A Conjuntura Internacional no Começo de 2022

Cem Flores – 25/02/2022

Foto: Tanques russos na cidade de Mariupol, na Ucrânia, em 24.02.2022.

Agravamento das contradições interimperialistas, guerra e aumento da exploração e da miséria das massas trabalhadoras.

 

I. Introdução

Nas duas primeiras décadas do século 21, as sucessivas crises do capital(desdobramentos da longa crise do sistema imperialista, em seu estado depressivo) marcaram a economia mundial – juntamente com um sem número de agressões militares imperialistas (Afeganistão, Iraque, Síria, Palestina, Cazaquistão e, agora, Ucrânia, entre vários outros exemplos). Este ano de 2022 não deverá ser diferente em nenhum dos dois casos.

O ano de 2020 foi marcado por uma grave recessão, registrando queda do PIB mundial maior do que em 2007/09. Essa crise foi detonada pela pandemia de Covid-19, que agiu sobre tendências preexistentes de desaceleração da acumulação capitalista. Em 2021, houve uma “recuperação” parcial, incompleta, que parece ter recuperado as taxas de lucro do capital mediante um enorme agravamento das condições de exploração do proletariado e das demais classes dominadas (detalhamos o caso brasileiro aqui) – característica própria das crises no capitalismo. As tendências para 2022 indicam, por um lado, uma desaceleração do crescimento capitalista, com estagnação em diversos países (como o Brasil) – o que pode ser agravado pelos desdobramentos da invasão da Ucrânia pela Rússia. Por outro, apontam para a continuidade de uma exploração capitalista mais intensa e de maior repressão sobre as massas, tornando cada vez mais necessárias sua resistência, sua organização e sua luta de classes nas difíceis condições que se apresentam neste ano.

É nesse cenário concreto de crise do capital, crise do imperialismo, que se desenvolve a ofensiva burguesa na sua luta de classes contra o proletariado em nível mundial (e também no Brasil). Para os patrões, a forma de superação da crise, de tentativa de retomada das taxas de lucro, é o aumento da exploração das classes dominadas, mediante piora das condições de trabalho (reduções de salários, eliminação de conquistas trabalhistas, aumento das jornadas e de sua intensidade), e das suas condições de vida(maiores desemprego e exército industrial de reserva, deterioração dos serviços públicos e da situação de moradia, agravamento da pobreza, da miséria e da fome, maior exposição a doenças e a desastres ambientais). Vinculada à essa maior exploração, a ofensiva burguesa também se caracteriza pelo aumento da repressão (necessária ao capital para reprimir a resistência das massas à sua ofensiva) e pelo fortalecimento de tendências fascistas em inúmeros países (incluindo o Brasil).

A crise do imperialismo também implica mudanças na própria dinâmica do sistema imperialista mundial – que não deve ser visto como algo sem movimento, sem contradições, ou “agonizante” no sentido de que ruirá sozinho sob seu próprio peso. Essa dinâmica também é afetada pelo acirramento das contradições interimperialistas entre as duas principais potências atuais: os EUA, potência imperialista dominante, porém relativamente declinante, e a China, potência imperialista ascendente. O agravamento das contradições interimperialistas entre essas duas potências reflete (e influencia) o agravamento de todas as contradições do imperialismo na sua crise atual, em todas as áreas, culminando com sua tendência a conflitos militares e guerras imperialistas, intensificada dia após dia, como a mais recente, iniciada em fevereiro deste ano, na Ucrânia.

Diante da crise do imperialismo, da ofensiva burguesa contra as massas exploradas e da deterioração das suas condições de vida, fica cada vez mais claro para a classe operária e para as demais classes dominadas que não há solução para elas no capitalismo – e é papel dos comunistas contribuir para levar as massas a chegarem à essa conclusão, a partir da nossa participação nas suas lutas cotidianas. Quanto mais difícil a conjuntura de trabalho e de vida para as massas, mais imprescindível é sua resistência, sua organização e sua luta. Quanto mais opressor o sistema capitalista, mais deve ficar claro que as massas só podem contar consigo mesmas, com sua solidariedade e sua ação coletiva – nada podem esperar dos pelegos, dos patrões e do seu estado. Na atual ofensiva burguesa, é cada vez mais necessária, portanto, a reação proletária e comunista. A partir das contradições reais, da exploração crescente, das condições concretas de vida e das lutas realmente existentes das massas, e da participação comunista nesse dia a dia, é que será possível construir os órgãos próprios das massas para elevar as suas lutas e, também, reconstruir o instrumento mais avançado do proletariado em sua luta de classes contra a burguesia: o Partido Comunista.

II. O Sistema Imperialista Mundial na Crise Atual

  1. Estado depressivo como redução do ritmo de acumulação de capital

O sistema imperialista vem sendo afetado, de maneira direta, pela evolução da pandemia de Covid-19 desde a virada de 2019 para 2020 e deve continuar assim em 2022. As ondas de contágio e de mortes, o surgimento de variantes, as restrições em diversos setores, as quarentenas, os ritmos de vacinação – todos esses fatores evoluindo de forma bastante desigual ao longo do tempo e entre países (reafirmando a contradição entre países imperialistas e países dominados) – detonaram uma queda sem precedentes do PIB mundial no primeiro semestre de 2020, o início de uma recuperação (que se revelou parcial e incompleta) ainda no final daquele ano, diferentes ritmos de desaceleração ou o retorno a estagnação em 2021, tendência que se reforçou neste começo de 2022 com a rápida e ampla disseminação da variante ômicron.

Ao final de janeiro, o mundo registrou 3,8 milhões de casos diários, mais que o quádruplo do recorde anterior de 900 mil, de abril de 2021. Mesmo com uma rápida redução para menos da metade no contágio ao final de fevereiro, as mortes diárias superaram 10 mil (30% abaixo do recorde de quase 15 mil no final de janeiro de 2021). Com esses números recentes, o coronavírus já matou mais de 5,9 milhões de pessoas no mundo desde o começo da pandemia. As projeções atuais apontam que o pico dessa onda da variante ômicron já teria passado no final de janeiro, tanto nas contaminações quanto nos óbitos, e de forma otimista, indicam o final da pandemia ainda neste primeiro semestre.

Esse repique da pandemia contribuiu para desacelerar fortemente o PIB mundial no começo de 2022, estagnar o crescimento mundial e reduzir as projeções para o ano (principalmente nos EUA e na China – mas também no Brasil), juntamente com as rupturas nos fluxos de produção e comércio mundiais e a elevação da inflação e dos juros. Sobre a pandemia, a produção/exploração capitalista há muito já aprendeu a conviver com o coronavírus, obrigando os/as trabalhadores/as à labuta contínua, pouco importando ao patrão as condições sanitárias e a proteção nos locais de trabalho e a saúde/adoecimento das massas. Que a grande maioria dos mortos por Covid seja das classes trabalhadoras constitui a própria definição de capitalismo.

Os diferentes ritmos, tempos e gravidade da pandemia em cada país, somados à diversidade das medidas sanitárias nacionais e dos graus de vacinação, acentuaram as contradições que já atingiam as cadeias globais de produção e comércio, gerando efeitos disruptivos. O tempo de transporte marítimo entre a China e os EUA, por exemplo, chegou a quase dobrar, sobrecarregando tanto os portos quanto o transporte terrestre, enquanto os custos de frete mais que sextuplicaram. Isso acarretou paralizações de fábricas e linhas de montagem ao redor do mundo, tanto pela falta de matérias-primas e insumos, quanto pelo aumento dos seus preços (inflação). Não parece haver expectativa de normalização desses fluxos globais de produção e distribuição neste ano.

O impacto estrutural mais importante, no entanto, decorre do agravamento das contradições interimperialistas e das pressões por mudanças no funcionamento dessas cadeias de produção. O reforço dos aspectos estratégicos, geopolíticos e de soberania tem levado a pressões por “renacionalização” da produção e redução da dependência da produção global e, principalmente, dos blocos imperialistas adversários, especialmente a China. No emblemático caso dos chips, que afetam de computadores e celulares a automóveis, os patrões dos principais monopólios dos EUA estão exigindo a redução da dependência da produção asiática: “A escassez expôs vulnerabilidades na cadeia de suprimentos de semicondutores e destacou a necessidade de aumento da capacidade de fabricação doméstica”. O governo Biden e o Congresso, a serviço desses monopólios, já correram para propor e aprovar a lei “Chips para a América” – como parte da lei de defesa nacional! Como resumiu a secretária de comércio dos EUA: “simplesmente não fazemos chips suficientes nos Estados Unidos”.  No começo de fevereiro, a Europa aprovou iniciativa similar, de US$ 49 bilhões.

2021 também foi marcado pelo significativo aumento da inflação global (e no Brasil) – acrescentando carestia e redução do poder de compra dos salários à deterioração das condições de vida das massas trabalhadoras. A inflação global foi a maior já registrada neste século. Nos EUA, 7,5% em janeiro, a maior desde fevereiro de 1982, e na Área do Euro, 5%, a maior desde a criação da união monetária europeia, no começo do século. Praticamente a única exceção foi a China, 1,4%, embora o seu nível de preços ao produtor tenha sido o maior do século, chegando a 10,3%. As projeções do FMI apontam para inflação ainda maior neste ano. Como consequência, os bancos centrais dos EUA e europeu já anunciam aumentos de juros e programaram para março o encerramento de seus programas multi-trilionários de compras de títulos públicos e privados (criação de capital fictício para sustentar a acumulação capitalista que alcançou US$32 trilhõesnos dois anos de pandemia). Essas medidas alteram parâmetros fundamentais para as decisões de investimento/acumulação por parte dos monopólios transnacionais e demais empresas capitalistas, tendendo a resultar em falências de empresas endividadas (gerando ainda maior centralização de capital) ou, ao menos, redução do seu investimento, e queda nas bolsas de valores no mundo inteiro; além de desvalorização cambial ante o dólar, diminuição dos fluxos internacionais de capitais e redução do crescimento, principalmente nos países dominados.

Essa tendência de desaceleração/estagnação atinge também as commodities, revertendo a trajetória de alta nos preços e nas quantidades desde meados de 2020, que contribuiu para a “recuperação” nos países dominados (incluindo o Brasil). O primeiro impacto da pandemia de Covid foi uma queda brusca nos preços internacionais de commodities até abril de 2020. Desde então, os preços internacionais mais que dobraram, sustentados pela recuperação chinesa e sua demanda por commodities. Em comparação com o nível pré-crise, esse crescimento é de por volta de 50%. Considerando a desaceleração/estagnação que já estamos vendo neste ano, a redução dos fluxos de capitais, o aumento dos juros internacionais e a valorização do dólar, a tendência parece ser que os preços de commodities não sustentem os picos de 2021 e se reduzam – contribuindo para reduzir as receitas e os lucros dos países dominados exportadores de commodities (como o Brasil).

Em suma, o cenário para 2022 – na ausência de novas variantes do coronavírus e de novas catástrofes climáticas globais (embora eventos climáticos certamente ocorrerão ao redor do planeta) – é de retorno à trajetória de desaceleração/estagnação que marcou o cenário pré-crise, com diferenças entre países ainda mais acentuadas. Os acontecimentos recentes entre Rússia e Ucrânia e as demais potências imperialistas (EUA, países da OTAN e China) e seus desdobramentos podem acentuar ainda mais essa trajetória em 2022.

Dentre os países imperialistas, apenas China e EUA conseguiram superar, ao final de 2021, o nível de renda per capita pré-crise. Nos dois casos, a tendência é de desaceleração de 2022 em diante, possivelmente rumo a uma nova recessão (nos EUA). Nos demais países imperialistas como Japão, Alemanha e França, ainda não houve a retomada do nível anterior à pandemia (previsto para este ano) e, não obstante, também deverá haver desaceleração. Dentre os dominados, a situação parece pior na América Latina, com a previsão do FMI sendo de “recuperação” ainda mais lenta que nos demais países. Nas palavras de Michael Roberts: “E no final deste ano, a maior parte das grandes economias terá começado a recuar para o baixo crescimento, tendências de fraca produtividade da longa depressão [dos anos] 2010, com perspectivas de um crescimento ainda mais lento durante o resto da década”.

  1. Centralização de capital

A crise de 2020 e a desigual e incompleta “recuperação” em 2021 possibilitaram que no ano passado as chamadas operações de “fusões e aquisições” batessem recordes históricos. Essas operações representam uma crescente centralização de capital, na qual um capitalista expropria outro, adquirindo o controle sobre seus negócios e potencializando sua própria acumulação de capital e seus lucros. O crescimento da centralização do capital, dos monopólios capitalistas, é uma tendência inexorável do capitalismo em crise.

Além do cenário de crise/“recuperação”, a avalanche de capital fictício criado pelos estados e seus bancos centrais também foi fundamental para financiar essas operações de centralização de capital. Por um lado, ao fornecer amplas condições de liquidez e juros zero ou mesmo negativos. Por outro, ao estimular o boom das bolsas de valores, acelerando a valorização fictícia do capital centralizado e a recuperação do capital investido, aumentando as taxas de lucros.

Em 2021, as “fusões e aquisições” no mundo superaram US$ 5 trilhões (mais do que o triplo do PIB do Brasil naquele ano, em dólares), bastante acima do recorde anterior, de US$ 4,5 trilhões em 2007 – ainda antes da crise de 2007/08 (recorde também no Brasil). Esse valor foi o resultado de mais de 62 mil operações de “fusões e aquisições”. Desse total, 130 operações movimentaram valores acima de US$ 5 bilhões cada. As empresas dos EUA responderam por metade do valor global e por 60% das megaoperações – mostrando a importância e o poder do capital financeiro dos EUA e explicitando que seu declínio é em termos relativos. No ano se destacaram os setores de tecnologia (com participação das Big Techs), financeiro, industrial e energia.

Em 2022, a centralização de capital já começou a todo o vapor, com a compra da empresa de jogos Activision Blizzard pela Microsoft, por quase US$70 bilhões. As expectativas do capital financeiro para este ano é que as “fusões e aquisições” se mantenham no patamar recorde do ano passado. No entanto, a redução das injeções de capital fictício pelos bancos centrais, o aumento dos juros e a consequente redução de liquidez e de fluxos de capitais podem reduzir esse ritmo de centralização.

  1. Capital fictício

Desde a crise de 2007/8, os países imperialistas, por meio de seus bancos centrais (emissões monetárias com compra de títulos públicos e privados) e tesouros nacionais (emissões de dívida pública), juntamente com os aparelhos internacionais do capital, como o FMI, têm inundado os mercados financeiros com dezenas de trilhões de dólares em capital fictício, na tentativa de retomar as taxas de lucro de seus capitais. Esses muitos trilhões de dólares levaram as taxas de juros dos títulos públicos a valores nominais negativos e se espalharam pelo mundo todo, causando níveis recordes nas bolsas de valores, aumentando os fluxos internacionais de capitais, financiando fusões e aquisições, valorizando bolhas especulativas nas chamadas “criptomoedas” e estimulando instrumentos derivativos nos mercados financeiros, multiplicando essas “emissões iniciais” de capital fictício. Essas bolhas de capital fictício – quando mais infladas, mais próximas do seu estouro – são antecedentes de novas crises financeiras.

De acordo com o já citado texto de Michael Roberts, esse capital fictício alavancou recordes nos mercados financeiros (títulos de dívida e ações) e imobiliário. Os mercados acionários globais cresceram em US$ 60 trilhões e atingiram níveis recordes. Só que também aqui o poder do capital cada vez mais centralizado dos monopólios transnacionais mais uma vez se revela: mais da metade do crescimento recorde da bolsa de Nova York se deveu a apenas cinco Big Techs (Apple, Microsoft, Nvidia, Tesla e Google). Considerando as chamadas FAANGMs (Facebook-Meta, Amazon, Apple, Netflix, Google-Alphabet e Microsoft) seu “valor de mercado” conjunto já supera US$ 9 trilhões – quase seis vezes o PIB brasileiro. Com esse “desempenho”, o grande capital tem divulgado, trimestre após trimestre, desde o final de 2020, lucros crescentes e constantemente acima das previsões do próprio mercado financeiro. No começo de 2022, os anúncios de aumentos de juros e redução das injeções de capital fictício no mundo todo, além das tensões militares que levaram à invasão da Ucrânia, já levaram a uma queda de 10% na bolsa de Nova York.

No capital fictício sob a forma de dívida pública, houve recorde histórico em 2020: US$ 226 trilhões, equivalendo a duas vezes e meia o PIB mundial. A dívida dos governos e das empresas atingiu o mesmo montante, por volta de US$ 87 trilhões, quase 100% do PIB mundial cada uma, com o restante constituindo o endividamento das pessoas físicas. Em 2021, essa dívida total global já se aproximava de US$ 300 trilhões. Não há nenhuma indicação de que essa modalidade de capital fictício vá parar de crescer. O que deve acontecer em 2022, com os aumentos dos juros e a redução das compras de títulos dos bancos centrais, é um aumento da falência de empresas endividadas, levando tanto a novas rodadas de centralização como a mais acentuadas desaceleração/estagnação.

  1. Contradição interimperialista principal: EUA e China

Como já afirmamos, as contradições entre os capitais e as potências imperialistas, contradições interimperialistas, expressam bem as alterações na dinâmica do sistema imperialista mundial. Na presente conjuntura, a principal dessas contradições é a que opõe as duas principais potências imperialistas da atualidade: EUA (potência imperialista dominante, porém em declínio relativo) e China (potência imperialista ascendente). A crise do capital e o estado depressivo da economia mundial agravam ainda mais essas contradições.

Essa contradição interimperialista principal – que, contraditoriamente, também inclui forte interpenetração de capitais das duas nacionalidades, portanto, complementaridades e algum nível de interesses comuns – se espalha por todas as áreas a partir da ascensão (econômica, produtiva, comercial, financeira, tecnológica, diplomática e militar) chinesa e da reação em todas as frentes do imperialismo dos EUA. A percepção é de crescente e significativo agravamento dessas contradições EUA/China, como podemos observar nos campos:

a) produtivo e comercial: o inegável dinamismo da economia chinesa pode ser traduzido no fato de sua economia, que representava 12,6% da economia dos EUA no começo deste século, dever chegar a quase 75% do PIB dos EUA ao final deste ano. O próprio capital financeiro dos EUA já projeta que a economia chinesa será a maior do mundo ainda nesta década. A produção industrial chinesa já é quase o dobro da realizada nos EUA, sendo que a produção chinesa de automóveis é maior que EUA, Japão e Alemanha somados. A China também é a maior exportadora mundial, produzindo mercadorias para o consumo nos mercados externos no valor de US$ 2,65 trilhões, quase 50% mais que as exportações dos EUA. Desse total, mais de meio trilhão de dólares vai para os EUA, seu principal parceiro comercial, com quem a China tem um superávit acima de US$ 350 bilhões. A quantidade de monopólios chineses na lista dos 500 maiores do mundo (124) já supera a dos EUA (121).

Esse enorme déficit no comércio exterior dos EUA com a China, chamado de “guerra comercial”, já foi uma das maiores fontes de conflito entre os dois países. Há até um acordo formal, que entrou em vigor no começo de 2020, buscando reduzir o déficit prevendo cotas para limitar o acesso de produtos chineses ao mercado dos EUA e para ampliar o acesso das exportações do EUA para a China (US$ 200 bilhões a mais). A conclusão dos EUA é que “a China não comprou nada desses US$ 200 bilhões extras de exportações dos EUA do acordo comercial de Trump”.

Essa vantagem dos monopólios chineses sobre os dos EUA reflete, por um lado, o crescente antagonismo e conflito aberto nas relações econômicas entre as duas potências imperialistas. Mas, por outro lado, também implica complementariedades e interpenetrações entre os capitais dos dois países no sistema imperialista mundial. Um exemplo são os investimentos diretos, monopólios transnacionais dos EUA que atuam no território chinês. Dados do FMI mostram US$ 124 bilhões investidos diretamente na China e outros US$ 92 bilhões em Hong Kong. O número real, no entanto, é muitas vezes maior que esse por causa dos paraísos fiscais. Numa conta conservadora usando a mesma base de dados, os EUA reportam investimentos de quase US$ 2,5 trilhões (mais de 40% do total) em locais como Luxemburgo, Irlanda, Ilhas Cayman e Bermudas. Na verdade, os monopólios transnacionais instalam empresas fictícias nesses paraísos fiscais e de lá investem nos verdadeiros destinos. Boa parte do capital dos EUA investido na China aproveita melhores condições de produção e lucros para exportar de volta mercadorias para os próprios EUA – ajudando a explicar a ineficácia dos “acordos comerciais”, que não poderiam prejudicar a própria atuação transnacional do capital monopolista dos EUA.

b) financeiro: definidos de forma ampla, os “mercados financeiros” dos EUA permanecem de longe os dominantes do sistema imperialista mundial, com a China representando apenas uma fração do poder dos EUA nesses mercados – e, não obstante, aqui também se observam notáveis crescimentos chineses. O predomínio mundial do dólar (amplamente dominante mundialmente enquanto moeda de reserva internacional, meio de pagamento e de transações financeiras e comerciais), a “capitalização” de suas bolsas de valores puxadas pelas Big Techs, o montante de sua dívida pública, o papel do seu banco central na definição das taxas de juros e da liquidez mundial e o capital fictício gerado nos seus “mercados financeiros” garantem aos EUA o amplo domínio mundial do capital financeiro (e fictício).

Mas também no aspecto financeiro o capital chinês vem tendo uma rápida expansão. O total da exportação de capital pelos monopólios e pelo estado chinês já atinge US$ 5,3 trilhões (dados de 2020), sendo US$ 2,4 trilhões em investimentos diretos e US$ 2,3 trilhões em diferentes formas de empréstimos externos. Essa exportação de capitais pavimenta a iniciativa da nova rota da seda e amplia a esfera de influência do imperialismo chinês ao redor do mundo, especialmente Ásia e África, mas também chegando à América Latina – constituindo mais uma fonte de contradições interimperialistas com os EUA e as demais potências imperialistas.

Por fim, a China também detém as maiores reservas internacionais do mundo, US$ 3,4 trilhões – consequência de seus superávits em conta corrente (e dos déficits comerciais dos EUA). Ao mesmo tempo em que fortalecem a posição financeira internacional do estado chinês, essas reservas também são mecanismos de estabilização do sistema financeiro mundial do imperialismo e, dessa maneira, outra forma concreta de complementariedade e de interpenetração entre os capitais dos EUA e da China. Embora a China não divulgue a composição das suas reservas internacionais, os EUA divulgam a lista de detentores de títulos públicos do governo dos EUA. Nessa lista, a China aparece como detentora de US$ 1,1 trilhão de dólares de dívida pública dos EUA, vinculando parcela considerável da “riqueza financeira” chinesa ao mercado financeiro do imperialismo dos EUA.

c) tecnológico: os EUA permanecem na fronteira tecnológica mundial, seja em termos dos seus monopólios transnacionais de tecnologia, seus centros de pesquisa (empresariais/acadêmicos), ou nos gastos totais em pesquisa e desenvolvimento. Também aqui, a contestação da China à supremacia dos EUA é crescente, reduzindo a distância chinesa em relação à essa fronteira tecnológica. Enquanto os gastos dos EUA com pesquisa e desenvolvimento permaneceram ao redor de 2,8% do PIB na última década, os gastos chineses crescem continuadamente e passaram de menos de 1% do PIB no começo do século para 2,1% do PIB em 2018. Isso significa que esses gastos cresceram, nesse período, ao dobro da velocidade do PIB chinês.

Um dos casos mais evidentes de disputa tecnológica entre essas duas potências imperialistas é o caso das redes e equipamentos 5G, com liderança chinesa. A partir dessa disputa tecnológica, um intenso conflito político e diplomático está em curso, sobre a capacidade de os EUA vetarem a participação dos monopólios chineses (como a ZTE e a Huawei, inclusive com uma alta representante de sua burguesia tendo sido presa no Canadá como parte desse conflito) nas ofertas desse serviço aos mais diversos países (inclusive o Brasil). Quanto maior a participação chinesa nas redes de 5G ao redor do mundo, maior sua expansão tecnológica e ampliação de sua esfera de influência. O poder do imperialismo dos EUA tem sido capaz de bloquear a participação dos monopólios chineses em diversos países mais alinhados com os EUA.

Casos significativos de uma equiparação ou mesmo superação tecnológica da China em relação aos EUA são as missões coincidentes a Marte, o predomínio chinês em quantidade de publicações científicasem 2020 (engenharias, ciência da computação, astronomia, agricultura, biologia molecular e farmacologia) e o teste, em meados do ano passado, de mísseis hipersônicos, emparelhando com a Rússia e superando os EUA. De acordo com o chefe do estado maior das forças armadas dos EUA, Mark Milley, essa constatação “é muito preocupante” para a defesa e segurança nacionais dos EUA.

d) (geo)político, diplomático e militar: a supremacia militar é um aspecto central da primazia dos EUA dentre as potências imperialistas (junto com sua economia e as finanças) baseada na presença militar ao redor do mundo e na capacidade de, em tese, intervir militarmente em qualquer zona de conflito em todo o planeta. Os EUA têm, de longe, o maior orçamento militar do mundo, US$ 778 bilhões em 2020, enquanto o orçamento militar chinês, mesmo em crescimento, não alcança um terço desse valor (US$ 252 bilhões).

O caráter de potência imperialista ascendente da China se reflete na estratégia de segurança nacional dos EUA que, desde 2017, passou a identificar a China (e a Rússia) como desafiantes ao “poder, influência e interesses dos EUA, buscando erodir a segurança e a prosperidade dos EUA”. A China passou então a ser vista como um “competidor estratégico de longo prazo”. A definição da China como a principal prioridade da segurança nacional dos EUA, seu principal competidor e adversário, sobre o qual se deve adotar uma estratégia de contenção, articulando os países aliados dos EUA, não só não se alterou com a troca de guarda de Trump para Biden, como deve se acentuar. A orientação estratégica preliminar de Biden define como tarefa “vencer a competição estratégica com a China”.

O discurso ideológico do estado imperialista chinês e do seu gestor, o partido comunista (sic!), é bastante diferente do belicoso discurso dos EUA – que permanece refletindo a ideologia do seu “destino manifesto” de principal potência hegemônica. A base do discurso ideológico do imperialismo chinês combina nacionalismo crescente com a retomada do papel da China no mundo – o que guarda semelhanças com o nacionalismo dos EUA e é antagônico ao internacionalismo proletário. A base material desse discurso ideológico é, claramente, o estrondoso crescimento econômico capitalista chinês e a consequente maior importância da China no sistema imperialista mundial. Seu objetivo é justificar ideologicamente a necessidade de um maior poder para o imperialismo chinês, como que adequado à sua importância econômica. Na realidade concreta, esse discurso ideológico é a justificativa para a potência imperialista ascendente acirrar as contradições interimperialistas com a potência dominante, porém relativamente declinante, os EUA.

Economicamente, o discurso chinêsdefende o livre mercado e a abertura econômica global, ou seja, defende a globalização capitalista e os aparelhos internacionais do capital responsáveis por ela (ONU, OMC entre outras). Ou seja, como é óbvio, o reforço das regras que tem favorecido o crescimento da China neste século: “tentativas de ‘construir muros’ ou ‘desacoplar’ vão contra as leis da economia e os princípios de mercado”. Unindo os fatores econômicos, políticos e diplomáticos (além do soft power da influência chinesa), esse discurso justifica a criação de inúmeros fóruns de países dirigidos pela China, como o Fórum Boao, entre muitos outros, no qual foi proferido esse discurso e que também é chamado de “Davos asiático”. No evento de 2021, Xi Jinping fez seu discurso, entre outros, para os principais dirigentes de monopólios transnacionais dos EUA como a Apple e a Tesla.

Em termos políticos e diplomáticos, o discurso ideológico do imperialismo chinês critica o “unilateralismo” e a “hegemonia” (dos EUA), como forma de defender a necessidade do novo status da China no cenário internacional: “a governança global deve refletir a evolução do cenário político e econômico do mundo”. Sob o discurso da defesa da “cooperação mutualmente benéfica” e da “colaboração na governança global”, o que há de fato é a defesa de que o mundo não pode prescindir “da voz da China sendo ouvida, das propostas de soluções da China sendo compartilhadas, do envolvimento da China sendo necessário”.

O dedo apontado aos EUA é às vezes implícito, às vezes explícito, embora sempre procurando mostrar-se na posição reativa. Em relação à guerra comercial deslanchada pelos EUA de Trump, o discurso passou a ser que a China não queria essa guerra, mas não a temeria e a disputaria, se necessário. Sobre os recentes conflitos diplomáticos a partir das iniciativas dos EUA para a vizinhança chinesa, a China emitiu nota conjunta com a Rússia neste mês mostrando sua oposição explícita ao “impacto negativo da estratégica Indo-Pacífica dos EUA” e à iniciativa AUKUS (EUA, Inglaterra e Austrália) em função de sua estratégia militar.

Embora faça parte do discurso ideológico imperialista chinês afirmações do tipo “não importa quão forte venha a ficar, a China nunca buscará hegemonia, expansão ou uma esfera de influência. Nem a China nunca se engajará em uma corrida armamentista”, todas essas negativas são peremptoriamente negadas pelos fatos. Sobre a expansão imperialista e a busca de esferas de influência, pode-se mencionar a iniciativa “Belt and Road” (nova rota da seda) que inclui mais de 200 acordos com 172 países e organizações internacionais e remeter os camaradas e leitores a outros textos publicados pelo Cem Flores: aqui e aqui.

Especificamente sobre a questão militar, a China está decuplicando sua capacidade de lançamento de mísseis balísticos, o que se combina com a perspectiva de mais que dobrar seu arsenal atômico (que, ainda assim, será um sexto dos da Rússia e dos EUA), além de fortalecer suas forças armadas em todos os níveis. Do ponto de vista de uma potência imperialista, esse é o caminho necessário, imprescindível, para proteger seus interesses estratégicos (Mar da China, Taiwan), ampliar sua ação global e se colocar crescentemente à altura de seu oponente imperialista, os EUA. Dependendo da evolução dos acontecimentos no futuro próximo, o aspecto militar pode passar a ter importância crescente nas contradições interimperialistas que opõem EUA e China e seus respectivos aliados.

III. Mercado de Trabalho e as Condições de Vida das Massas Exploradas

Os impactos da última crise do capital no mercado de trabalho e na vida das massas exploradas, em nível global, foram intensos, diversos e prolongados. Elevação permanente do desemprego, piora nas condições de trabalho, redução de salários, maior carestia de vida, pioras na saúde e na educação, crescimento das desigualdades, da insegurança alimentar, da pobreza, da miséria, da fome e da violência… Uma deterioração generalizada e contínua, que se soma às crises anteriores e à ofensiva de classe desencadeada pela burguesia contra o proletariado e demais classes trabalhadoras.

Em meados de janeiro, a OIT revisou para baixo suas estimativas já modestas de “recuperação” do mercado de trabalho para 2022, acompanhando as projeções de crescimento econômico. Para esse ano, estima-se que o mundo continuará com 52 milhões de empregos a menos do que no final de 2019, antes da pandemia. O número de desempregados no mundo (número que é bem maior se considerarmos desalentados e subocupados), segundo a OIT, continua acima de 200 milhões de trabalhadores, patamar alcançado em 2020, após contínua subida desde os anos 1990.

Esse novo patamar de desemprego é uma das bases para a nova onda global de pobreza, fome e miséria. Segundo o Banco Mundial, houve “um aumento sem precedentes” de trabalhadores/as a sobreviverem em situações de pobreza extrema. Apenas em 2020, mais 77 milhões caíram na extrema pobreza – renda inferior a US$1,90 por dia. Não há perspectivas de retorno ao patamar e à tendência anteriores à pandemia. O número de pessoas famintas no mundo atingiu um novo pico: foram 45 milhões no final de 2021, contra 27 milhões em 2019.

Outro fator que representou uma piora nas condições de vida das massas foi a inflação de 2021, comentada acima. Dentre os preços que mais subiram em todo mundo foram os de alimentos que se destacaram.Óleos, cereais, carne, derivados de leite, açúcar… itens fundamentais na mesa de bilhões de trabalhadores/as. Essa carestia de vida impõe um efeito prolongado na capacidade de consumo das classes trabalhadoras, já afetadas pelo desemprego crônico e os salários de fome.

Do outro lado, o capital, os grandes capitalistas, os bilionários  ampliam sua fortuna, reforçando ainda mais a abissal desigualdade. Durante a pandemia, “os 10 homens mais ricos do mundo mais que dobraram suas fortunas, de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão – a uma taxa de US$ 15 mil por segundo, ou US$ 1,3 bilhão por dia”.

IV. Conclusão

Frente ao estado depressivo do imperialismo e à contínua e violenta ofensiva de classe burguesa, o proletariado e as massas exploradas de todo o planeta resistem coletivamente para sobreviver e manter minimamente suas condições de vida. Mas suas lutas, protestos e greves se encontram fragilizadas diante de seu baixo nível organizacional e político. O que impõe aos/às comunistas o reforço de seus esforços em prol da reconstrução da posição independente do proletariado na luta de classes e de seus instrumentos de combate. Pois a solução ao acirramento das contradições imperialistas é a revolução. Sem ela, a escravidão assalariada continuará e a vida das massas exploradas continuará a mercê da acumulação de capital.

Estivadores gregos em greve contra a empresa chinesa Cosco.

 

 

 

 

 

 

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