Obituário de Robson Caveirinha, nota de pé de página

O Observatório da Imprensa reproduz em 13/05/2014 o texto de Mauro Malin, datado de 24/05/2011. A promiscuidade política no Rio de Janeiro tem longa data. Os personagens de ontem e os de hoje variam mas nem tanto assim. 

Pactos e acordo de bastidores. Milícias e crime organizado disputam com partidos políticos o domínio (e exploração) de vastas regiões proletárias. São as favelas e a periferia da capital, a baixada fluminense e cidades do interior. Este é o pano de fundo da crescente violência que vem se espalhando pelo estado. (CVM)

 

Obituário de Robson Caveirinha, nota de pé de página

Por Mauro Malin em 24/05/2011 do Observatório da Imprensa

Os jornais registraram com pouco destaque a morte de Robson Roque dos Santos, Robson Caveirinha, há dez dias (23/3). Disseram que era chefão do tráfico no morro do Pavão-Pavãozinho, Copacabana, e que morreu em confronto com a Polícia Militar em Vigário Geral, Zona Norte do Rio. Mencionaram sua participação no sequestro do empresário Roberto Medina, em 1990.

Não esclareceram que esse sequestro deu origem à legislação de crimes hediondo. Nem passou pelas cabeças das redações fazer um balanço dessa legislação. Claro, ela não tem relação específica com a vida e a morte de Caveirinha. Em todo caso, poderia ter sido um “gancho”, se houvesse mais empenho em refletir sobre os problemas, não apenas relatá-los.

Mas a contextualização ausente que poderia ter sido mais esclarecedora diz respeito a conexões de Robson Caveirinha com a política no Rio de Janeiro. Explica, em certa medida, por que a Segurança Pública não produziu nas últimas décadas resultados a favor do povo.

Uso aqui o livro CV_PCC: a irmandade do crime, de Carlos Amorim (7ª edição, 2006), preciosa fonte. Curiosamente ou não, boa parte das informações que utiliza no capítulo onde aparece Robson Caveirinha (”Do mesmo lado da cerca”) é tirada de notícias de jornais.

O que se vai ler a seguir é uma adaptação ou seleção de trechos desse capítulo.

Comando Vermelho, governo paralelo

Amorim diz que “quando o Comando Vermelho assumiu o controle de quase 70% dos pontos-de-vendas de drogas, se constituiu numa espécie de governo paralelo das comunidades pobres. (….) Um relatório do Serviço Secreto da PM garante que o crime organizado matou pelo menos treze líderes comunitários nos bairros pobres do Rio [não dá a data do relatório]. (….)

“Esses crimes (….) ocorreram em locais em que a liderança comunitária tinha vinculações partidárias ou com setores radicalizados das instituições religiosas, tanto católicas quanto evangélicas, a força religiosa que mais cresce entre os pobres no Brasil. Muitos bandidos famosos se converteram às igrejas evangélicas.

“O leitor pode se perguntar: por que o Comando Vermelho teria interesse nessas eleições? Uma resposta simples: as associações de moradores são interlocutoras naturais com o poder público, são canais de negociação dos interesses comunitários”.

A seguir, Amorim afirma: “É preciso considerar também que as eleições para prefeitos, governadores, deputados estaduais e vereadores passam necessariamente por entidades representativas das comunidades”.

Não se trata apenas de associações, mas de federações, como a Faferj (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro).

Infiltração em entidades comunitárias

Um pouco de paciência, leitor. Se não percorrermos o trajeto do autor do livro ficaremos no ar. Já chegamos a Robson Caveirinha. Segue Amorim:

“No Rio de Janeiro, para se afirmar politicamente, o Comando Vermelho se infiltra nas grandes entidades comunitárias”.

Quando? No ano passado? Na década passada? Não. Infelizmente, a história vem de antes ainda.

Amorim:

“É inegável o peso dos moradores organizados na política carioca. Nas eleições municipais de 1985, vence o candidato de Leonel Brizola, o economista Saturnino Braga. Como vice-prefeito, é eleito o presidente da Federação das Associações de Moradores (Famerj), Jó Resende. (….) Note-se que são dessa época o início da guerra dos morros [entre outras razões, devido à entrada do Rio de Janeiro no circuito internacional da cocaína] e a adesão de grandes traficantes ao Comando Vermelho, que também disputa a liderança comunitária. A eleição de 85 é provavelmente a primeira a contar com a interferência do tráfico de drogas. Tradicionalmente, os banqueiros do jogo do bicho sempre estiveram presentes nas campanhas políticas, subvencionando candidaturas, imprimindo material de propaganda, convencendo o eleitor em bairros onde são muito influentes. Mas o tráfico na política é uma novidade.

É muito difícil para as pessoas aceitar a ideia de que representantes eleitos do povo para as câmaras e assembleias legislativas possam estar, por baixo do pano, defendendo o interesse do crime”.

Caveirinha e a eleição municipal de 1992

Nosso autor diz que entende e até aceita a desconfiança. Por isso recorre novamente a fontes credíveis. E continua:

“Nos últimos meses do ano de 1991, a polícia do Rio se preocupou em desvendar as ligações entre o Comando Vermelho e a política. (….) Uma equipe, chefiada pelo inspetor Gerson Mugget, foi montada exclusivamente para isso. O relatório ficou pronto em 92 e foi parar na mesa do delegado Antônio Nonato da Costa, diretor da DRE [Divisão de Repressão a Entorpecentes]. O texto garante que o crime organizado estava preparado para ´uma grande cartada´ nas eleições municipais daquele ano, ´financiando a campanha de seis candidatos a vereador, que sairão das associações de moradores e até de uma escola de samba´. O plano das quadrilhas é, mais tarde, eleger deputados estaduais. No dia 12 de maio, com base na investigação, o repórter Jorge Luiz Lopes publica matéria em O Globo:

´(….) Dois desses candidatos seriam Sebastião Teodoro, presidente da Associação de Moradores do Morro Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, e Pedro José de Assis Batista, o Tota, cunhado do presidente da Associação de Moradores do Morro de São Carlos. (….) Segundo a polícia, o Comando Vermelho vem dominando as associações de moradores de comunidades carentes com o intuito de formar uma base eleitoral para seus candidatos. Aqueles que se opõem a este poder sofrem represálias, como aconteceu no ano passado no Morro Dona Marta, em Botafogo, quando um casal da associação foi seqüestrado e morto´.

Entre as cartas apreendidas pela polícia [ainda não havia internet nem celulares popularizados], uma é bem reveladora. O traficante Robson Caetano de Souza [sic; dos Santos, diz o noticiário recente] manda recado de dentro da Penitenciária de Bangu (….) para Sebastião Teodoro. Caveirinha é do Comando Vermelho, participou do sequestro do empresário Roberto Medina. Na carta ao presidente da Associação de Moradores do Pavão-Pavãozinho, ele dá instruções para que seja lida uma mensagem de Natal aos moradores. Entrevistado pelo Globo, Sebastião Teodoro diz que recebeu e cumpriu a ordem do traficante, mas ´isso não tem nada demais e não prova nada´.”

Darcy com bicheiros

O capítulo do livro de Carlos Amorim segue carregado de informações. Por exemplo, sobre um jantar em que Darcy Ribeiro, que concorria à sucessão de Brizola, “apela para o submundo da contravenção em busca de votos”. O local é a Churrascaria Guanabara, a data é 18 de outubro de 1986:

“Dois mil contraventores recebem de braços abertos os candidatos Darcy Ribeiro, Marcelo Alencar e José Frejat – os dois últimos concorrendo ao Senado. É – de verdade – uma grande festança. Dois mil litros de chope regam quinhentos quilos de carne de primeira. Tudo consumido em três horas. Enquanto um fotógrafo do Globo é agredido pelo coordenador da campanha do PDT, Washington de Souza, Marcelo Alencar pega o microfone e fala à nata dos banqueiros do bicho:

– Eu quero dizer a vocês: somos muito gratos pelo apoio que os senhores estão nos dando”.

Ninguém ignora os laços criados entre bicheiros e traficantes há vinte e tantos anos.

Moreira Franco e o professor Nazareno

Nas páginas seguintes o autor mostra elos entre o candidato que derrotou Darcy, Wellington Moreira Franco, e personagens do submundo, entre eles “o professor de ginástica Nazareno Tavares Barbosa, ex-auxiliar de preparação física do Fluminense [Futebol Clube], que se tornou conhecido como instrutor do general João Figueiredo” (presidente do Brasil entre 1979 e 1985, último da ditadura militar de 64).

“Nazareno Tavares Barbosa foi preso uma semana depois do sequestro de Roberto Medina [junho de 1990]” (….), acusado de planejar a extorsão contra Roberto Medina, que pagou 2 milhões e meio de dólares para ser libertado pelos sequestradores. Nazareno confessa sua participação no crime. Diz que tudo foi planejado numa festa na casa de Robson Caveirinha, no Morro do Pavão-Pavãozinho, área controlada pelo Comando Vermelho. (….) Com a parte que lhe caberia no resgate, o professor de ginástica iria se candidatar a deputado estadual”.

Para resumir: Nazareno tinha conexão com chefões do Comando Vermelho presos. Entre eles, Francisco Viriato de Oliveira, o Japonês. Em maio de 1988, Nazareno “fez contato com a deputada federal Ana Maria Rattes e pediu que ela tentasse obter o benefício de prisão-albergue” para Japonês, “um dos mais destacados líderes do Comando Vermelho”.

Japonês obteve o benefício. Foi motorista e segurança particular de Ana Maria Rattes durante seis meses. Amorim cita reportagem de O Dia: “O benefício foi cassado no dia 10 de abril de 1988, quando Viriato assassinou sua mulher, Glicéria de Souza Miranda Viriato de Oliveira, de quarenta anos, na frente da filha Elisangela, que tinha dezesseis anos”.

A deputada era mulher de Paulo Rattes, que foi prefeito de Petrópolis, deputado federal e secretário de governo do Estado do Rio na administração Moreira Franco.

Resgate de US$ 2,5 mi, mas coleta de US$ 4 mi

Final do capítulo:

“A deputada ainda volta ao noticiário em novo episódio envolvendo o Comando Vermelho. No sequestro do empresário Roberto Medina, Ana Maria Rattes teria se encontrado com o Japonês na noite de 14 para 15 de junho de 1990, dentro do Presídio de Bangu Um. A pedido da família do empresário, teria negociado a redução do resgate de 5 para 2 milhões e meio de dólares. Segundo algumas versões, a deputada estaria acompanhada por José Colagrossi Neto, presidente nacional do Partido da Reconstrução Nacional (PRN), que elegeu o presidente Fernando Collor. Todo mundo desmente isso. Mas todo mundo sabe que os Colagrossi são muito amigos da família Medina, que efetivamente pagou 2 milhões e meio de dólares de resgate. Juca Colagrossi, durante as negociações telefônicas com os sequestradores, era o porta-voz dos Medina.

Depois que o empresário foi libertado, o Comando Vermelho ficou sabendo que a família de Roberto Medina conseguira reunir 4 milhões de dólares para o resgate. Juca Colagrossi foi considerado ´um traidor´. Teve que deixar o país, nomeado às pressas pelo presidente Collor para o escritório do [extinto] Lloyd [Brasileiro] em Nova York”.

As peripécias narradas no livro, de leitura altamente recomendável, em especial as relatadas nesse capítulo, dão uma (provavelmente pálida) ideia das articulações entre crime e política – não apenas no Rio, mas em escala nacional.

Mas no noticiário sobre a morte de Robson Caveirinha nada disso veio à tona. Quais terão sido as articulações com a política fluminense desse integrante do Comando Vermelho ao longo dos quase 17 anos transcorridos desde o sequestro de Roberto Medina? Pergunta à espera de respostas.

No Rio de Janeiro, infelizmente, uma morte de dez dias atrás é notícia velha, muito velha.

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