Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 1]
Bernardo Kocher
Prof. História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro, novembro 2023.
Foto: Dois meninos foram retirados dos escombros depois que aviões de guerra israelenses atacaram a Praça Yarmouk, na Rua Jalaa, Cidade de Gaza, em 25 de outubro de 2023. Eles gritaram: ‘Obrigado, defesa civil. Nós te amamos.’ [Abdelhakim Abu Riash/Al Jazeera]
O sionismo é um sistema. Introdução à uma análise estruturante da invasão da Faixa de Gaza a partir de outubro de 2023
Durante a guerra de independência da Argélia, iniciada em 1954, com a dominação colonial francesa em colapso, surgiu na metrópole a percepção de que o problema da rebelião (que levaria a colônia do norte da África à independência em 1962) se devia aos maus colonos enviados pela França. Como ali a presença de moradores colonizadores era a maior do mundo ásio-africano (1 milhão de europeus em meio à 9 milhões de habitantes locais) esta desproporção parecia conter algum sentido. Para contestá-la Jean-Paul Sartre[1], vibrante militante anticolonial, revisou este preceito em texto lapidar sobre o assunto, demonstrando que a rebelião dos colonizados não era contra uma má gestão por parte do colonizador. Pelo contrário, a colonização foi definida como um sistema, e era justamente este que passava por uma crise terminal devido à nova correlação de forças do pós-guerra, demarcada pela Guerra Fria e, no plano interno europeu, pela construção do Estado de Bem Estar. Assim, para o filósofo francês, era incompatível a existência da democracia e dos direitos sociais nas metrópoles com a prática de métodos fascistas nas colônias. Sem sombra de dúvidas foi a declaração de guerra pela Frente Nacional de Libertação argelina que levou o sistema colonial à contradição máxima, corroendo os alicerces da dominação colonial.
A crise argelina expôs, como em nenhum outro sítio dominado pelo imperialismo europeu, o fim do colonialismo iniciado no final do século XIX. O que demonstra esta tese é o fato de que nas démarches da crise argelina o sistema político francês da IV República também entrou em crise e, surpreendentemente, as forças militares presentes na colônia tentaram interferir (defendendo os interesses dos de colonos) na condução do governo central. Ou seja, a colônia tentou governar a metrópole! Este foi o fim do sistema colonial. Mas, ainda, a independência argelina não foi um fato isolado: junto com a realização da Conferência de Bandung (1955) e a invasão do Canal do Suez (1956) no momento exato da repressão soviética na Hungria – a independência da Argélia constituiu-se num dos focos para a formatação da independência total das colônias asiáticas e africanas.
Malgrado o que tem ocorrido na Palestina desde 1948 seja um caso único, o sionismo também deve ser visto como um sistema. Afirmo a necessidade de se pensar desta forma, acompanhando Sartre por analogia, já que variados estereótipos têm sido produzidos para caracterizar a brutal tentativa de destruição da população palestina da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e do sul do Líbano. Tais caracterizações são apresentadas isoladamente e desprovidas de uma causa para a sua existência no interior de um contexto mais amplo e preciso. Entre elas citamos: “genocídio”, “apartheid”, “limpeza étnica”, “racismo”, “necropolítica”, “neocolonialismo”, controle do Oriente Médio por uma potência com fortes vínculos com o imperialismo norte-americano, conflito milenar que se torna crônico de tempos em tempos, erro da política de assentamentos por parte de Israel, conflito existencial entre duas culturas, longo governo da extrema-direita israelense (o que inviabilizaria qualquer tentativa de acordo), etc. Todas estas formas de compreensão do problema possuem razões e evidências para serem tomadas como válidas em alguma medida. Mas nenhuma delas possui alcance para dar aos fatos sob análise o status de “sistema” porque elas “aparecem” funcionando sem uma explicação do que causou a sua aparição. Sendo assim estas caracterizações propiciam a formatação de soluções paliativas e retóricas além do que (como os fatos tem demonstrado desde o Nakba palestino) não produzem nenhum efeito prático para reverter ou conter o avanço contínuo do sionismo sobre as terras da Palestina.
O que pensamos que pode (e deve) ser trazido para o centro da análise é uma percepção voltada para o que representa a usurpação das terras palestinas e a formatação de um Estado poderoso como se tornou o estado sionista em meio à acumulação de capitais no pós-2a. Guerra Mundial. O Estado de Israel não é exatamente uma metrópole colonial, mas guarda identidade enquanto um instrumento político de dominação. Ele é “colonialista” na medida em que viabiliza a interferência na vida normal de Estados soberanos – não colônias, neste caso os países árabes vizinhos e alguns deles grandes produtores de petróleo – e, com outra lógica, lida de forma brutalmente excludente com a população palestina. Aqui consideramos que, mais uma vez, diferentemente de um processo colonial típico, não tem havido exploração de riqueza na “colônia” (apenas a realizada com a apropriação da terra) e nem uma extensiva utilização da força de trabalho na economia israelense, além do fato de que nunca uma metrópole se instalou no exato terreno que da sua colônia.
Chamaremos, para nossa análise, as situações descritas acima de a) sionismo “interno” e, b) sionismo “externo”. Estas duas vertentes têm a mesma origem e operam sinergicamente: o expansionismo/controle por parte do poderio militar e econômico do Estado de Israel de territórios, dando ao sionismo um aspecto impecável na sustentação dos interesses do capitalismo dos países centrais, contendo, claro, uma tonalidade de refúgio para os judeus contra o antissemitismo.
Notamos, acompanhando agora Isaac Deutscher[2], e iniciando a caracterização dos dois tipos de sionismos listados acima para dar suporte conceitual de que ele é um “sistema”, que o padrão de vida dos ocupantes sionistas é muito maior do que a riqueza produzida pela economia israelense. Esta possui um pequeno território com poucos recursos naturais e com uma enorme despesa de guerra e agressão da população palestina em tempos de paz. Se compararmos com Estados pequenos e desenvolvidos da Europa ocidental com território similar (como Holanda e Portugal), ficaremos surpreendidos como em tão pouco tempo o Estado de Israel conseguiu oferecer uma qualidade de vida elevada para sua força de trabalho, ainda mais considerando que estes dois pequenos países acumularam riquezas durante séculos através das suas colônias.
Sendo assim, indicamos que o principal caminho para se pensar a questão palestina está incrustado na forma como o Estado de Israel se vincula à acumulação de capitais mundiais e, assim, fornece um alto grau de oferta de bens e serviços para a reprodução da sua força de trabalho. O território espoliado é, assim, uma plataforma. O caráter sistêmico desta dupla forma de dominação sionista só se explica com uma inserção privilegiada do seu estado na acumulação de capitais. Foi esta articulação que colocou este Estado Nacional em condições que permitiram que o elevado padrão de vida da sua força de trabalho mantenha a nação coesa (apesar de lutas políticas triviais pela participação no poder e das disputas pelo orçamento nacional) dando a impressão que o que esteja ocorrendo seja a mítica união dos judeus dentro da bíblica terra prometida. Toda a movimentação dos sionistas para a implantação de um novo Estado Nacional traz em si uma arregimentação de capitais, bens e serviços que são repassados de forma privilegiada para o Estado sionista colocar em operação os dois sionismos.
Tal inserção é o que consideramos ser uma adaptação da categoria “convite” feita pelo sociólogo norte-americano Imannuel Wallerstein[3] para caracterizar a integração privilegiada da Europa ocidental e do Japão com a economia dos EUA, o que os permitiu a reconstrução física da destruição provocada pela 2a. Guerra Mundial sem maiores percalços. É sob a ótica de um “convite” velado que a Europa ocidental e os EUA incorporaram as funções geopolíticas (mais até que a proteção de judeus perseguidos) do Estado de Israel. Nesta, o controle dos destinos de vários países do Oriente Médio (opositores à instalação do que chamavam de “entidade sionista”) e a limpeza étnica do povo palestino tornaram-se os dois lados de uma mesma moeda para a política de “defesa” do Estado de Israel. A dinâmica de funcionamento do duplo sionismo conjuga os papéis de expansão do território tanto quanto o de limitar qualquer intervenção de uma eventual orientação hostil vinda dos países árabes. Os resultados deste embate, como sabemos, tem norteado todo o percurso de espoliação da população palestina: de um lado existe uma máquina de guerra capitalizada, tecnologicamente dinâmica e em constante evolução; por outro encontramos (após o fracasso do pan-arabismo capitaneado pelo Egito de Gamal Abdel Nasser) as orientações do que tem sido chamado na literatura de “islã político”, única formação política que ainda ameaça o expansionismo sionista.
Sendo assim, o caráter sistêmico que advogamos para a concretização do sionismo está calcado numa estrutura de poder político, econômico e ideológico que fornece ao Estado de Israel um status sem comparação com qualquer outro Estado Nacional que alguma vez tenha existido. Sua dependência de armas, matérias-primas, capitais, bens e serviços do mundo exterior não parece ser um óbice para a administração da tendência crônica do déficit fiscal e de balanço de pagamentos, graças ao já citado “convite”. Por outro lado, seu papel de potência regional lhe permitiu criar uma forma própria de agir e explicar suas condutas, o que será feito não em função de regras jurídicas do sistema internacional mas dependente do poderio concedido ao país por forças materiais e imateriais oriundas do centro de acumulação de capitais, Europa e EUA.
Sendo assim, uma definição sistêmica do que venha ser o sionismo “interno” e o “externo” deve considerar uma situação extremamente delicada: o gigantesco poder de um Estado Nacional com traços imperiais que, ao fim e ao cabo, é uma nação periférica, dependente de decisões e aportes de riqueza social oriundas do exterior. A melhor categoria que introduz o Estado de Israel nesta dimensão é a de subimperialismo, desenvolvida pela Teoria da Dependência e, mais especificamente, por um de seus proeminentes defensores, Rui Mauro Marini[4].
O caráter sistêmico que atribuímos ao sionismo está, assim, baseado na sua capacidade de elaborar uma dinâmica própria que conjuga tanto seu caráter dependente quanto seu papel de hegemon regional, que intenta alcançar uma pax israelensis no Oriente Médio. Todo o percurso do estado sionista, mesmo antes do início da ocupação da Palestina ainda no século XIX (mas mais intensamente após a Declaração Balfour em 1917), foi o de compatibilizar 4 fatores, interagindo entre si em camadas duplas: a) o sionismo “interno” e o “externo”; e, b) o estado sionista e os estados capitalistas avançados que, perdendo a sua condição de possuidores de colônias, fizeram o “convite” para os sionistas ocuparem um papel de destaque no Oriente Médio em contrapartida à um largo apoio material para que tal função fosse executada. Este último duplo item se deve ao fato de que as potências imperialistas intentaram manter ao fim do domínio imperialista pelo menos um dos projetos arquitetados ainda no período colonial, após a divisão do Oriente Médio pelo Acordo Sykes-Picot em 1916 e depois pelo sistema de mandatos criado no Tratado de Versalhes em 1919. O duplo sionismo se viabilizou trinta anos antes da sua oficialização, em maio de 1948. Seu objetivo inicial (visto pelo lado imperialista) era o de dividir e controlar os países oriundos da desagregação do Império Otomano, impedindo a formação de um novo império, eventualmente dominado por árabes. Como base de sustentação inicial para viabilizar tal intento, para ocupar o território base que operacionalizou este projeto, teremos na década de 1930 o desarmamento forçado pelos britânicos da população palestina mas não dos grupos paramilitares judeus.
Mesmo que não estivesse claro naquele momento, este foi o ponto de partida para que fosse viabilizado o Lar Nacional dos judeus, mas não o Estado da Palestina. Se divididos por diferenças nacionais, étnicas, religiosas e econômicas a ação do capitalismo central (alimentado pelo sionismo “externo”) seria viabilizada a dominação de rotas de fluxo do comércio internacional e petróleo no Oriente Médio, criando uma periferia estratégica na geopolítica mundial.
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Conjunturalmente, os episódios de 7 de outubro de 2023, e os horrores do massacre do povo palestino que desde então estão ocorrendo, produziram fatos inusitados para a análise do “sistema” sionista. A extrema exposição na mídia oficial e na independente, viabilizada pelas redes sociais, fez aflorar na opinião pública mundial uma sensibilidade sobre o que ocorre na Palestina. Isto produziu um movimento coletivo global de reflexão sobre a violência da ocupação sionista. Se esta consciência se transformará num mecanismo de pressão eficaz contra os governos formuladores do “convite” para influenciar os acontecimentos ainda não sabemos, mas esta talvez seja a única alternativa para viabilizar algum alento imediato ao povo palestino. Por outro lado, não podemos desconsiderar que os surrados argumentos pusilânimes dos sionistas alcançaram nesta luta de narrativas um maior número de pessoas. Sua campanha de divulgação se empenha em criar e/ou manter e reforçar uma rede de solidariedade ao estado sionista (re)ativando na consciência tanto dos apoiadores quanto dos críticos a lembrança do Holocausto como forma de justificação das suas ações contra o povo palestino.
Mas o que é importante neste momento de crise humanitária, cujas consequências podem produzir uma escalada de guerra generalizada, é saber se o “sistema” sionista entrou em crise e se esta crise é temporária ou definitiva. De nossa parte cremos que não se pode falar em uma crise sistêmica que elimine o sionismo e suas ações do corolário de opções que o capitalismo central possui para controlar parte da sua periferia. Não vislumbramos sequer uma verdadeira crise que abale, mesmo que no curto prazo, o poderio do estado sionista ou que este fique arranhado na sua pretendida legitimidade, isto graças à força do “convite”.
De qualquer forma algo de incomum aconteceu em 7 de outubro, expondo aspectos de fragilidade do sionismo que há alguns anos estava preparando para se autorreformar. A inesperada entrada em cena do islã político, parecendo não possuir uma lógica política objetiva, acabou por liberar forças (críticas ao sionismo) e ao mesmo tempo entravar processos de negociação comercial e política que favoreceriam o Estado de Israel. Este último está contido por décadas e precisava ser reformulado. Nos parece que mesmo aparentemente sem sentido prático, e ao custo elevadíssimo de vidas humanas, o islã político visualizou que a completa (e talvez perene) invisibilização dos palestinos estava em marcha acelerada e que, portanto, somente um ato de envergadura poderia recolocar a agenda da barbárie sionista na ótica da sociedade civil internacional. Ainda, o sofrimento a conta-gotas imposto pelo cruel estrangulamento da vida social em Gaza desde 2006 e, por outro lado, dos sempre iminentes bombardeios aéreos dos sionistas, cortes no fornecimento de água, eletricidade, alimentos e outros bens e a usurpação continuada das propriedades palestinas na Cisjordânia e em Jerusalém oriental pareceu não oferecer ao islã político nenhuma opção dentro de um contexto que se tornava velozmente desfavorável.
De qualquer forma, intuímos que, uma espécie de “percepção sensorial” (um verdadeiro show room de horrores) foi liberada de forma definitiva, tornando claro à comunidade internacional a natureza, poderio e intenções do sionismo. Tal sentimento, abafado pela falta de divulgação do que ocorre em Gaza e na Cisjordânia pelos meios de comunicação corporativos, está sendo revertido pelas imagens (e não por relatos escritos) que provavelmente muito ajudará a reverter a monocórdica e cínica narrativa sionista sobre si e sobre os palestinos. De agora em diante não há meios de ocultar/menosprezar/relativizar os fatos, mesmo que eles já tivessem sido indicados tanto por historiadores palestinos quanto israelenses (“Os Novos Historiadores”). A descrição escrita e analisada, legitimada por documentos e investigações científicas, não foi suficiente para mobilizar a opinião pública mundial desde os anos oitenta até os dias atuais. Agora a força das imagens e depoimentos instantâneos das vítimas ocupará um lugar de destaque de qualquer narrativa tanto da violência atual quanto da que vem ocorrendo nos últimos cem anos. De sua parte, cremos, o estado sionista também procura calcar a sua ação nestas mesmas imagens, tornando-as banais o suficiente até o momento em que a repetição exaustiva apresentada à opinião pública não consiga mais produzir indignação.
Como consequências direta das ações do 7 de outubro indicamos que estas produziram, em primeiro lugar, o estancamento do estabelecimento de relações diplomáticas com a Arábia Saudita, que estava a ponto de ser implementada. Esta normalização traria para o sionismo “externo” uma folga nas tensões a que está submetido e, simultaneamente, atrairia capitais do mundo árabe (chancelados pela poderosa economia saudita) e colocaria o Estado de Israel em rota de formulação da pax israelensis. Seus problemas econômicos (altos gastos e pouca produção) diminuiriam com este aporte de capitais, um meio de melhorar seus projetos econômicos, diminuindo a dependência dos patronos europeus e norte-americanos. De quebra, esta atitude jogaria o sionismo “interno” à beira da catástrofe, produzindo um apagamento ainda maior da questão palestina da pauta internacional. Lembremos que as autoridades sauditas demandaram para estabelecer troca de embaixadas uma fraca exigência de respeito aos lugares sagrados do islã em Jerusalém que estavam sendo invadidos por hordas de colonos sionistas descomprometidos com a cultura muçulmana tanto quanto sonhavam com a eliminação da esplanada das mesquitas para a eventual reconstrução de um novo templo de Salomão. Indubitavelmente, o 7 de outubro interrompeu este movimento de produção de um “novo” Oriente Médio, que foi iniciado pelo presidente Donald Trump como forma de produzir uma retirada estratégica desta periferia de expressivos recursos e responsabilidades dos EUA. Assim, terceirizando o papel da política externa dos EUA para o sionismo “externo” a principal potência mantenedora do Estado de Israel poderia aprofundar as hostilidades com o novo rival econômico concorrente, a China. Os Acordos de Abraão seriam, sem sombra de dúvidas, um passo consistente para se construir a pax israelensis.
Em segundo lugar, o 7 de outubro demonstrou uma capacidade ímpar de resistência “analógica” do islã político. Adotando táticas de guerrilha e equipamentos prosaicos o islã político violou com facilidade as defesas israelenses, lançando o sionismo “interno” numa situação inusitada. Perdendo sua aura de invencibilidade (apesar de as IDF terem sido derrotadas pelo Hezbollah, no Líbano, em 2006) a sociedade sionista entrou em parafuso, tornando-se melancólica e ainda mais raivosa. Um certo peso na consciência produzido pela constatação da falibilidade da sua defesa militar do seu país (ou mesmo a responsabilidade sobre a situação do povo palestino) floresceu em muitos de seus habitantes. O assunto “questão palestina” tornou-se um tema global e expôs alguns aspectos de uma crise moral em parte do “sistema” sionista interno. Excetuando o narcisismo dos nacionais de que a superioridade tecnológica é vital, trazida com a aviação e suas bombas devastadoras capazes de destruir as construções e ceifar vidas, a armadura de argumentos que procuram demonstrar a validade do ideário sionista entrou em stress. A unidade social da sociedade israelense só é mantida, como visto acima, com os fortes aportes econômicos e militares do capitalismo central produzindo um generoso estado de bem-estar social; caso este não existisse e, além disso, os sionistas tivessem que tirar do próprio bolso os custos da guerra, afloraria na sociedade sionista a crise social, que se manifestaria num conflito distributivo profundo. Nesta hipótese vários setores parasitários (colonos, religiosos, negócios subsidiados pelo Estado em função do estado de guerra) seriam questionados (e se questionariam uns aos outros) e, então, a unidade povo-sionismo se romperia como um castelo de cartas.
O desenrolar dos episódios tem demonstrado um desgaste apenas moral do sionismo como um todo mas, insistimos, nada indica uma crise real. O “sistema” sionista possui uma capacidade ímpar de absorver impactos adversos e reagir produzindo narrativas que o esterilizam contra críticas. E mesmo as dificuldades econômicas – trazidas pelos custos da atual agressão, pela convocação de grande número de civis para participar como militares do ataque à Gaza que se ausentaram dos seus postos de trabalho e a virtual paralização das atividades econômicas -, não nos parece que produzirão efeitos deletérios no longo prazo. Aqui entrará em operação o caráter de “sistema” do sionismo, capaz de articular suas necessidades de país periférico com as funções de país subimperialista. Infelizmente, para o povo palestino, a piora momentânea da situação no front externo do sionismo não é capaz de produzir fatos positivos para suas atuais condições de vida. Muito pelo contrário, a voracidade das ocupações e humilhações aos palestinos da Cisjordânia (e mesmo dos palestinos que vivem no interior do Estado de Israel) se ampliou neste período de ataques à Faixa de Gaza, indicando que a dinâmica expansionista do sionismo “interno” continua.
Mas mais do que a intuição, queremos fundamentar a percepção (para futuras pesquisas empíricas) que todo o desgaste que o sionismo sofrerá com os ataques à Faixa de Gaza e a perda (temporária) de aliados estratégicos no mundo árabe será compensado por uma nova fase de atuação do sionismo “externo”. A ação internacional do Estado de Israel já há muito tempo vem se alargando, construindo uma espécie de sionismo “externo” 2.0, não mais circunscrito apenas aos problemas intestinos do Oriente Médio. Desde a invasão do Canal do Suez (1956), passando por inúmeras intervenções exteriores (como na crise da Rússia com a Geórgia, em 2008), a presença de investimentos do estado sionista em vários países africanos, ligações com o regime de apartheid sul-africano, até a caprichosa declinação do atual mandatário do Estado de Israel em não apoiar materialmente a Ucrânia, fica cada vez mais claro que uma espécie de imperialismo próprio do sionismo está maduro. A atuação arrogante do diplomata deste país – buscando desgastar a posição brasileira junto ao resgate dos seus nacionais e os pronunciamentos críticos do presidente Lula sobre a atuação do Estado de Israel na guerra -, feita com parlamentares da oposição (e um encontro com um ex-presidente já condenado judicialmente), demonstra que o comportamento nada diplomático por parte do estado sionista expressa um apetite pela intervenção em aspectos da vida interna dos países, conduta típica dos países imperialistas. Uma análise pormenorizada da política externa do estado sionista será, em breve, um instrumento importante para compreender não só os destinos desta política pública, mas também do próprio funcionamento dos mecanismos imperialistas do futuro.
Em nossa suposição um novo sionismo “externo”, o 2.0, já está em operação. A proposta política do presidente Trump para uma reconfiguração do Oriente Médio elaborada em seu mandato corrobora este estágio de desenvolvimento da política externa do sionismo “externo”. Também encontramos uma comprovação desta nova fase do sionismo “externo” quando do discurso do mandatário do governo sionista em setembro de 2023 na ONU, onde é apresentado um (novo) mapa do Oriente Médio, agora sem nenhuma referência ao povo palestino. O que estamos indicando é a transformação do Estado de Israel num global player de peso, intermediando a circulação de riquezas e vendendo produtos militares/inteligência e outras tecnologias para países dependentes que não receberam o “convite” e não puderam investir em tecnologia para atender as suas necessidades. Daí partirá o sionismo “externo” para empréstimos e financiamentos para variadas necessidades dos países não desenvolvidos, entre elas o déficit comercial, o que os tornará em “clientes” do poderio do sionismo “externo”. Um próximo passo, como já indicado acima, poderá ser a interferência na política interna destes países “clientes” para que os governantes não venham contrariar os interesses da ação imperialista do sionismo.
Quanto à venda de materiais de defesa e inteligência (que muito caracteriza o que é o sionismo “interno”) notamos que está em marcha há setenta e cinco anos na relação sionismo–povo palestino a construção de um verdadeiro “laboratório de contra-insurgência”. Este é agora utilizado como plataforma para exportação de produtos sensíveis no campo da segurança e inteligência e teste de novos armamentos tornando-se, portanto, um fator poderoso de regulação social das classes menos favorecidas no mundo capitalista[5]. Esta situação é, também, parte de uma espécie de “contrato” que o sionismo estabeleceu na sua relação subimperialista com os países centrais: criar, desenvolver e viabilizar economicamente métodos e equipamentos para reprimir a insurgência social.
Dentro deste quadro, e fiel aos argumentos das origens dos pródigos recursos para a reprodução social do Estado de Israel, diríamos que até o momento o sionismo “interno” alimentou e manteve o “externo”. Este último se desenvolveu enormemente e agora pode prescindir do primeiro como fonte para recursos da sobrevivência da economia. Ou seja, o laboratório de contra-insurgência já realizou sua tarefa mais árdua; é chegada a hora de se lançar definitivamente na operação do sionismo “externo” 2.0. Isto tornará a população palestina ainda mais vulnerável à violência sionista e exposta à uma espécie de “solução final”. Resta para a sua existência enquanto entidade nacional o funcionamento automático da “bomba demográfica”, a única forma de evitar uma rápida solução definitiva para o tratamento da questão palestina pela ótica exclusiva dos sionistas. Esta, talvez, tenha sido a percepção dos vários grupos do islã político que participaram dos episódios de 7 de outubro e o que os impulsionou a fugir da letargia e imobilismo na sua ação contra o Estado sionista, que está aceleradamente transformando sua ação internacional. Aqui, reforçamos, diferente de análises surgidas na mídia de que o 7 de outubro seria o 11 de setembro de Israel, supomos frontalmente contrários à esta fantasia já que para o povo palestino TODOS os dias são 11 de setembro.
Seja qual seja a causa da falha de segurança que levou ao ataque de 7 de outubro, o saldo é um aceleramento vertiginoso e quase sem interfaces da eliminação/neutralização/expulsão da população palestina da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Aproveitando uma “janela de oportunidades” que estava avidamente sendo esperada e preparada pelo estado sionista, o atual massacre em Gaza também foi equacionado para ser um mecanismo midiático de explicitação psicológica da escalada de violência para produzir o fim da população palestina no território sionista. A reação “desproporcional” já continha o cálculo político de administração da repulsa retórica por parte dos cidadãos solidários ao povo palestino. Mas, lembramos que, o tamanho do desgaste internacional na relação sionismo-população palestina tem o tamanho exato dos problemas dos mantenedores externos do projeto sionista. Ou seja, a eventual deslegitimação que o massacre em Gaza terá para o “sistema” sionista o tamanho exato da crise da hegemonia americana.
Concluindo, o apoio à causa palestina por parte da esquerda depende do aprofundamento da análise já estabelecida, fugindo de clichês e percepções pré-concebidas. Devemos reagir à desmobilização e a apatia políticas porque somos obrigados a constatar que as previsões mais realistas sobre os destinos do povo palestino são as mais pessimistas que podemos elaborar. Se temos a tristeza de constatar que as condições de vida da população palestina e seu imaginário político foi destroçado pelo imperialismo ocidental e seu preposto sionista, não podemos perder de perspectiva a necessidade premente de reconstituirmos estes dois elementos a partir de uma firme posição cognitiva, analisando pormenorizadamente as causas desta situação. Nos cabe, então, a solidariedade e a consideração teórica de que a classe trabalhadora palestina está sofrendo uma colossal extração da mais-valia da pior forma possível. A riqueza das armas, como qualquer mercadoria que possui valor de troca, só se faz quando estas são utilizadas em grande quantidade. E, daí, a sua razão social enquanto mercadoria que possui tempo socialmente médio necessário à produção vai se consolidar no momento exato em que a mercadoria arma realiza a sua economia política nos corpos da população palestina, produzindo abundante mais-valia.
Palestina livre do rio ao mar
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Notas:
[1] SATRE, J-P. Colonialismo e Neocolonialismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968
[2] DEUTSCHER, I. O Judeu Não Judeu. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970
[3] WALLERSTEIN, Immanuel. The rise and future demise of the world capitalist system: concepts for comparative analysis. Comparative Studies in Society and History, Cambridge, v. 16, n. 4, p. 387-415, Sept. 1974. e WALLERSTEIN, Immanuel. World-system analysis: an introduction. London: Duke University, 2004.
[4] Cf. LUCE, Mathias Seibel. A Teoria do Subimperialismo em Ruy Mauro Marini. Porto Alegre, PPGH-UFRGS, 2011.
[5] Cf. LOEWENSTEIN, Antony. The Palestine Laboratory. London, Verso, 2023