Ucrânia: o antagonismo inter-capitalista se exacerba (III)
O CVM publica a terceira matéria sobre a crise na Ucrânia de autoria de Antonio Luiz M. C. Costa, de Carta Capital.
DIVÓRCIO LITIGIOSO Carta Capital Edição 792 – 26 de março de 2014
por Antonio Luiz M. C. Costa
UCRÂNIA: Putin consuma a anexação da Crimeia e aprofunda a fenda entre o Ocidente e os emergentes.
Há dias na história que valem por meses ou anos e esse foi ocaso do 18 de março de 2014, cujas consequências provavelmente repercutirão pelo mundo por muito tempo. Nessa data, menos de três semanas após o início dos protestos na Crimeia contra a mudança de regime em Kiev e a subsequente ocupação russa da região, Vladimir Putin assinou um tratado com os governos separatistas da Crimeia (República Autônoma da Crimeia e Cidade de Sebastopol) sobre sua incorporação à Federação Russa.
É a mudança mais drástica e explícita no relacionamento entre as potências desde o fim da União Soviética, em 1991. Em parte é consequência de como essa transição anterior foi conduzida. A Rússia não foi vista como uma futura aliada necessitada de ajuda para construir e estabilizar uma economia capitalista, caso da Alemanha e do Japão depois de 1945, mas como um país derrotado a ser humilhado, a exemplo da Alemanha de 1918. A promessa de Bill Clinton de fazer da nova Rússia uma parceira e de não expandir a Otan sem acordo prévio foi esquecida, em 1993, em favor do isolamento de Moscou e do flerte com as tendências separatistas dentro do país.
Não seria de se espantar se a Rússia houvesse reagido com a Alemanha dos anos 1920 e 1930 e de fato surgiram muitos movimentos ultranacionalistas, alguns abertamente neonazistas. Não se chegou a tanto, mas a falta de reciprocidade para uma política de aproximação com os EUA forçou Boris Yeltsin a dispensar os elementos mais liberais e pró-ocidentais de seu primeiro governo e abrir espaço a um nacionalismo autoritário disposto a apostar em alianças com a Índia e a China contra a hegemonia de Washington – mesmo se, em 1998, a Rússia foi aceita pelo G-8, o que como compensação foi muito pouco e tarde de mais. Primeiro Yevgeny Primakov, depois Vladimir Putin, cujo prestígio ficou assegurado ao esmagar, em 1999, a revolta separatista da Chechênia, que tinha sido reconhecida pela Geórgia e pelo regime taliban então no poder no Afeganistão e apoiada pela Polônia e países bálticos, todos aliados dos EUA. Doente e desmoralizado, Yeltsin renunciou em favor do sucessor designado.
Nos dois primeiros mandatos presidenciais, Putin priorizou suprimir os movimentos separatistas e rivais políticos e assegurar controle da máquina estatal e das comunicações. Em 2004, o ataque terrorista em Beslan foi um equivalente russo do 11 de Setembro. Deu-lhe pretexto para suprimir a eleição local dos governadores e ampliar o controle sobre a mídia. As Forças Armadas, desmoralizadas e sucateadas na era Yeltsin, foram reorganizadas. Mesmo reduzidas em relação ao antigo Exército Vermelho, voltaram a ser uma força respeitável, centrada em paraquedistas e forças especiais (Spetsnaz) e armas estratégicas mantidas em condições de desafiar os EUA. As patrulhas regulares de bombardeiros nucleares, suspensas por 15 anos por falta de recursos, seriam retomadas em 2007.
Todos esses movimentos foram essencialmente defensivos, mas em agosto de 2008 Moscou teve a primeira oportunidade de testar os músculos convalescentes. Certa do respaldo da Otan, à qual pretendia de filiar, a Geórgia tentou retomar duas pequenas repúblicas separatistas aliadas da Rússia desde 1992 e sofreu uma derrota humilhante. Perdeu ainda mais território e as duas repúblicas foram reconhecidas pela Rússia e alguns de seus aliados, sem que os EUA se atrevessem a dar uma resposta militar. George W. Bush, em fim de mandato, limitou-se a sanções simbólicas a Moscou, retiradas dois anos depois.
O Ocidente piscou e a Rússia tomou nota da lição. Como também anotou, três anos depois, as consequências de ceder ao Ocidente, acreditar nos EUA, aceitar a imposição de uma “zona de exclusão aérea” sobre a Líbia e vê-la transformar-se em uma intervenção armada da Otan, o que foi um sério golpe no prestígio interno do então presidente Dmitri Medvedev. O erro russo foi repetido na Síria e seu acerto se repetiu na Crimeia.
Agora Moscou não está mais na defensiva. Suas ações fazem parte de uma ofensiva – ainda que, até agora, relativamente pouco violenta – para recuperar prestígio e um papel mundial. A perda da Crimeia ameaçaria a base de Sebastopol, vital para a atuação de sua Marinha e sua futura expansão para bases em outros continentes.
Mesmo do ponto de vista de seus inimigos, o discurso de Putin foi histórico. Com ironia e franqueza raramente ouvidas de líderes de grandes potências desde a morte de Mao, expôs a hipocrisia do Ocidente sobre leis internacionais, mas quebrou várias vezes desde 1991: citou Iugoslávia, Afeganistão, Iraque, Kosovo e Líbia e a própria ingerência mal disfarçada das potências ocidentais na Ucrânia, ao estimular manifestações e um golpe parlamentar em aliança com oligarcas tão corruptos quanto aqueles que foram derrubados e com uma perigosa militância fascista que agora controla os ministérios da Defesa e da Segurança, entre outros cargos importantes.
Putin também não se dispensou de hipocrisias, pois, enquanto manifestantes pró-russos se reuniam na Praça Lenin, à sombra da estátua do líder comunista (cujas homólogas foram derrubadas em Kiev e tosdo o oeste da Ucrânia), e muitos deles agitavam bandeiras soviéticas , pediu e obteve o apoio de partidos europeus de ultradireita, entre eles a Liga Norte Italiana e a Frente Nacional francesa, para legitimar a anexação da Crimeia. E o plebiscito esteve longe de ser uma expressão desimpedida da vontade popular. Foi realizado sob ocupação, sem fiscais isentos e não ofereceu manter o status quo como região da Ucrânia. As opções forma virtual independênci9a ou anexação à Rússia – e só a segunda pôde ser publicamente defendida.
Mesmo se o resultado oficial (96% pela anexação com participação de 82%, ou 79% de apoio líquido) pode ter sido inflado, jornalistas ocidentais atestaram nas ruas o entusiasmo da maioria dos crimeanos de etnia russa pela anexação, contrariado por parte da minoria ucraniana e pela minoria tártara, que boicotaram o referendo. À parte o princípio da integridade territorial ignorado pelo Ocidente na Palestina, Eritreia, Kosovo e Sudão do Sul, o movimento Russomaidan da Crimeia não parece mais ilegítimo que o Euromaidan de Kiev.
Consumada a anexação, resta aos EUA e à União Europeia fazerem sua jogada. Optaram por congelar vistos e eventuais contas bancárias no Ocidente de certos funcionários russos, líderes da Crimeia e Viktor Yanukovich, mas o vice-primeiro-ministro russo, Dmitri Rogozin, um dos pessoalmente afetados pelas sanções, zombou delas como “pouco sérias” e disse que sequer merecem retaliação. São advertências simbólicas e aparentemente só se cogitará de discutir ações adicionais se Putin ameaça outras partes da Ucrânia.
Seria difícil impor sanções de importância real. A Europa continental precisa do gás, do petróleo e do comércio de Moscou, e o Reino Unido, dos investimentos dos bilionários russos. A França tem um contrato para entregar à Rússia dois grandes navios de guerra até o início de 2015. Pressionada a cancelá-los, ela só se dispôs a fazê-lo “se o Reino agir contra contra os oligarcas russos em Londres”, o que é como dizer “no dia de São Nunca”.
Na Ucrânia, o nacionalismo exaltado poderia levar a uma imprudência. Logo após a anexação, um soldado ucraniano e um miliciano pró-russo morreram na tomada de um quartel ucraniano. Kiev recrutou voluntários na ultra-direita e “autorizou” suas guarnições na Crimeia a resistir pelas armas e o primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk disse que o conflito entrava em “fase militar” e enviou seu ministro da Defesa para “resolver a situação”, mas no dia seguinte duas bases navais ucranianas se entregaram sem um só tiro e o ministro da Segurança (Andriy Parubiy, do neonazista Svoboda) anunciou a retirada dos militares e suas famílias da península.
O quadro parece a caminho da estabilização, mas pode mudar se a situação se deteriorar no leste da Ucrânia, onde manifestantes reivindicam a anexação à Rússia. Outro ponto de atrito é a Transnístria, região da Moldávia autodeclarada independente desde 1990. Essa língua de terra, que ainda ostenta foice e o martelo em sua bandeira, teve sua fronteira fechada pelo novo governo de Kiev e também pediu anexação à Rússia. Mas o maior risco seria a Otan deslocar armas para a Ucrânia, o que Putin dificilmente admitirá. Por ora, Washington limita-se a enviar alguns aviões para tranquilizá-los do que para desafiar Moscou. Talvez se possa considerar ainda o rompimento de relações dos EUA com a Síria como uma retaliação.
Ficou clara e irreversível a fenda no coração do sistema internacional. Enquanto o G-8 suspendeu a Rússia e voltou a ser, na prática, G-7, nenhum país do BRICS condenou a anexação. Dilma Rousseff deu ordem explícita ao Itamaraty para não fazê-lo e a Índia considerou “legítimos” os interesses russos. A própria China, apesar de ter fortes motivos para defender a intangibilidade das fronteiras contra o princípio da autodeterminação – pois quer manter o Tibete e o Xinjiang e recuperar Taiwan – se absteve no Conselho de Segurança.