Lula-Alckmin: de quem são amigos e de quem são inimigos? Essa é uma questão fundamental! (2ª parte)
Cem Flores – 26.09.2022
Foto acima: Ex-candidatos a presidente apoiando Lula, em 19 de setembro. Na extrema-esquerda, Alckmin. No centro, Luciana Genro afaga Lula. Na extrema-direita, o novamente fiador de Lula junto ao capital financeiro nacional e internacional, Meirelles, ministro da fazenda de Temer.
Este texto conclui uma extensa série de publicações do Cem Flores sobre a conjuntura das crises econômica e política do país às vésperas das eleições gerais de 2022.
Nosso esforço é o de analisar a conjuntura da luta de classes, por um lado as condições de acumulação e de lucratividade do capital na implementação do seu programa hegemônico e as condições políticas de sua ofensiva de classe. Por outro, as condições de vida, as mobilizações e resistências da classe operária e das demais classes dominadas, assim como suas possibilidades de avanço. Também analisamos em detalhe as duas principais candidaturas presidenciais, Bolsonaro como representante da extrema-direita, fascista, com amplo apoio da burguesia, em seu autoritarismo crescente; e Lula, maior representante do reformismo e do oportunismo, ideologias burguesas atuando junto à massa trabalhadora para mantê-la subordinada à exploração das classes dominantes. Ante essa falsa dualidade, também analisaremos criticamente as várias posições da esquerda que a denunciam.
O objetivo maior desse esforço é o de contribuir para a divulgação de uma posição comunista, marxista-leninista, que possa ajudar na retomada do caminho revolucionário do proletariado, em busca de reconstruir seu instrumento político próprio e independente, o Partido Comunista, ferramenta indispensável para encabeçar a luta da classe operária e das massas exploradas pela sua libertação da escravidão assalariada, pela derrubada do regime burguês e a construção da república dos/as trabalhadores/as, o socialismo!
1.7. O crescimento econômico dos governos Lula (2003-10) apenas seguiu na média mundial
Todos certamente lembram do bordão “nunca antes na história deste país”, com que Lula se auto elogia em relação aos seus “feitos” na gestão do capitalismo brasileiro. Entre diversos outros temas, a frase também é aplicada pelo PT ao crescimento econômico durante os dois mandatos de Lula, convenientemente esquecendo a recessão histórica iniciada ainda no final do primeiro mandato de Dilma, em 2014, que ela ajudou a aprofundar e prolongar com suas políticas econômicas.
Nos itens anteriores já analisamos como as tendências de desindustrialização e reprimarização avançaram durante os governos petistas. Essas são tendências que decorrem da inserção dominada do país no sistema imperialista mundial e da reconfiguração desse sistema nas últimas décadas, especialmente em função da ascensão da China como potência imperialista. Por mais que pareça paradoxal, foi exatamente essa inserção dominada (e seu reforço nos governos petistas), essa condição de regressão a uma situação colonial de novo tipo, que se constituiu em um dos determinantes fundamentais do crescimento obtido durante os governos Lula. Ou seja, fatores externos (que, em geral, tendem a ser de curto prazo, como efetivamente o foram nesse caso) contribuíram significativamente para a maior acumulação de capitais e lucratividade da burguesia durante os governos Lula.
Dentre esses fatores externos é sempre destacado o superciclo dos preços internacionais de commodities. Com o Brasil cada vez mais produtor/exportador de commodities agropecuárias, minerais e energéticas (ver item 1.5), o aumento de por volta de 180% dos seus preços internacionais em dólares nominais do começo do governo Lula até o pico histórico de junho de 2008, teve um enorme impacto na economia brasileira. Esse impacto foi sentido no maior ingresso de dólares de exportação, contribuindo para apreciar a taxa de câmbio, e no aumento dos termos de troca, significando que esses mesmos dólares poderiam adquirir mais bens importados, gerando um “efeito riqueza” para seus proprietários.
Mas outro efeito menos explicitado é que o período de 2003 a 2008 foi exatamente o que antecedeu a maior crise do imperialismo do século 21. Isso significa que as contradições do capitalismo que explodiram na crise estavam se agravando. Ou seja, foi o momento de maior expansão mundial do capital fictício e dos fluxos de capitais, que entraram maciçamente no país (ver item 1.1), gerando enormes lucros que se revelariam igualmente fictícios com a crise. Além disso, havia a expansão acelerada da economia chinesa, que ampliava sua importância na economia mundial, especialmente demandando matérias-primas e commodities e exportando mercadorias manufaturadas baratas (reduzindo a inflação global).
Para o Brasil, esse período de agravamento das contradições do sistema imperialista mundial gerou ingressos recordes de capitais, qualquer que seja sua natureza, investimentos diretos, em dívida pública ou ações etc. O mercado de câmbio brasileiro (ver série 11.053), que havia registrado saída de capital em 2002 (-US$ 13 bilhões), teve ingressos crescentes, ano a ano, até o recorde da série, em 2007 (+US$ 87,5 bilhões). Isso possibilitou ao banco central de Lula e Meirelles comprar todo o excesso de dólares do mercado brasileiro, US$ 159,5 bilhões de 2003 a agosto de 2008, aumentando as reservas internacionais do país para US$ 205,1 bilhões nesse mês (eram US$ 37,8 bilhões em dezembro de 2002). Assim, ocorreu uma contínua queda da taxa de câmbio, de mais de 50%, que contribuiu para controlar a inflação e permitir maiores lucros ao capital nacional e internacional com as elevadas taxas de juros de Lula e Meirelles.
Foram esses efeitos dos fatores externos pré-crise do sistema imperialista mundial que permitiram afastar o risco de crise do balanço de pagamentos do país, aumentar a arrecadação fiscal do governo (e garantir os superávits primários recordes da época!), e os investimentos dos capitais nacionais e estrangeiros em busca de lucros crescentes. Esses efeitos se transmitem para os demais setores econômicos do país (importações, varejo, serviços etc.) e possibilitaram o aumento das transferências públicas para gastos sociais e mesmo a política de elevação do valor real do salário-mínimo.
E, no entanto, o gráfico a seguir indica que não houve diferenças fundamentais que tenham caracterizado o desempenho econômico do Brasil e, portanto, as políticas dos governos Lula, em relação aos nossos vizinhos, igualmente afetados, em distintos níveis, pelos mesmos fatores externos. De 2003 a 2010, o Brasil cresceu (37,4%) exatamente a mesma coisa que o conjunto dos países da América Latina (36,1%). O mundo cresceu um pouco mais (39,2%), puxado pelo desempenho do que o FMI chama de “países emergentes” (68,5%), nos quais se destaca o crescimento acelerado da China, que puxa a acumulação dos seus vizinhos do sudeste asiático. Se incluirmos nos cálculos todo o período dos governos do PT, aí o desempenho do Brasil é bem pior do que todos os demais, mostrando a dimensão histórica da recessão de 2014-16: Brasil, 45,4%; América Latina, 53,3%; “emergentes”, 116,8%; e mundo, 66,5%.
Temos chamado esse período de “miniciclo de expansão capitalista (2005-2010)” e apontamos “seu esgotamento/reversão a partir de 2011/2012”, trajetória que iria culminar na crise de 2014-16. A partir de um ponto de vista bastante diferente, mas também explicitando as limitações de magnitude e duração do miniciclo lulista, a economista Laura Carvalho se refere, jocosamente, a ele como “milagrinho”.
A conclusão que se impõe é que os governos Lula navegaram com a maré do capital a seu favor (e contribuíram com ela!), aproveitando tendências não apenas conjunturais do momento imediatamente anterior à crise de 2008, mas também as estruturais, próprias da posição dominada do país na divisão internacional do trabalho do sistema imperialista, que denominamos de regressão a uma situação colonial de novo tipo.
Em 2003, a continuidade e o aprofundamento das políticas de FHC pelo governo Lula foram “justificadas” (sic!) em nome da “herança maldita” deixada por FHC – o que obviamente não faz nenhum sentido… Na busca por “credibilidade” junto ao mercado financeiro nacional e internacional, não se poderia “dar cavalo de pau” na economia, nem “reinventar a roda”. Agora, esse discurso vai ser reciclado, afirmando que o novo governo Lula deve “reconstruir” o Brasil após a destruição causada por Bolsonaro. Nessa “lógica”, novamente não se poderá “dar cavalo de pau” nem “reinventar a roda”, mas ganhar novamente “credibilidade” junto ao capital, especialmente o financeiro. Em suma, trata-se de outro aspecto da mesma política de conciliação/subordinação de classes eternamente defendida e praticada pelo PT, em que altos lucros são destinados às classes dominantes e aos dominados restam as migalhas; em que os ataques das classes dominantes são mantidos ou aperfeiçoados enquanto se ilude com supostas mudanças e melhorias futuras para os dominados.
1.8. As desigualdades de renda e de riqueza não caíram nos governos do PT
Tanto, ou até mais, do que o tema do crescimento nos governos de Lula (esquecendo Dilma), a propaganda petista divulga a redução da desigualdade nos governos do PT. Para isso são utilizadas estatísticas sobre rendimentos do trabalho assalariado (sem as rendas do capital), a política de aumento real do salário-mínimo e a consolidação do Bolsa Família. O Bolsa Família foi extremamente importante aos governos do PT (e posteriores) em sua dupla função: por um lado, contribuir com um mínimo de renda para a subsistência básica dos seus beneficiários, por outro, ao constituir um importante instrumento de “controle” e de “pacificação” social, fazendo a população mais pobre assumir uma posição passiva na espera do benefício governamental.
A pandemia de Covid-19, em 2020, e o pacote eleitoreiro de Bolsonaro, em 2022, no entanto, permitem avaliar quão limitados foram os gastos do PT com o Bolsa Família, condicionados à manutenção de superávits primários crescentes e recordes e a obediência ao tripé macroeconômico de FHC (superávit primário, câmbio flutuante e metas para a inflação). Se mesmo um genocida como Bolsonaro conseguiu montar um pacote eleitoreiro cujo gasto com o Bolsa Família, rebatizado de Auxílio Brasil, é o dobro do maior valor dos governos petistas, parecem claros os limites da política anterior. As “políticas sociais” do PT se mostram limitadas e insuficientes.
O gráfico apresenta as estatísticas da secretaria do tesouro nacional (STN), as chamadas despesas do governo central orçamentário. Utilizamos a rubrica de “auxílios financeiros a pessoas físicas e famílias” (que tem outras transferências além do Bolsa Família/Auxílio Brasil) e corrigimos os valores pelo IPCA. O valor máximo (a preços de 2021) dos governos do PT atingiu R$ 46,4 bilhões. Em 2021, após o corte do auxílio emergencial, esse montante atingiu R$ 95 bilhões, mais do que o dobro do maior ano petista. Para 2022, em função do pacote eleitoreiro, essa rubrica deve superar R$ 114 bilhões.
“programa Bolsa Família … ampliado … para garantir renda compatível com as atuais necessidades da população”. Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil 2023-2026, junho de 2022, parágrafo 20.
Quanto à afirmação hipócrita de “garantir renda compatível com as atuais necessidades da população”, basta lembrar que o salário-mínimo necessário para a alimentação de uma família de dois adultos e duas crianças, de acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, do Dieese, era de R$ 6,3 mil em agosto de 2022 – valor praticamente impensável para a absoluta maioria dos brasileiros, cujo rendimento médio estava em R$ 2,7 mil no trimestre encerrado em julho passado. E que, durante o período do PT, mesmo com a política de aumento real, o salário-mínimo vigente era de apenas 22%, em média, do salário-mínimo necessário.
Em relação às medidas de desigualdade, a partir de 2015 surgiram as primeiras estatísticas e análises que consideravam tanto os rendimentos do trabalho assalariado (a partir das PNADs do IBGE) quanto rendimentos do capital (a partir dos dados das declarações de imposto de renda). No primeiro desses trabalhos constatou-se estabilidade ou mesmo um pequeno crescimento na renda dos “mais ricos” (5%, 1% ou 0,1%). Estudo posterior dos mesmos autores reforçou essas conclusões, utilizando as rendas de toda a população (índice de Gini).
O desenvolvimento e o cálculo sistemático dessa metodologia de estimar a desigualdade é feita pela World Income Database, na qual buscamos os dados para o Brasil. Dados revisados e para uma série temporal maior confirmam os primeiros estudos e reforçam a conclusão de que não houve redução da desigualdade de renda no Brasil nos governos do PT e que seu nível permaneceu bastante elevado. A mesma base de dados também permite analisar a desigualdade de patrimônio ou de riqueza. Nesse caso, houve até mesmo ligeira tendência de crescimento da concentração de renda, cujo nível já é quase 30% maior que a desigualdade de renda.
Temos agora um amplo conjunto de evidências de que não houve qualquer mudança no capitalismo brasileiro durante os anos dos governos do PT. Por qualquer critério, o país permaneceu um dos mais desiguais do mundo, seja medido pela renda, seja pela riqueza ou ainda pela propriedade da terra (ver item 1.5). Talvez seja a isso que André Singer se refere quando define os governos do PT como um “reformismo fraco” – o que interpretamos como defesa e justificativa teórica de que a “esquerda” reformista não pode ou não deve fazer nada que a burguesia não aceite. A formulação literária para esse conceito sociológico seria “tudo deve mudar para que tudo fique como está”…
1.9. Aumento da repressão, do encarceramento e fortalecimento militar nos governos do PT
“Os jogadores não são os únicos craques no Haiti. Vocês [exército brasileiro] também estão fazendo um gol de placa“.
“Não vamos mandar polícia apenas para bater. A polícia vai para lá bater em quem tem que bater”.
“Não vai ter baderna. … É a imagem do Brasil que estará em jogo. [Se necessário] vai chamar o Exército … Estamos tomando todas as providências. Não vamos ter problemas de segurança”.
Dilma a empresários, maio de 2014.
Os governos petistas não alteraram o alto patamar de violência que caracteriza o capitalismo no Brasil, cujas vítimas são as massas exploradas. Os índices de violência e criminalidade no país permaneceram elevados. Um exemplo é a taxa de homicídios. Nos governos do PT, a quantidade de assassinatos com armas de fogo por 100 mil habitantes passou de 26,1, em 2005, para 29,8, em 2014. Isso ocorreu porque o número de homicídios cresceu mais do que o aumento populacional, passando de 48,1 mil, em 2005, para 60,5 mil, em 2014 – quantidade anual que se manteve acima de 60 mil até 2018 (governo Temer).
Além da grande violência em todo o país, os anos 2010 foram marcados pelo maior ciclo de greves e protestos de rua desde os anos 1980, demonstrações de descontentamento das classes dominadas que ameaçaram por diversas vezes governos e setores do capital. As greves operárias nas obras do PAC, as manifestações de massa de 2013 e as resistências contra as obras dos megaeventos esportivos (Copa e Olimpíadas) foram exemplos desse ciclo.
Para reprimir esses altos índices de violência e criminalidade, assim como os protestos e explosões sociais, os governos do PT impulsionaram diversas ações e medidas repressivas para manter a ordem burguesa, sua tão sonhada “estabilidade”.
Lula e Dilma sancionaram leis que agravaram os marcos da ação repressiva do estado capitalista, com destaque para a Lei “Antidrogas” (Lei 11.343/2006) e a Lei “Antiterrorismo” (Lei 13.260/2016). A primeira criou uma distinção legal intencionalmente muito vaga entre usuário e traficantes de drogas que, na prática, levou à multiplicação de pessoas (pobres e negras) presas como traficantes no país. Já a segunda, uma dentre as várias mudanças legais decorrentes da repressão às manifestações de 2013, foi sancionada no final do governo Dilma para criminalizar atos comuns de revolta popular, como saque e depredação de lojas, bancos e ônibus como práticas terroristas, crimes de alta gravidade. Com essas duas medidas (entre outras), o PT deixou o aparelho repressivo de estado capitalista legalmente à vontade (como se fosse necessário!) para reprimir violentamente qualquer ação de explosão de massas e/ou revolucionária contra a burguesia e seu estado.
Outro avanço importante da repressão nos governos do PT foi o fomento e o aprimoramento prático das forças repressivas do estado, inclusive sob os novos marcos legais. Logo no início de seu governo, Lula criou uma nova polícia, a força nacional (Decreto 5.289/2004) que articula em nível federal policiais de elite de todo o país. Essa nova força policial nacional foi usada para reprimir greves e protestos nos anos e governos seguintes. A quantidade de Operações de Garantia da Lei e da Ordem (uso das forças armadas para missões de “segurança pública”) foi elevada, mantendo-se a média dos governos de FHC. Em 2014, o ministro da justiça de Dilma se vangloriava das conquistas do PT em relação à integração das forças repressivas:
“Hoje temos uma total integração na atuação. Temos em cada estado um Centro [Integrados de Comando e Controle] que é formado por secretário de Segurança Pública do Estado, superintendente e o comandante das Forças Armadas local. Isso faz com que as linhas de comando sejam respeitadas e que não sejam quebradas tendo um total compartilhamento de ações. Além disso, é importante destacar que dotamos os estados de centros de comando e controle móveis, entregues às policias locais e que serão operados pelas forças conjuntas federais e estaduais”.
A força nacional de Lula combatendo operários em nome do lucro da construtora Camargo Corrêa, Rondônia, 2012.
O aprimoramento das forças repressivas oficiais também ocorreu a partir de experiências no exterior, como no caso da participação brasileira na missão das nações unidas para a “estabilização” no Haiti (2004-2017). Cumprindo os interesses de potências imperialistas como os EUA, o Brasil foi o principal braço militar da missão, mobilizando dezenas de milhares de militares. Ao longo de 13 anos, a ocupação do Haiti foi comandada por generais brasileiros, quase todos com papel de destaque no governo Bolsonaro: Augusto Heleno (2004-2005); Santos Cruz (2007-2009); Floriano Peixoto Vieira Neto (2009-2010); Luiz Eduardo Ramos (2011-2012); Edson Pujol (2013-2014). As ações de repressão e controle no Haiti influenciaram abertamente ações internas, como as ocupações militares das favelas do Rio de Janeiro, autorizadas e estimuladas por Lula e seus aliados locais.
Os capacetes azuis no Haiti e seu comandante supremo. Os militares dessa operação de “paz” foram acusados de mais de 2 mil de estupros, inclusive de centenas de crianças.
As forças armadas também ampliaram sua presença política nos anos de Lula e Dilma. Segundo estudo acadêmico, em 2006, dos 818 cargos do ministério da defesa, 50% era ocupado por militares. Dez anos depois, dos 1.309 cargos, os militares, inclusive da ativa e predominantemente nas funções de maior hierarquia, eram 56%. Outro estudo aponta que em 2005 eram menos de mil militares cedidos para cargos civis em todo o governo federal. Em 2015, o número chegava a 1.783. A militarização da administração do estado, partindo dessa base, seria bastante intensificada nos governos seguintes.
Como uma das consequências desse novo patamar de repressão, houve uma explosão da população carcerária no Brasil. As cadeias e os presídios brasileiros, como é sabido, encarceram sobretudo a população pobre e negra em condições sub-humanas. Verdadeiros navios negreiros onde todo tipo de arbitrariedade do estado é permitida e, por isso mesmo, constituem uma ameaça permanente para as classes dominadas permanecerem “na linha”.
“Construiremos políticas que combatam e revertam … o superencarceramento”. Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil 2023-2026, junho de 2022, parágrafo 38.
Como qualquer governo burguês, o PT usou o aparelho repressivo de estado capitalista em prol dos interesses do conjunto das classes dominantes, contra as massas trabalhadoras. Através de diversas políticas, os governos petistas não só deixaram intocáveis instrumentos repressivos oficiais (forças armadas, polícias, sistema prisional etc.) e clandestinos (pistoleiros, esquadrões de morte, milicianos etc.) das classes dominantes, como também os aperfeiçoaram e/ou criaram novos. Afinal, garantir a “lei e a ordem”, em sintonia com os demais governos regionais e outros poderes, é algo fundamental para que a acumulação do capital ocorra sem maiores convulsões sociais – objetivo primordial do reformismo e do oportunismo.
Os governos do PT deram continuidade à violenta história do capitalismo no Brasil, recebendo nas mãos o porrete da gestão FHC e entregando-o, depois de muitos serviços à burguesia, às gestões de Temer e Bolsonaro. Não há nenhuma razão para acreditar que agora, com a companhia de Alckmin, Lula reverterá suas próprias ações (e de Dilma), que fortaleceram o aparelho repressivo brasileiro.
1.10. A desorganização das classes trabalhadoras durante os governos do PT
Além da repressão, os governos do PT atacaram de outras formas as lutas das massas em resistência contra a exploração e a opressão no Brasil. Como qualquer posição oportunista na luta de classes, o petismo também cumpriu um papel muito danoso, por anos a fio: o de desorganizador dessas massas trabalhadoras, iludindo-as com a institucionalidade do estado burguês e rebaixando-as politicamente a meros apêndices do aparelho sindical pelego ou à passividade eleitoral e, assim, enfraquecendo-as para a luta de classes, desarmando-as de sua posição política própria e independente.
Da mesma forma que o petismo “esconde” seu papel na ampliação da repressão, do encarceramento e fortalecimento do aparato repressivo e militar, ele também nega as consequências políticas nefastas de seus governos para os/as dominados/as. Ao contrário, vendem a tese de que, enquanto governavam, os movimentos sindical e popular tinham voz e vez. Inclusive com várias lideranças populares em cargos de governo, ampliação de recursos aos movimentos etc. No entanto, o que aconteceu de fato foi um esvaziamento ainda maior desses movimentos ligados ao PT e aos seus partidos-satélites enquanto espaços de luta e organização das massas exploradas, ao mesmo tempo em que sua burocracia e seus dirigentes ascendiam enquanto integrantes da gestão burguesa.
O caso do movimento sindical é exemplar. Nos governos do PT, o aparelho sindical viveu uma grande ampliação, os pelegos ganharam cargos e circularam livremente no governo. Um caso exemplar é o de Jair Meneguelli, fundador e ex-presidente da CUT de 1983 a 1994, e depois deputado federal, nomeado por Lula para presidente do Sesi de 2003 a 2015. Na sua nova vida de milionário, passou a frequentar sociedades de hipismo e negociar cavalos por R$ 100 mil. Uma verdadeira época de ouro… para a pelegada!
Enquanto isso, os sindicatos se tornaram cada vez menos instrumento de resistência e luta ao patronato e ao estado. Distanciaram-se das bases (quando não as enfrentaram) e ficaram ainda mais desacreditados. Em 2001, de acordo com o IBGE, havia 7,7 mil sindicatos de trabalhadores/as rurais e urbanos no Brasil. Em 2015, no final do período petista, a quantidade de sindicatos já ultrapassava 10 mil, segundo o DIEESE. Um crescimento de quase 30%. Várias centrais sindicais também foram criadas no período: NCST, UGT, CTB. O valor bilionário da contribuição sindical multiplicou. Sindicalistas foram convidados a se sentarem junto ao patronato e ao governo em vários fóruns e conselhos nacionais, assim como ocuparam importantes cargos comissionados. Possivelmente o maior deles foi Luiz Marinho. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em janeiro de 2003 defendia a “responsabilidade de trabalhar pela independência [dos trabalhadores diante do governo]. Nosso papel é o de representar os trabalhadores”. Dois anos depois, trocou a presidência da CUT pelo governo, obedecendo uma “convocação” de Lula, de quem passou a se dizer “soldado”.
Essa “institucionalização” e esse suposto crescimento do movimento sindical, como ocorreu de forma semelhante com outros movimentos, não significou mais mobilização, organização e conquista dos/as trabalhadores/as. Pelo contrário. Ao longo dos governos petistas, a já baixa taxa de filiação sindical (parcela dos trabalhadores/as com filiação em algum sindicato) caiu em todo o país, de 20% para 16%. Em 2015, segundo o IBGE, uma das principais razões para a não filiação era o desconhecimento, por parte do/a trabalhador/a, de seu sindicato, deixando claro o distanciamento de tais entidades das bases. Segundo o Ibope, a confiança nos sindicatos também caiu no período, chegando a 37%, em pleno auge dos protestos de massa e na explosão das greves do ciclo 2013-2016. Não à toa, várias dessas lutas ocorram por fora da estrutura sindical.
Vagner Freitas (CUT), Paulinho (Força Sindical) e outros pelegos reunidos com Dilma no Palácio do Planalto, em março de 2013, meses antes da explosão das manifestações contra o governo. Como dizia uma palavra de ordem comum em junho daquele ano: “não nos representam!”.
Enquanto a pelegada ficava no ar-condicionado nos palácios, iludindo sobre conciliação de classe, confiança no estado e na “democracia”, a peaozada amargava o aumento da exploração. Um exemplo foi no setor automobilístico, um dos berços da burocracia sindical petista. Os governos petistas marcam a fase de maior exploração do operariado desse setor. Até os anos 1990, cada operário/a não chegava a produzir um veículo por mês. A relação entre produção mensal e força de trabalho foi aumentando ao longo dos anos 2000, chegando ao pico em 2013, com cada operário/a produzindo cerca de três veículos por mês. Já os salários ficaram bem longe de triplicar. Pelo contrário, foram se aproximando do salário mínimo. Tudo para que os patrões lucrassem como nunca! E quando deixaram de lucrar tanto, com a crise, lá estavam os pelegos para fazer acordos “especiais”, cortando de forma “tripartite” na pele da peãozada.
Salário médio real dos/as trabalhadores/as em montadoras em comparação com o salário mínimo vigente oficial – 2003-2014
O setor automotivo no Brasil: Emprego, relações de trabalho e estratégias sindicais, de 2015.
Essa “era de ouro” da pelegagem acabou de forma relativamente rápida: já não havia nenhuma base para defender a gigantesca máquina cada vez mais governista. Após a histórica recessão de 2014-16, o impeachment de 2016 e a reforma trabalhista e sindical de 2017, os pelegos foram descartados da gestão do capital e perderam sua relevância (e recursos). Não por acaso estão em peso apoiando Lula-Alckmin e seus acenos em prol da burocracia sindical.
No quesito organização e força das massas, o saldo final dos governos petistas foi o que estamos vendo nesses últimos anos no país: crise no movimento sindical e popular, baixíssima adesão das bases, fragmentação das lutas, desilusão e descrédito com vários movimentos. Tudo isso piorado com a explosão das crises econômicas, do desemprego e a pandemia. Esse recuo na organização popular, com a contribuição direta do petismo, foi significativamente responsável pelo retorno da extrema-direita e pelo avanço do fascismo entre as massas – que experimentaram por mais de uma década um governo que se dizia de “esquerda”, sindicalista e dos/as trabalhadores/as e se revelou ser nada mais que um podre governo burguês como qualquer outro.
- A chapa Lula-Alckmin: a aliança PT/“PSDB” como continuidade das alianças do PT com a burguesia
“[As] duas décadas ditas ‘fabulosas’, que começa em 94 e termina em 14: para mim é um bloco só. Um bloco só, tanto faz. Essa divisão neoliberais [e] desenvolvimentistas, é uma ficção. Ela é real para termos eleitorais e programáticos pontuais, mas ela é um bloco só”.
Paulo Arantes, junho de 2020 (a partir de 36:30).
Como negar a continuidade entre os governos do PSDB e os do PT, um “consórcio” que se alternou na disputa e na gestão do estado capitalista brasileiro por 20 anos? Houve continuidade entre Pedro Malan e Antônio Palocci (ou “Malocci” para os íntimos), da mesma forma que entre Armínio Fraga e Henrique Meirelles, ambos funcionários do capital financeiro internacional – embora Lula tenha chamado a indicação do primeiro de “subordinação total, concreta do país à agiotagem internacional”, enquanto mandou Mercadante a Washington convidar o segundo para substituir o primeiro. Como negar a continuidade entre as privatizações de FHC (que os governos do PT consolidaram) e as “concessões” petistas? Como negar a continuidade da fisiologia de ambos os governos na gestão do “presidencialismo de coalizão” ou do “peemedebismo” junto ao centrão, expressão máxima da política burguesa nacional e seus coronéis regionais? Agora, na campanha de 2022, foi dado apenas um passo à frente, o consórcio foi oficializado, institucionalmente formalizado com a aliança Lula-Alckmin. Como diz um analista de “esquerda”, essa chapa significa que “partidos do mesmo campo ideológico devem trabalhar juntos … [para fazer uma] revolução republicana”. Concordamos inteiramente com a definição que PT e PSDB estão no “mesmo campo ideológico”. Já “revolução republicana” (sic!) é um delírio do reformismo e do oportunismo de pequeno burguês.
Alckmin é um conservador religioso de direita, formado na Opus Dei, que foi fundador do PSDB, em 1988, além de também ter sido presidente paulista e nacional dos tucanos. Em São Paulo, comandou o programa de privatização do PSDB (primeiro, sob Covas, depois por conta própria, quando colocou a Sabesp para ser negociada na bolsa de Nova Iorque e privatizou a Cesp) e foi governador por 14 anos, entre 2001 e 2018. Como governador, deu a palavra final autorizando o massacre do Pinheirinho, em 2012; foi o responsável pela repressão às manifestações paulistas de junho de 2013; pela repressão às ocupações de escolas pela juventude secundarista, em 2015, causada por sua “política” educacional (sic!); além de diversas chacinas policiais. Como resultado, a quantidade de assassinatos cometidos pela polícia paulista bateu recorde em 2017, chegando a quase mil homicídios.
O oportunismo petista, no entanto, está longe de ter sido inaugurado com essa aliança com a posição burguesa de direita repressora representada por Alckmin. Para o PT, essa é apenas mais uma de suas infinitas alianças eleitorais e programáticas com a burguesia e seus representantes políticos, caciques nacionais e regionais. Nas eleições de 2002, aquela da “carta ao povo brasileiro” (sic!), na qual Lula “beijou a cruz” (para citar novamente Paulo Arantes) dos interesses do capital financeiro, seu vice-presidente foi José Alencar, um dos maiores capitalistas do setor têxtil do país, com fábricas no Brasil e no exterior. Nas eleições de 2010 o PT trocou um burguês por um representante político da burguesia, Michel Temer. Agora, em 2022, trocaram o representante, mantendo o mesmo caráter conservador e de direita.
Mas as alianças presidenciais do PT com a burguesia, seja diretamente ou via seus representantes, são apenas uma parte da história do seu oportunismo eleitoreiro. O PT nacional já interveio no diretório do Maranhão para impor a aliança com a filha do Sarney, Roseana, em 2010 e apoiou o MDB do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) ao Pará (Jáder Barbalho), passando pelo Ceará (Eunício Oliveira) e Alagoas (Renan Calheiros e Collor) e muitos outros. Um destaque especial foi o beija-mão de Lula para Maluf, na mansão do corrupto burguês (com o perdão do pleonasmo!), em acordão para eleger Haddad prefeito de São Paulo em 2012. Como dissemos, a lista é interminável…
Acordão Lula-Maluf nas eleições para a prefeitura de São Paulo de 2012.
Depois de toda essa trajetória do cretinismo eleitoreiro do PT, chegamos à aliança com o conservador de direita Alckmin para as eleições presidenciais de 2022. Mas as alianças com a burguesia e os políticos burgueses não terminam aí. Nos bastidores, como é próprio dos conchavos e dos acordões, Lula vem articulando intensamente, com maior ou menor sucesso, acordos eleitoreiros para o primeiro ou segundo turnos e, ainda, para sua “governabilidade” futura. As fotos abaixo trazem um pequeno vislumbre disso. Desde o ano passado, Lula reúne frequentemente com FHC, Sarney, Kassab e Rodrigo Maia, Renan e Eunício, e toda a corja.
Preparando os acordos de bastidores para a campanha e o futuro governo. Lula encontra FHC, Sarney e Kassab. Todas as fotos são de maio de 2021.
Realmente alguém acha que essa é a cambada que vai “mudar o Brasil”? Ou refazendo a questão em termos marxistas-leninistas mais rigorosos: seriam esses os defensores dos interesses da classe operária e das massas trabalhadoras na sua luta de classes contra a burguesia e o seu estado? Obviamente, a resposta é não! Por que, então, os/as trabalhadores/as do campo e da cidade, o proletariado, iriam trocar sua própria e independente organização e luta pelo apoio eleitoral passivo àqueles que defendem os interesses de classe dos capitalistas, dos exploradores e dos repressores?
E os conchavos e os acordões de Lula e do PT não pararam por aí. Além dessas alianças eleitoreiras com políticos que representam os interesses de classe da burguesia, Lula tem feito seguidos encontros com os próprios capitalistas e suas associações de classe, para assegurar – mais uma vez, como se necessário fosse – que ele não fará nada que possa contrariá-los. Uma lista dos principais burgueses com quem Lula está se articulando inclui Itaú, Bradesco, Santander, XP Investimentos, Magazine Luiza, 3G Capital e Natura. Além desses, até mesmo a “presidente da centenária Sociedade Rural Brasileira, Teresa Vendramini” já jantou com Lula. Por falar em jantares, o “esforço do Lula é claríssimo. Ele teve uns três jantares de empresários em Minas Gerais com o Walfrido (Mares Guia, ex-ministro do governo Lula). Teve (em outro encontro de empresários) com Cláudio Haddad (fundador do Insper), dois com Seripieri Júnior (dono da operadora Qsaúde)”.
Conseguimos levantar apenas uma pequena lista desses encontros, que obviamente está longe de ser completa, não apenas por não ter os encontros a portas fechadas, mas, principalmente, por não constituírem retrato fiel do que foi conversado, negociado, acordado. Em 28 de junho, jantar com o grupo capitalista Esfera, com quem Haddad reúne regularmente desde o ano passado, e que tem como membros quase 50 grandes capitalistas, entre eles Bradesco, BTG Pactual, XP Investimentos, Cosan, MRV Engenharia, Multiplan, Hapvida e Mercado Bitcoin. Em seguida, em 5 de julho, almoço com banqueiros e empresários na Fiesp, com o presidente do Ciesp, e um representante do conselho superior do agronegócio da Fiesp, além de Itaú, Bradesco, Ambev, Magazine Luiza, Iochpe, Google. Já em 28 de julho, Lula foi para evento na Confederação Nacional dos Transportes (CNT).
Em 9 de agosto Lula voltou para a Fiesp, para o encontro dos capitães da indústria com o presidenciável. No dia seguinte, 10 de agosto, foi a vez dos patrões do varejo, o Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV). Lula passou mal e foi representado por Alckmin e Mercadante junto a cerca de 50 patrões. Ainda em agosto, no dia 23, reunião com as associações de classe patronais da construção civil, Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis (Secovi), Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) e Federação Internacional Imobiliária (Fiabci-Brasil). Na lista entram também “dois encontros reservados” com um dos bilionários do agronegócio, o dono da Cosan e da Raizen. Ainda na lista dos “encontros reservados”, em 6 de setembro, na casa do advogado Walfrido Warde, com CSN, Alstom, Siemens, Qsaúde e Iochpe.
Ainda sobre o agronegócio, Lula afirmou em 25 de agosto que parte do “agronegócio, sabe, que é fascista e direitista”, enquanto a outra parte seria de “empresários sérios … que têm um comércio com o exterior, que exportam para a Europa, para a China, não querem desmatar”. Ou seja, para Lula há patrões bons e patrões ruins. Para o proletariado e os/as comunistas, todos os patrões, sem exceção, são exploradores da força de trabalho alheia. E ainda que “Bolsonaro está ganhando alguns fazendeiros porque está liberando arma. Tem gente que acha que é bom ter arma em casa, que acha que é bom matar alguém”.
Não passou nem um mês e Lula desdisse o que havia dito, agora numa entrevista ao Canal Rural, em 21 de setembro. Por um lado, disse que não estava generalizando e que no agronegócio “tem gente que tem discurso altamente democrático”. Quanto às armas, defendeu que “Ninguém vai proibir que um dono de uma fazenda tenha uma arma, tenha duas armas”. Mas o auge do seu reformismo e oportunismo foi garantir a tranquilidade para os latifundiários: “Se o cidadão invadir uma terra produtiva, pode ficar certo de que a Justiça vai tirá-lo … O país precisa de ordem e de tranquilidade para poder seguir em frente”. E arremata: “O comportamento dos Sem-Terra hoje é muito diferente, muito mais maduro. E eles hoje viraram um setor altamente produtivo. […] Teve poucos momentos na história do Brasil em que o campo teve a tranquilidade que teve no meu governo”. “Ordem e tranquilidade” são as palavras de ordem de Lula para os movimentos sociais reformistas e oportunistas do campo! Eis o exemplo cabal da subordinação das massas ao capital na visão petista.
Depois de ter feito conchavos diversos com os políticos burgueses e aceitado o programa diretamente das associações patronais e dos capitalistas pessoalmente, faltava só o imperialismo dos EUA. Isso foi resolvido no próprio 21 de setembro, quando Lula se encontrou com a principal autoridade do governo dos EUA no Brasil. A imprensa petista entrou em êxtase. Na véspera, tanto a Carta Capital quanto a Revista Fórum exaltavam a defesa da democracia e do sistema eleitoral brasileiro que estão sendo feitos pelos EUA. Sem relato oficial da reunião, os vazamentos de imprensa mostram que o roteiro foi seguido. Três dias depois, os EUA anunciaram que vão reconhecer o resultado das eleições no país. Quanto aos compromissos reais de Lula com o imperialismo dos EUA, eles permanecem secretos e só poderemos deduzi-los a partir da análise de suas ações e medidas concretas.
Por outro lado, o que dizer da dimensão “popular” (sic!) da chapa Lula-Alckmin? Novamente, apenas a hipocrisia e as ilusões do reformismo e do oportunismo. No começo de fevereiro, o PT lançou sua “nova forma de organização” (sic!), que seria feita a partir de Comitês Populares. Mais do que comitês eleitorais, seriam “embriões de organização popular”. Ainda em fevereiro, foi seguido pela CUT nessa empulhação. O MST também estava empenhado no engodo. De acordo com o ilusionismo petista, seriam 5 mil comitês no país. O que aconteceu na realidade? Nada, como não poderia deixar de ser em um partido oportunista, institucional e eleitoreiro. Como afirmou o petista Rudá Ricci em 31 de agosto (a partir de 34:25): “Até aqui tá sendo a campanha com menor mobilização de base da militância e da esquerda na campanha … Veja o caso dos comitês de campanha. Foram anunciados 5 mil comitês. O que tem de diretório municipal do PT que liga para mim e fala ‘e os comitês’?”. É assim que se pretende vencer o fascismo, com um voto e o apoio da burguesia brasileira?
É preciso fazer uma análise marxista-leninista, de classe, tanto sobre os anteriores governos petistas, quanto sobre suas alianças eleitorais e sobre a campanha, para avaliar concreta e criticamente as perspectivas de um eventual novo governo Lula. Do que já vimos até agora, sabemos que as posições em torno de uma “frente ampla democrática” têm sido puxadas pela burguesia e pela pequena burguesia. Foram os patrões que assinaram o manifesto dos trabalhadores ou o contrário? A CUT e outras que seguiram, obedientes, a Fiesp. Qual o programa dessas frentes, além de uma defesa formal da democracia burguesa? Nada! Qual sua mobilização efetiva, além do ato de 11 de agosto com 7,6 mil pessoas? Nenhuma! Qual o balanço da mobilização de “esquerda” de 10 de setembro? Muito fraca, quase insignificante em relação à manifestação da extrema-direita, fascista, de três dias antes. Além disso, vimos os compromissos de Lula com a burguesia, como veremos a seguir isso expresso no seu “programa”, e a ausência de massas na campanha.
Como dizia o Che, para quem tem “olhos para ver, ouvidos para ouvir, língua própria para falar”, trata-se de mais uma chapa burguesa, em uma eleição burguesa, para consolidar os avanços do programa hegemônico da ofensiva de classe da burguesia em curso. Quem quiser que se engane com a empulhação perpétua de um “governo em disputa” entre as classes dominantes e as classes dominadas…
- As “diretrizes para um programa”, ou “me engana que eu gosto”…
Até 10 de agosto, a chapa Lula-Alckmin deveria ter apresentado ao TSE aquela enganação que toda a candidatura burguesa faz para cumprir as formalidades eleitorais, formalizar seu “programa de governo”. Não apenas não fez, como não fará, para não atrapalhar suas alianças eleitorais (já vimos com quem no item anterior). “Programa”, se houver, apenas depois (!?) da vitória eleitoral. O que existe são apenas “diretrizes”, que tiveram duas versões divulgadas no mês de junho. A reação negativa de Alckmin, da Força Sindical e da burguesia a trechos da primeira forçou a divulgação da segunda.
Essas “diretrizes” em geral são meras declarações de intenções, justaposições de inúmeros “direitos” e propostas abstratas e genéricas, deixando claro sua hipocrisia e a inutilidade de se levar a sério esse “programa” (sic!). Mas talvez ainda mais hipócrita que o PT tenha sido o PSol, ao propor fazer aliança “programática” (sic!) com Lula, quando se tratava de simples adesismo e cálculo eleitoreiro. A proposta do PSOL para Lula era de uma “frente eleitoral das esquerdas”. Acabou engolindo lula com chuchu. Seus “compromissos programáticos” tinham como “centro a reversão das reformas implementadas desde o golpe de 2016”. Isso não passou da primeira versão das “diretrizes”… O pior é a divulgação pelo PSol dos avanços nas “negociações entre PSOL e PT para programa de governo”. Segundo esse delírio, o PT teria se comprometido com a “revogação da reforma trabalhista”, a “reduzir a jornada de trabalho sem reduzir salários”, com “reforma agrária agroecológica e reforma urbana já!”, com a “democratização da comunicação” etc. A velhinha de Taubaté precisa ser ressuscitada! Além disso, quando o PSol fala em “interromper medidas de privatização” ou de “retomada do controle público da Petrobras”, está indiretamente falando em consolidar o desmembramento feito no governo Bolsonaro, com a privatização da BR Distribuidora, da TAG etc. Tanto quanto o PT, o PSol e o restante da “esquerda” reformista representam, objetiva e subjetivamente, a busca incessante de enganar a classe operária e a massa trabalhadora, iludi-la com seus acordos e conchavos, desorganizá-la em relação à luta pelos seus próprios interesses, substituindo sua organização e luta pelas ilusões do cretinismo eleitoral. Os/as comunistas precisam criticar diretamente e sem meias palavras o oportunismo e o reformismo!
A avaliação das “diretrizes”, com todas essas críticas, pode ter algum valor analítico ao mostrar os limites do “reformismo fraco”, o teto das propostas do PT. Assim, é relevante fazer uma análise crítica delas, ainda que sumária. Começando com a “reforma trabalhista”, a redação passou da hipócrita e mentirosa afirmação de que “defendemos a revogação da reforma trabalhista feita no governo Temer” (1ª versão), para “revogando os marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma” (2ª versão), da qual se depreende que, na avaliação do PT, houve coisas boas na “reforma” (sic!) de Temer! Na nossa avaliação, as intenções do PT são as de revisar alguns poucos temas mais regressivos e pontuais, “justificando” essas diretrizes; buscar alguma pequena formalização para trabalhadores/as de aplicativos (processo já em curso, fruto da luta da categoria); e, fundamentalmente, tratar dos temas sindicais, como o incentivo do negociado sobrepujar o legislado – que nas diretrizes aparece como formas de “negociações coletivas” e “solução ágil dos conflitos” – e, especialmente, retomar o financiamento do aparelho sindical pelego: “serão respeitadas também as decisões de financiamento solidário e democrático da estrutura sindical”.
Sobre política econômica, as diretrizes explicitam uma postura tão (ou mais) burguesa quanto a do próprio governo Lula, praticamente retomando a carta ao povo brasileiro de 2002, ao falar em “ambiente de estabilidade política, econômica e institucional que proporcione confiança e segurança aos investimentos que interessam ao desenvolvimento do país”. Quanto ao banco central, as diretrizes estão inteiramente alinhadas à lei de independência da autarquia, proposta por Bolsonaro e Guedes, ao falar de controle da inflação e de geração de emprego (parágrafo 47). Nesse sentido também são declarações de que “Lula pediu que a questão da autonomia [do banco central] ficasse fora do programa para mostrar que qualquer mudança está fora de cogitação”; da presidente do PT sobre a permanência de Roberto Campos Neto no banco central no governo Lula; e do ex-ministro da fazenda de Lula e Dilma, Guido Mantega, de que o “Banco Central de agora está tendo um desempenho melhor do que na nossa época”.
Sobre o teto de gastos, Lula se aproveita do fato de que o mesmo já foi rompido inúmeras vezes por Bolsonaro, de que Guedes já defendeu publicamente sua revisão, em 2021, e de que o ministério da economia está elaborando proposta nesse sentido. Assim, a proposta das diretrizes de “revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal brasileiro, atualmente disfuncional e sem credibilidade” é praticamente chutar cachorro morto. A diferença é que Lula se apressa em defender a criação de um “novo regime fiscal, que disponha de credibilidade, previsibilidade e sustentabilidade”! Como vimos no item 1.2, Lula obteve os maiores superávits primários da história. E já tem economistas do PT trabalhando na nova regra fiscal. Também aqui não parece haver nada de novo sob o sol.
Sobre um tema crucial como a reforma da previdência, apenas uma promessa de “financiamento sustentável”, revogar a de Bolsonaro, nem pensar! Como diz o PSol, esse (e outros pontos) “não foram consensuais”. Porém é mais que isso. Não apenas tanto Lula quanto Dilma fizeram reformas da previdência (a de 2003 está na própria origem do PSol), quanto os governadores do PT também fizeram, e alinhadas com a de Bolsonaro (vejam matérias sobre as do Piaui e Ceará).
Sobre privatizações e concessões, há um embuste importante a desvendar. Claro que as diretrizes se posicionam contra a privatização da Petrobras, da Eletrobrás (as diretrizes ficaram defasadas com a privatização da Eletrobras no próprio mês de junho) e dos Correios. Mas, por um lado, não há nenhuma menção à revogação de privatizações ou a reestatizações. Isso significa que um futuro governo Lula terá o papel de consolidar a nova atuação privada dos setores privatizados, reforçando esses novos espaços de acumulação privada do capital. Essa é uma função historicamente desempenhada pelos governos do PT: consolidar os avanços da ofensiva de classe da burguesia em períodos anteriores (além de manter esse avanço, é claro). Por outro, o investimento privado também será estimulado pelo PT com “créditos, concessões, parcerias e garantias”. Importante lembrar que concessões, no caso, consistem em uma maneira alternativa de passar ao capital privado setores de atuação estatal, como uma espécie de privatização disfarçada.
Quanto à produção de commodities para exportação, sejam agropecuárias ou minerais, e para o conjunto do agronegócio, a mistificação das diretrizes é a busca de maior valor agregado: “agregar valor … uma agroindústria de primeira … fomentando o desenvolvimento do complexo agroindustrial” e “atividade minerária deve ser estimulada por meio de maiores encadeamentos industriais internos”. Como essas atividades dependem de fatores externos, da demanda chinesa, e da posição dominada do país no sistema imperialista mundial, o que o PT afirma, na verdade, é a continuidade do apoio total à acumulação capitalista nesses setores, “estratégico[s] para a nossa balança comercial”.
Quanto à pauta repressiva, Lula e o PT por um lado, “esquecem” as políticas que adotaram em seus governos (e que analisamos no item 1.9) e se posicionam contra o “superencarceramento” que eles próprios ajudaram a consolidar e contra a “política anti-drogas”, fruto de lei assinada por Lula.
O petista Rudá Ricci sintetizou bem a “confiança” da “esquerda” reformista num futuro governo petista: “meu medo é novamente a coordenação da política econômica ficar com a burguesia num governo Lula, esse é meu medo, entende? Como foi da outra vez, banco central, ministério da fazenda, agora da economia, o caso do ministério da agricultura… é isso que me preocupa” (a partir de 33:30). Da mesma forma que os “economistas do PT” avaliam como “muito preocupante” o apoio de Meirelles à chapa Lula-Alckmin, pois Lula “quer participação de Meirelles em eventual governo”.
Em suma, os governos anteriores do PT, as alianças realizadas atualmente e as diretrizes para seu futuro governo apontam para a continuidade, com ajustes pontuais e aprimoramentos, do programa hegemônico da burguesia, principalmente a consolidação dos avanços que a burguesia já conquistou com sua ofensiva de classe. Um governo Lula-Alckmin será um governo burguês contra o proletariado e as massas exploradas do país.
- A esquerda reage! Posições críticas ao eleitoralismo a às ilusões de Lula-Alckmin
A adesão às eleições burguesas deste ano no Brasil e à política cada vez mais recuada e podre do petismo encontra certa resistência entre grupos e organizações de esquerda. A centralidade do jogo eleitoral e institucional, o fomento às amorfas frentes eleitoreiras e o apoio à chapa Lula-Alckmin não têm sido unânimes no campo que combate a política fascista do bolsonarismo e resistem à recente piora nas condições de vida. Manifestos e intervenções críticos ao eleitoralismo reinante na esquerda têm aparecido nas últimas semanas. Vários deles enxergam, uns mais, outros menos, os riscos da adesão às eleições burguesas e à chapa Lula-Alckmin e demais frentes amplíssimas para o avanço da luta proletária e do campo revolucionário hoje no Brasil.
A análise e a divulgação de tais iniciativas são fundamentais, pois demonstram que ainda há grupos que resistem à atual onda oportunista e tentam firmar a bandeira vermelha da revolução, a única que conduzirá para fora desse momento tão adverso às massas exploradas em nosso país. São grupos pequenos em seu tamanho e influência, possuem importantes diferenças e várias dificuldades para atingir um caráter de massa. Mas hoje são os únicos que mais se aproximam da posição do proletariado na luta de classes, realizam a crítica sem trégua às alas burguesas em nossas fileiras e, assim, colaboram para o real combate colocado pela conjuntura: a luta concreta contra a ofensiva burguesa, em suas várias formas (da reformista à fascista), a partir da reorganização do proletariado e demais explorados/as.
Como a história dos explorados nos mostra, a posição revolucionária, comunista, na luta de classes só existe se não cedermos aos cantos de sereia do oportunismo e do reformismo e buscarmos, em todos os momentos, o caminho da independência de classe. Ceder a eles é ceder à burguesia, ferir de morte a possibilidade de construção da revolução. Por isso, nós, do Cem Flores, nos colocamos firmemente juntos a essas posições e grupos contrários ao atual eleitoralismo, mesmo que não abdiquemos da crítica franca e aberta quando necessário.
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O Centro de Estudos Victor Meyer (CVM) tem realizado importantes críticas aos impactos do eleitoralismo na luta operária hoje e ao próprio programa de Lula-Alckmin. Segundo o CVM, o aparelho sindical está paralisado nesse ano, em plena explosão da carestia de vida, ao tentar “forjar uma unidade de propósitos em torno da campanha eleitoral, centrada no apoio à candidatura de Lula à presidência da República”. A recente Conferência da “Classe Trabalhadora” (melhor seria “burocracia sindical”) demonstra mais esse recuo eleitoreiro das centrais sindicais, enquanto importantes lutas ocorreram em vários locais do país, como a batalha na CSN.
Em contraponto às posições dominantes do movimento sindical, e diríamos em todo o movimento popular, o CVM defende a retomada das greves e a unificação das lutas. “O centro da atuação precisa estar na constante organização voltada para aproveitar as possibilidades de unificação das lutas”, inclusive para barrar as ameaças políticas do campo bolsonarista. Isso porque, e concordamos firmemente, são os/as trabalhadores/as concretamente em luta, mobilizados/as, a única força capaz de barrar toda a regressão e ofensiva do inimigo.
Quanto ao programa de Lula-Alckmin, o CVM acerta ao dizer que ele não ousa “tocar minimamente no domínio econômico e social da burguesia, estando muito longe de solucionar os graves problemas sociais que os brasileiros vivem hoje”. Também não é capaz “de mobilizar os trabalhadores, nem muito menos de organizá-los para a luta em defesa de seus interesses imediatos e futuros”.
Concordamos, por fim, com o CVM quando aponta o seguinte desafio: “o problema político imediato mais relevante para os trabalhadores – o desafio a ser enfrentado pelas forças mais conscientes e combativas em termos de posição de classe – consiste no eleitoralismo e na defesa da democracia burguesa, dominante no movimento sindical”. Desviar-se desse problema é abandonar a posição proletária na luta de classes.
A Unidade Preta Comunista (UPC), que participou conosco em live sobre as eleições no Comboio Suburbano, publicou recentemente sua posição no site Griots Vermelhos. A UPC deixa claro quais as funções do estado e dos governos nas sociedades divididas em classes: o de manter as classes exploradas em seu lugar dominado. Melhorias parciais de um ou outro governo não só não são capazes de resolver os problemas das massas como também normalmente são revertidas. Por essas razões, a UPC afirma que “propostas de lutas por dentro das instituições do Estado inimigo devem ser rechaçadas por toda a classe trabalhadora, sobretudo por nós, a maioria preta”.
“No lugar de permitir sermos tragados e distraídos pelas eleições, devemos superar a inércia e o individualismo, nos organizarmos e partirmos para a ação coletiva por onde quer que se realizem as relações de produção e reprodução dessa nossa vida sob as rédeas do capitalismo, seja nos espaços de moradia, estudo ou trabalho”. Eis uma posição política que achamos muito correta e coerente aos/às comunistas na atual conjuntura.
As críticas ao eleitoralismo e à chapa Lula-Alckmin também têm surgido em manifestos em defesa do voto nulo ou em recusa às eleições burguesas. Na atual conjuntura, é relevante o fato de tais manifestos realizarem denúncias corretas ao processo eleitoral e suas chapas, assim como apontarem para o caminho da luta.
“Esse outubro não é nosso! Vote Nulo!” é um desses recentes manifestos de um conjunto amplo de coletivos, canais, organizações e pessoas. Radio Pião, Coletivo Veredas, Organização Política Proletária, Revista e TV “A Comuna”; Comboio Suburbano; A Toupeira; Fronteira Vermelha; Coletivo Marxismo e Revolução; Comitê Intercidades; Coletivo Editorial Boletim Batalhar; Pensamento Radical Libertário; Coletivo Anarquista Vale do Sinos; Coletivo Ação Direta; Movimento Passe Livre; Resistência Popular Estudantil de Marília; Mário Maestri; Sérgio Lessa; Ivo Tonet; Cristiana Paniago; Emiliano Aquino; José Cláudio Lemos; Jean Paulo Pereira; Prof. Wagner Sant’ana, Centro Cultural professor Tonhão, Agrupamento 18 de março, Comunistas e Anarquistas independentes são seus signatários até o momento. Tal manifesto afirma a primazia da luta sobre as disputas institucionais; critica as ilusões com o Estado e o desenvolvimento capitalistas; conclui, por fim, que não há solução de fato para as massas sem a ruptura com a sociedade atual, resgatando o objetivo de “uma sociedade em que os próprios trabalhadores organizem a produção e a distribuição da riqueza e que decidam o que deve ser produzido e como deve ser produzido”. Posições que achamos fundamentais, a serem desenvolvidas e aplicadas concretamente nas lutas.
Outros signatários deste manifesto têm realizado intervenções públicas sobre a conjuntura eleitoral. O Coletivo Veredas, em seu site, emitiu um conjunto de debates e análises sobre as semelhanças entre as candidaturas do capital, a falência da esquerda eleitoreira e o descontentamento dos/as trabalhadores/as, buscando uma linha política independente e proletária, longe das frentes reformistas. Em publicação de agosto, por exemplo, diz: “falta, contudo, que os revolucionários auxiliem a elevação dessa percepção generalizada (contra a política burguesa) da população a um nível superior de consciência. É preciso e possível aproveitar esse desenvolvimento espontâneo de amplas camadas da população para demonstrar a verdade de que a política, bem como o Estado, apenas servem para nos oprimir. […] Está na hora de defendermos abertamente que apenas quando os operários em aliança com os trabalhadores comandarem este país, aquele que trabalha poderá viver em paz”. Em outra análise de conjuntura de setembro, do Agrupamento 18 de março, O que temos pela frente?, reforça que a questão fundamental do campo revolucionário é “acumular forças para que os trabalhadores e operários possam atravessar este difícil momento com algum ganho de organização e de consciência”. Ganho que Lula/Alckmin, obviamente, não podem oferecer.
Em coluna no site A Terra é Redonda, Mário Maestri, destaca suas razões para não apostar na chapa Lula-Alckmin no combate ao fascismo: “votar em Lula não é o meio de barrar Jair Bolsonaro, a extrema direita e, sobretudo, o golpismo. […] Constitui rendição estratégica ao grande capital e ao imperialismo e renúncia, agora e depois das eleições, à luta pela autonomia do mundo do trabalho”. Achamos infundadas diversas de suas posições e análises sobre a conjuntura política nacional dos últimos anos, tais como: “o golpe de 2016 foi salto de qualidade no assalto do capital internacional ao Brasil”. Contudo, a coluna acerta, a nosso ver, ao criticar abertamente os serviços do PT à recente ofensiva da classe burguesa.
O Comitê Enlace, que reúne o Comitê Intercidades, Comitê de Luta Operária e Transição Socialista lançou outro manifesto pelo voto nulo, só que no segundo turno. No manifesto, há uma reflexão sobre as consequências do persistente apoio eleitoral “crítico” ao PT, prática comum a diversas organizações ao longo de vários anos, “sobre a organização da classe trabalhadora e a construção de alternativas revolucionárias”. De forma muito correta, o Comitê Enlace demonstra o papel nefasto do PT desde as greves operárias do final da ditadura militar. O chamado “novo sindicalismo”, que depois virou a CUT e o PT, era uma corrente anticomunista, contra as experiências operárias mais avançadas do período e “favorável à submissão dos operários à estrutura sindical usual, tutelada pelo Estado”. O PT, historicamente, “cumpriu o papel de desviar as lutas proletárias independentes para o campo burocrático/parlamentar, enterrando greves e combatendo a ascensão de organizações revolucionárias”. Como bem lembram, nos governos petistas “a miséria e a exploração capitalistas não desaparecem”. Não faz nenhum sentido apoiar esse tipo de gente, nem “criticamente”, e sim combater com a maior criticidade possível!
Mas há uma subestimação muito séria do inimigo por parte do Comitê Enlace: “para além de todo o seu discurso repugnante, Bolsonaro é um frágil e instável acidente da história”. Ou afirmações infundadas como: “a verdade é que os bate-paus da burocracia sindical, cutista e afins, são ainda hoje mais perigosos para a vanguarda da classe trabalhadora do que os isolados e desclassificados apoiadores de Bolsonaro”. As manifestações de setembro, que convocaram as massas de apoiadores bolsonaristas, de um lado, e o minguado aparato dos pelegos, de outro, demonstram o contrário.
Por fim, temos forte concordância quando afirmam que “o voto no PT não é mero voto. Quando se vota hoje nesse partido, chancela-se um caminho, uma história, um programa. Bloqueia-se outra vez a possibilidade de criação do poder autônomo dos operários nos locais de trabalho”.
O Movimento Marxista 5 de Maio (MM5) tem ressaltado a seriedade da conjuntura política nacional, diante do processo de fascistização e golpismo liderado por Bolsonaro, e a incapacidade do campo reformista de combater tal ofensiva. Apesar de nossa divergência com a análise da correlação de forças presentes na conjuntura, o MM5 denuncia o engodo das frentes “democráticas”, “frentes eleitoreiras todas elas plantadas no chão do tal estado democrático de direito, na verdade um traiçoeiro canto da sereia capitalista, reacionário portanto, entoado a várias vozes, de acordo com a ocasião”. Em contraposição, defende uma Frente Antifascista de fato, “uma opção verdadeiramente proletária, revolucionária, à atual crise de dominação política da burguesia”, isso “ou mais uma vez o proletariado será feito de massa por manobras de fascistas e/ou democratas”.
Segundo o MM5, “a uma esquerda marxista leninista cabe manter a linha de acumulação de forças”, sem ilusões institucionais, “intensificando o trabalho de organização e propaganda nos setores do proletariado a que temos acesso e mesmo de criar estes acessos”. Corretamente, lembram que “é preciso manter a qualquer preço o essencial da linha marxista leninista: a independência do proletariado frente à burguesia e à pequena burguesia”.
O Coletivo Base em Movimento se soma as denúncias das ilusões com o Estado e as eleições de 2022. No texto “Bolsonaro e Lula: candidatos a serviço do grande capital”, o coletivo não subestima a gravidade que significa a política de Bolsonaro, mas isso não diminui o erro político que é “fazer aliança com uma chapa de conteúdo burguês e com setores de direita para combater uma chapa de extrema-direita”.
A organização Revolução Brasileira também soltou uma resolução política na qual se nega a alimentar a ilusão propagada pela “esquerda liberal” com o “petucanismo”, conclamando assim pelo voto nulo. No entanto, na resolução, há uma frustração (portanto, havia antes uma expectativa) com Lula e o restante da esquerda institucional, pois eles não enfrentam a ofensiva burguesa em curso, ou não se mostram alternativa a ela. Lula não só está ausente das manifestações recentes, como se diz na resolução: as sabota abertamente. Pois essa é sua função: empurrar toda contestação para o caminho eleitoreiro, impedir as lutas. Não podemos gerar qualquer expectativa com essa canalha! Já em relação às outras candidaturas da esquerda, que em sua maioria se curvará para o “petucanismo” no provável segundo turno, não são alternativas meramente pelas “intransponíveis limitações legais do sistema de financiamento e toda a legislação eleitoral”, mas sim por sua linha política sempre iludida com a democracia burguesa, a possibilidade de gestão do estado capitalista e a mera disputa pelos espaços institucionais.
Um dos manifestos contra o processo eleitoral burguês é o defendido pela CCT – Célula Comunista de Trabalhadores e URC – União da Reconstrução Comunista, na última edição do jornal Rumos da Luta. Em Pela Revolução Brasileira: contra a farsa eleitoral, os coletivos partem da conjuntura de ofensiva da burguesia. Segundo eles, essa ofensiva é auxiliada pelos ditos partidos de esquerda e pelos pelegos, inclusive porque a resistência das massas “tem sido sistematicamente desarticulada pela esquerda da ordem, que esvazia o potencial combativo das lutas, encaminhando-as para os parlamentos e submetendo-as ao calendário eleitoral burguês”. A CCT e a URC deixam claro que, o que interessa de fato a essa esquerda, são oportunistas ganhos institucionais, e não avanços de fato na luta.
Contrários à “farsa eleitoral” e às principais candidaturas burguesas, os coletivos destacam o recente crescimento das greves no país e colocam “a necessidade e a possibilidade de construir a unidade das lutas proletárias e populares. Com base nelas, devemos elaborar uma orientação tática revolucionária”. Em publicação recente, o Cem Flores defendeu uma tese muito similar: “o estímulo, o acompanhamento, a análise e o apoio às greves desencadeadas pelas classes trabalhadoras, juntamente com outros protestos, lutas e revoltas, são tarefas fundamentais para o avanço da luta de classes operária hoje. Reforçar a resistência já existente é o único caminho para reverter a recente piora em nossas condições de vida, imposta pela ofensiva burguesa na luta de classes, e construir a ‘emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo dos funcionários e do jugo do capital’, como dizia Lênin”.
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Outros exemplos poderiam ser citados de grupos e organizações de esquerda críticas ao eleitoralismo na atual conjuntura nacional. No entanto, a partir dos exemplos já levantados, o mais importante é constatar a existência de um campo político em comum que vai se conformando em contraposição ao fascismo e também a mais uma rodada de oportunismo reinante na esquerda.
Aos/às comunistas, revolucionários/as, importa estar do lado daqueles/as que não tergiversam, assumem sua posição de classe e continuam no caminho da luta. Hoje somos poucos, mas não caímos no pântano da conciliação, no lamaçal do oportunismo, como dizia Lênin. E isso é essencial na retomada da posição proletária no Brasil.