A teoria marxista do pauperismo e o debate com o reformismo social-democrata
por Rodrigo Castelo Branco
Professor do UniFOA. Doutorando da Escola de Serviço Social da UFRJ. Membro do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (LEMA/JRT) do Instituto de Economia da UFRJ.
“A teoria marxista do pauperismo e o debate com o reformismo social-democrata”, de Rodrigo Castelo Branco, publicado nos Anais do V Colóquio Internacional Marx-Engels, realizado em Campinas, de 6 a 9 de novembro de 2011, é uma iniciativa do Centro de Estudos Marxistas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (CEMARX).
Na medida em que a “redução da desigualdade social” estará em pauta na campanha eleitoral, tanto oficialista como oposicionista, temos de chamar atenção para a análise marxista do fenômeno do pauperismo. Esta é uma das contribuições do autor. Sabemos que o pauperismo é apenas uma das expressões da acumulação do capital que supõe a criação do exército industrial de reserva.
Mas é preciso dar um passo adiante. Precisamos analisar criticamente o pauperismo oficial representado pelo Programa Bolsa Família. Obviamente este programa tem um forte sentido de legitimação política e representa a face mais visível do clientelismo político como um dos pilares da democracia burguesa. O Programa tem sido utilizado ideologicamente pelo petismo para defender a “inclusão social” dos segmentos mais pobres das classes trabalhadoras no mercado de consumo capitalista, de modo a evidenciar o seu papel político de sustentar um governo (de coalizão com o PMDB) capaz de compatibilizar capitalismo e redução das desigualdades. Aliás, capitalismo e inclusão social é a bandeira levantada por Lula para justificar a permanência do PT no governo até 2020.
O que não aparece nas análises é, na compreensão do CVM, a relação do programa com a reprodução da força de trabalho para o capital, principalmente da “infantaria ligeira do capital”, assim chamada por Marx aquela parte do exército de reserva ativo composto pelos segmentos da classe trabalhadora migrantes que integravam o setor da construção civil pesada. Não é disso que se trata na região norte do país, quando o Bolsa Família assegura minimamente as condições de vida de mulheres e crianças que, no interior do Maranhão, Piauí e Tocantins, fazem parte das famílias dos “peões de trecho” na construção das hidrelétricas com o Santo Antonio e Jirau?
Em resumo, uma análise do Programa Bolsa Família permite desvendar as relações entre exploração da força de trabalho pelo capital com dominação política burgues a de caráter democrático. (CVM)
INTRODUÇÃO
A luta dos trabalhadores por melhores condições de vida sempre encontrou um sem número de obstáculos. No terreno da ideologia, a economia política burguesa proclamava a lei férrea dos salários, pela qual a classe operária estava condenada não somente a viver com o suor do rosto mas a conviver com salários mínimos de subsistência.
Karl Marx colocou-se contra esta mistificação da realidade capitalista, própria do método dos economistas pós-1848[1], e criou uma teoria do pauperismo – calcada na centralidade das categorias trabalho, alienação/fetichismo e exploração – capaz de dar conta das lutas dos trabalhadores tanto contra a pobreza quanto contra a desigualdade. Esta teoria, assim, não perde de vista a dimensão da totalidade dos momentos da esfera econômica – produção, distribuição, troca e consumo –, o que a direciona para ideais revolucionários.
A presente comunicação pretende resgatar as principais teses da teoria marxiana do pauperismo, visando dar subsídios teóricos para enfrentarmos o debate contemporâneo, tão vivo e atual, sobre o combate às desigualdades sociais, limitado à esfera da distribuição e da retórica ética e moralista da pobreza, mesmo em suas formulações progressistas outrora chamadas de social-democratas.
I. CRÍTICA DO SOCIALISMO VULGAR
Desde a redação dos Grundrisse, Marx debatia-se com a tese dos economistas políticos de que a luta dos trabalhadores, na constituição de organizações coletivas para reconhecimento dos seus direitos e necessidades e para transformações sociais, não tem qualquer efeito prático imediato, como o aumento dos salários ou a redução da jornada de trabalho. Marx, todavia, não polemizou acerca das teses do pauperismo absoluto exclusivamente com os sicofantas da burguesia.
Em duas ocasiões envolveu-se em debates acalorados sobre as teses da lei férrea dos salários no próprio seio do movimento operário; na primeira, em 1865, Marx pronunciou um informe que resumia suas teorias econômicas da relação entre salário e lucro; na segunda, em 1875, fez anotações à margem do programa político do Partido Social Democrata Alemão redigido antes do congresso de Gotha, demonstrando preocupação (e insatisfação exarcebada) com a defesa que os seguidores de Ferdinand Lassalle faziam da lei férrea dos salários. Estamos falando, respectivamente, dos textos Salário, preço e lucro (1865) e Crítica ao Pograma de Gotha (1875).
Em 1865, Marx leu, para seus camaradas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), um pequeno panfleto sobre as determinações econômicas e políticas da produção e distribuição da riqueza nacional entre as classes sociais. Neste período da história econômica, aflorava uma contradição do desenvolvimento dos países europeus: altas taxas de crescimento eram combinadas com uma onda de manifestações populares e greves sociais por aumentos salariais. Contrariando os prognósticos mais sombrios da economia política, a classe trabalhadora conseguia efetivar, na prática, alguns dos seus direitos e demandas históricas, melhorando, assim, suas condições de vida.
Apesar da luta prática e cotidiana refutar a validade da teoria do pauperismo absoluto, esta, subrepticiamente, se infiltrava no seio do movimento operário por meio dos seus próprios membros. O operário inglês John Weston defendeu-a no Conselho Geral da AIT, ressaltando ainda que a luta sindical por aumentos de salário seria não somente ineficaz como também prejudicial aos trabalhadores.
Marx reconhece, logo nas observações preliminares de Salário, Preço e Lucro, a “coragem moral” do cidadão Weston mas trata de desconstruir a improbidade científica das suas afirmações. Segundo o revolucionário alemão, Weston baseia toda sua argumentação nas premissas estacionárias do desenvolvimento econômico, a saber, que o volume da produção nacional e o montante dos salários são uma grandeza fixa e constante. No tocante ao que nos interessa – os rendimentos dos trabalhadores – Weston afirma que são determinados pela vontade arbitrária (e ávara) dos capitalistas, não sendo, portanto, regidos por lei econômica conhecida e situados exclusivamente nos seus patamares mínimos. Sem maiores explicações, Weston fecha questão com a teoria do pauperismo absoluto pelos motivos expostos.
No último quartil do século XIX, o movimento operário alemão fortaleceu-se com a fusão das duas organizações trabalhistas mais importantes da época, o Partido Operário Social-Democrata, de inspiração marxista, dirigido por Karl Liebknecht e August Bebel, e a Associação Geral dos Operários Alemães, liderada por discípulos de Lassalle. Desta fusão surgiu, no Congresso de Gotha, em 1875, o Partido Socialista Operário da Alemanha.
Por ocasião da fundação do novo partido, os dirigentes operários redigiram um programa político sob inspiração lassalliana, o que Marx e Engels julgaram um retrocesso teórico e programático do movimento operário alemão. Os dois revolucionários, ao receberem cópias do programa de Gotha, colocaram-se a redigir uma crítica pois não estavam de acordo com o conteúdo e a forma do programa. Coube a Marx a tarefa de redação da Crítica ao Programa de Gotha.
Por que Marx e Engels, afinal, declararam que “o programa não vale de nada” ou que “este nos causou, certamente, um assombro não pequeno”? As razões são diversas. A principal razão da insatisfação de Marx e Engels quanto ao programa de Gotha é a perda de autonomia da práxis revolucionária do movimento operário, organicamente atrelado à ajuda do Estado, e as concepções tática e estratégica de transição do capitalismo para o socialismo. O programa de Gotha defende enfaticamente a “ajuda do Estado”, livre e democrático, nos marcos da República burguesa, para a efetivação da superação do capitalismo rumo ao socialismo, sem nem colocar em tela o caráter classista (conservador e reacionário) do Estado alemão. Marx anota que a sociedade socialista, produto da ação autônoma dos trabalhadores, não será obra de empréstimos do Estado para criações de cooperativas industriais e agrícolas, tal qual afirma o programa, mas sim da revolução, em que o Estado, enquanto uma máquina burocrática de dominação de classe, será somente um meio, uma ferramenta dos trabalhadores no período de transição socialista à sua fase superior – o comunismo.
Outros pontos de discórdia surgem ao longo das anotações de Marx, as quais podemos citar com relevo, o caráter sectário do programa, taxativo em nomear todas as classes sociais que não o proletariado de reacionárias, o internacionalismo abstrato contido no lema “fraternidade internacional dos povos” e o silêncio sobre a importância (e os limites) dos sindicatos na luta operária. Mas gostaríamos de destacar um deles de acordo com o nosso debate: a lei de bronze dos salários, o igualitarismo socialista e a supressão das desigualdades social e política.
Exatos dez anos após seus pronunciamentos na AIT contra as assertivas do cidadão Weston, Marx vê-se novamente compelido a retornar ao tema, pois o programa de Gotha abraça a lei de bronze dos salários, numa clara alusão aos princípios teóricos da economia política malthusiana e ricardiana. Primeiramente, os lassallianos, plagiando Goethe, substituem a expressão ‘férrea’ por ‘bronze’. Depois, ao invés de patrocinarem a luta política do movimento operário contra a totalidade das determinações básicas do sistema assalariado, a redação do programa encaminha a luta dos trabalhadores somente contra a lei de bronze do salário. Em uma carta sobre a Crítica do Programa de Gotha, escreve Engels:
ora bem; Marx demonstrou minuciosamente no O Capital, que as leis que regulam o salário são muito complexas, que ora predominam umas, ora outras, segundo as circunstâncias; que, portanto, estas leis não são, de modo algum, de bronze, mas, pelo contrário, são muito plásticas, e que o problema não se pode resolver assim, em duas palavras, como acredita Lassalle.[2]
A determinação dos níveis salariais no modo de produção capitalista não é regida nem pela vontade arbitrária dos capitalistas, tal qual defendia o cidadão Weston, nem é conformada em um patamar mínimo de subsistência, crença na qual acreditavam tanto os economistas políticos quanto os lassallianos. A defesa desta tese por parte do principal partido de massa dos trabalhadores alemães não tem unicamente rebatimentos teóricos, mas principalmente políticos: primeiro, falseia-se a realidade imprimindo-lhe um caráter natural de escassez eterna e imutável e, em segundo lugar, cria-se um descrédito da luta dos trabalhadores por uma melhor distribuição de renda e riqueza. O resultado só pode ser desastroso para os trabalhadores, conforme assinala Marx:
apoiando-se precisamente nisto [na lei férrea dos salários], os economistas vêm demonstrando, há cinquenta anos e até mais, que o socialismo não pode acabar com a miséria, determinada pela própria natureza, mas tão somente generalizá-la, reparti-la por igual sobre toda a superfície da sociedade![3]
Marx e Engels procuraram distanciar-se ao máximo de um ideal abstrato de igualitarismo, de uma idílica Idade de Ouro da humanidade. Suas afirmações iam em uma direção oposta. No modo de produção capitalista, dado os pressupostos (jurídicos) da propriedade privada burguesa e (históricos) da separação dos trabalhadores dos seus meios de produção, um expressão do outro, a distribuição de renda e riqueza será sempre desigual em favor dos capitalistas. Não há arranjo político e econômico capaz de propiciar senão a pobreza, absoluta ou relativa, para os trabalhadores. Numa etapa de transição socialista, Marx e Engels também admitiam ser impossível o igualitarismo radical entre todos os indivíduos, com a supressão das desigualdades sociais e políticas e mesmo das diferenças entre os indivíduos da raça humana.
O que se defende nas teses marxianas é a abolição das classes sociais e a redução drástica e radical das desigualdades no socialismo, não a sua supressão. Pequenas desigualdades ainda permaneceriam entre povos e regiões, de acordo com suas especificidades sociais e geográficas. Ou seja, o socialismo científico não propõe nem a socialização da miséria nem o igualitarismo utópico: o que ele defende é o reino da liberdade e o livre desenvolvimento dos indivíduos no marco de uma sociedade comunista.
Entre 1840 e 1860, época na qual Marx e Engels começaram a aventurar-se no estudo da economia política e na ligação com o movimento operário europeu, a classe trabalhadora, segundo os padrões de industrialização e acumulação vigentes, sofria uma tendência de empobrecimento absoluto, o que deixou marcas profundas nas suas obras teóricas.
Não podemos negar, diante dos fatos econômicos, que há elementos de verdade na teoria do empobrecimento absoluto[4]: os elementos de verdade da teoria do empobrecimento, todavia, não configuram a totalidade dos fatos econômicos. Outros, tão ou mais importantes, que configuram o pauperismo relativo dos trabalhadores frente ao capital, também se fazem presentes, em especial os relacionados à lei geral de acumulação capitalista e à formação de uma superpopulação excedente. “Tudo o que precede indica, claramente, que Marx jamais expôs, nas suas obras de maturidade, qualquer lei da pauperização absoluta dos trabalhadores, ainda que ele considerasse sua pauperização relativa como inevitável”[5].
As condições do processo de produção capitalista estão conectadas a da reprodução. Durante o processo de trabalho, a partir da exploração da força de trabalho, temos a criação de valor. Já no processo de reprodução, temos a expansão daquele valor extraído da força de trabalho no processo de produção. Este excedente deve ser continuamente reinvestido na produção para que tenhamos uma reprodução ampliada do capital. Mas outra condição se faz necessária para que exista a acumulação capitalista.
As condições para o consumo da força de trabalho são que ela exista e esteja disponível no mercado de trabalho a qualquer momento que o capitalista queira comprá-la, de acordo com o momento dos ciclos econômicos. Ou seja, os trabalhadores devem estar separados, objetivamente, dos meios de produção, e, subjetivamente, do domínio do processo de trabalho, para não só se tornarem mercadorias a serem livremente transacionadas, mas também para serem consumidas a bel prazer do capitalista durante o processo de produção.
A reprodução da classe trabalhadora – enquanto portadora da mercadoria força de trabalho – é uma condição indispensável e ineliminável da produção/reprodução capitalistas; sem isto, não há possibilidade do capital produzir mais-valia, e desta ser continuamente reinvestida, gerando, portanto, uma reprodução ampliada. O argumento, em suma, gira em torno da seguinte preposição: “a produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou como processo de reprodução, produz não só mercadoria, não só mais-valia; produz e reproduz a relação capitalista: de um lado, o capitalista e do outro, o assalariado”[6].
Nos primeiros estágios do capitalismo, a composição orgânica do capital tinha uma divisão favorável ao capital variável em detrimento do constante, isto é, grande parte do capital era empregado para a compra de força de trabalho. Meios de produção, por assim dizer, não ocupavam uma posição de destaque no orçamento dos capitalistas. A cada ciclo de expansão dos negócios seguia-se um aumento dos trabalhadores, dada a alta participação do capital variável na composição orgânica do capital. A ampliação da acumulação capitalista demandava, desta forma, um número cada vez maior de trabalhadores disponíveis, sendo que, em muitas ocasiões, a demanda por trabalho superava sua oferta.
Uma das consequências era o aumento dos salários. A sua elevação, estimulada pelo aumento da escala da acumulação, era motivo de reclamações por parte dos capitalistas, pois suas margens de lucro tendiam a cair no período de expansão da atividade econômica, justamente quando esperavam aumentar seus ganhos, absoluta e relativamente. Ademais também ficavam presos a uma oferta (exógena) de força de trabalho, mercadoria esta que deveria estar sempre disponível, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade, no momento que o capital exigisse seu alistamento nos postos de trabalho. Estes dois efeitos contraditórios da acumulação capitalista não geraram somente queixas dos donos do capital, mas uma preocupação real quanto a limites objetivos e concretos à obtenção ilimitada de lucros, o que poderia ameaçar o sistema como um todo.
O ciclo econômico da indústria moderna, não obstante, não é uma via de mão única, mas um caminho sinuoso e contraditório, em forma de espiral, de idas e vindas, altos e baixos. Seria errado, diante da instabilidade dos ciclos da grande indústria, supor que a acumulação capitalista estivesse sempre no momento de expansão econômica. A este seguem-se períodos de superprodução, de crise, de estagnação, de estímulo aos negócios e daí por diante. Na alta do ciclo econômico, os capitalistas demandam trabalho numa proporção por vezes maior do que sua oferta, ocasionando um aumento dos salários. Este aumento, por sua vez, desestimula a inversão da mais-valia como capital, que passa então a ser consumida como renda do capitalista. A consequência deste gasto improdutivo é retirar parte da renda nacional que seria investida na produção, o que manteria a acumulação em alta. Com a acumulação em queda, cessa aquela demanda de trabalho que proporcionava o aumento dos salários.
O progresso da acumulação não pára neste estágio primitivo da composição orgânica do capital. Ele evolui em direção ao decréscimo relativo do capital variável. Os agentes de transformação da composição orgânica do capital serão o progresso técnico e a concentração e centralização dos capitais individuais em grandes conglomerados industriais. A acumulação capitalista, de acordo com as leis imanentes de concorrência intercapitalista e das lutas de classes, traz consigo a tendência a revolucionar a base técnica e com isso alterar a composição orgânica do capital, aumentando relativamente o volume do capital constante. O uso, extensivo e intensivo, de máquinas e equipamentos e a utilização da ciência no processo produtivo tornam-se uma ferramenta eficaz da concorrência inter-capitalista e uma das alavancas mais poderosas da acumulação capitalista. Mas não só.
Os efeitos do investimento crescente no progresso técnico, aqui descrito como aumento relativo do capital constante, transcendem a concorrência inter-capitalista e atingem em cheio a luta de classes entre burguesia e proletariado. O decréscimo do capital variável na composição orgânica do capital significa a expulsão, temporária ou estrutural, de trabalhadores do processo de trabalho, mesmo que seu número absoluto cresça. Com a expulsão dos trabalhadores, o modo de produção capitalista cria o que Marx chamou de exército industrial de reserva, uma população de trabalhadores excedente não em relação aos meios de subsistência, como sustentava Malthus, mas em relação aos meios de produção.
O exército industrial de reserva nada mais é do que uma das inúmeras formas que o capital encontra para rebaixar os salários dos trabalhadores e aumentar seus lucros. O que está em disputa é a apropriação dos valores excedentes, regida por inúmeras forças contraditórias, tais como: (1) aumento do capital constante, queda do capital variável, aumento da produtividade do trabalho social, aumento do desemprego, queda dos salários; (2) surgimento de novos ramos industriais, expansão da produção, queda do desemprego, aumento dos salários, criação de novas necessidades.
Apesar da organização coletiva dos trabalhadores atuar no sentido de aumentar os seus ganhos, outros fatores objetivos concorrem para que o salário médio caía, como o progresso técnico, a proletarização da população em geral e a concorrência econômica entre trabalhadores empregados e os alistados involuntariamente no exército industrial de reserva, daí aquela complexidade a qual se referiu Engels. A resultante das forças contraditórias é, todavia, a desigualdade social, a acumulação de miséria num pólo e de riqueza no outro.
Ernest Mandel observa que, “para Marx, o essencial era pôr em evidência a pauperização relativa do proletariado, o fato de que, mesmo quando os seus salários aumentam, aumentam bem menos do que as riquezas do Capital”[7]. O destaque da teoria marxiana dos salários não está focado na baixa absoluta do valor da força de trabalho mas, essencialmente, na categoria de ‘salário relativo’[8], na perda de poder de compra dos salários vis-à-vis a mais-valia dos capitalistas.
Ao renegar a teoria do pauperismo absoluto, Marx revê posições da sua produção teórica da juventude – basta lembrar dos textos A miséria da filosofia (1847) e Manifesto do Partido Comunista (1848) – e admite a hipótese dos trabalhadores, seja através das flutuações dos ciclos econômicos, seja através da luta parcial dos sindicatos, conseguirem aumentos dos salários. Mas, se comparados aos aumentos da riqueza nacional e da renda dos capitalistas, a tendência geral é que os trabalhadores fiquem mais pobres, pois se apropriam de pequenas parcelas da riqueza produzida por eles próprios.
Ironia da história ou acaso da natureza? Marx descarta esta hipótese metafísica acerca do pauperismo das classes subalternas. A desigualdade social, a miséria e a fome criadas pelo capital eram resultado da divisão de classes da sociedade civil burguesa. As hierarquias sociais do capitalismo não eram determinadas por uma ordem natural ou transcendental ao ser humano, e sim por um processo histórico de relações conflituosas e antagônicas entre as classes sociais.
A distribuição da renda e da riqueza de uma economia nacional está atrelada, na concepção teórica marxiana, ao modo de produzir, à forma pela qual os produtos são criados pelo trabalho coletivo dos proletários. Em uma palavra, a luta pelo fim do pauperismo e das desigualdades sociais não deve se resumir somente às esferas da distribuição e da circulação, conforme defende o socialismo reformista. Ela será ineficaz caso não contemple mudanças radicais na esfera da produção e, portanto, na propriedade privada dos meios de produção. Diz Marx:
“O socialismo vulgar (e através dele uma parte da democracia) aprendeu com os economistas burgueses a considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção, e, portanto, a expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição”.[9]
II. Considerações finais: reformas ou revolução?
Por diversas vezes, o revolucionário alemão alerta-nos sobre o erro de reduzir o socialismo a uma doutrina teórico-política da igualdade distributiva. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx aborda o problema da seguinte forma: “A distribuição dos meios de consumo é, em cada momento, um corolário da distribuição das próprias condições de produção. E esta é uma característica do modo mesmo de produção”[10].
Das proposições teóricas da sua teoria do pauperismo, retira uma tomada de posição política: a “questão social” não tem solução possível nos marcos do capitalismo. Com efeito, Marx e Engels apontam para o fato de que o pauperismo não é um fato tópico, isolado, um defeito pontual e provisório do sistema capitalista; ele é, antes de tudo, um fator essencial e ineliminável da ordem social burguesa.
Marx e Engels foram os primeiros pensadores a estabelecer ligações científicas entre classes e relações sociais de produção capitalista, e os únicos, na sua época, a extrair as últimas consequências desta afirmação: o primeiro passo para o fim das desigualdades sociais e das classes dar-se-ia pela abolição da propriedade privada dos meios de produção, da exploração capitalista e da alienação do trabalho e do fim da rígida divisão social do trabalho que compartimentaliza o trabalhador e o indivíduo humano. Somente a abolição do sistema assalariado, com a revolução socialista, pode abolir as classes, acabar com a pobreza, reduzir radicalmente as desigualdades sociais e instaurar o reino da liberdade.
[1] Cf. Georg Lukács, Marx e o problema da decadência ideológica, p.49-61. In: Marxismo e teoria da literatura. Georg Lukács. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
[2] Friedrich Engels, Carta a August Babel (18/28 de março de 1875), p.228. In: Karl Marx e Friedrich Engels. Obras Escolhidas, volume 2. São Paulo: Alfa-ômega, 1979.
[3] Karl Marx, Crítica ao programa de Gotha, p.218, grifos do autor. In: Obras Escolhidas de Marx e Engels, volume 1. São Paulo: Alfa-ômega, 1979.
[4]“Não queremos dizer que na realidade capitalista inexistam tendências de empobrecimentos; elas existem, mas é preciso saber onde buscá-las. Essas tendências manifestam-se claramente em dois casos: em primeiro lugar, temporariamente, em todos os períodos de crise; em segundo, permanentemente, nas chamadas regiões subdesenvolvidas do mundo (…)”. Roman Rosdolsky, Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx, p.255. Rio de Janeiro: EDUERJ; Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
[5] Ernest Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital, p.154. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
[6] Karl Marx, O Capital: crítica da economia política, p.673, volume 2. Livro I: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[7] Ernest Mandel, op. cit., p.154.
[8] A categoria salário relativo aparece na obra marxiana já em 1847, quando o revolucionário alemão fez algumas palestras para a Associação dos Operários Alemães em Bruxelas, posteriormente publicadas na forma de livreto – Trabalho Assalariado e Capital. A importância desta categoria foi descoberta por Marx a partir da leitura dos textos de David Ricardo. “Um dos grandes méritos de Ricardo é ter examinado, fixado como categoria, o salário relativo ou proporcional. Até então, o salário sempre fora considerado algo simples, e o trabalhador, em consequência, um animal”. Karl Marx, Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico, p.850. Volume II. São Paulo: Difel, 1980.
[9] 9 Karl Marx, Crítica ao programa de Gotha, p.215. In: Obras Escolhidas de Marx e Engels, volume 1. São Paulo: Alfa-ômega, 1979.
[10] Ibid, ibid.
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A teoria marxiana do pauperismo e o debate com o reformismo social