo de carro é inspirado nas caminhonetes e picapes, com a possibilidade de tração 4×4, além de carroceria elevada e pneus grandes. Porém se lida no caso com automóveis de motor de combustão.