Rosa Luxemburgo: Desempregado!
Apresentação do CVM
Apesar dos 109 anos decorridos desde a publicação original do artigo de Rosa Luxemburgo disponibilizado neste portal (texto a seguir), sua atualidade impressiona. Escrito [1] na véspera da Primeira das duas grandes guerras mundiais mais devastadoras da história da humanidade, o artigo situa o desemprego e a fome enquanto consequências inevitáveis do capitalismo. Se as transformações pelas quais passou o sistema capitalista são inegáveis, o capitalismo ainda é, porém, o mesmo.
O quadro de “estagflação” em que se encontra a economia capitalista no mundo continua a reproduzir a tendência apontada pela revolucionária alemã. É o que se pode constatar ao ler Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo: Tendências 2022, o último relatório da Organização Mundial do Trabalho (OIT): o desemprego poderá alcançar 207 milhões de pessoas em 2022, superando o nível de 2019 em torno de 21 milhões. A OIT apresenta a previsão de um déficit de 52 milhões de postos de trabalho em tempo integral, dada a jornada de 48 horas semanais. Por outro lado, ainda que a fome endêmica seja uma característica predominante na periferia do sistema capitalista, aproximadamente uma em cada 3 pessoas no mundo, ou 2,37 bilhões numa população mundial estimada em 7,8 bilhões (2020) não tinham acesso a comida adequada, conforme o relatório Estado de segurança alimentar e a nutrição no mundo (2021) da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês).
A lei “natural” da economia capitalista impõe, periodicamente, através das crises econômicas, o desemprego como destino para uma parcela da força de trabalho explorada; porém esta lei, justificada pela competição intercapitalista que arrasta, em escala mundial, todos os países, nada tem de natural. Pelo contrário, as forças produtivas desencadeadas pela concorrência – na qual avulta a China como oficina industrial do mundo – criaram um nível de automação (informatização generalizada, robotização, internet das coisas) tão avançado que tornam o capitalismo cada vez mais desnecessário e retrógrado. A produtividade extremamente elevada chega a ponto de permitir que crianças, jovens, idosos e pessoas com limitações possam ser mantidas fora da população economicamente ativas e, por sua vez, de sustentar a taxa de desemprego vigente. Tal produtividade deve-se, por um lado, à exploração do trabalho intenso da parte ativa do exército industrial, o qual permite a transferência de valor das aplicações da ciência à produção, sob a forma de capital fixo, para as mercadorias e bens; e, por outro, ao conhecimento social incorporado gratuitamente por todos à circulação dessas mercadorias e bens, viabilizada na informática acessível universalmente hoje por celular. Confirma-se, assim, o prognóstico formulado por Marx na escrita de O Capital: a gigantesca riqueza gerada pela ciência e pela cooperação social continua a ser medida pela bitola estreita da mais-valia. [2]
A atualidade da análise e da denúncia de Rosa Luxemburgo nos leva também referendar a defesa da necessidade do socialismo enquanto alternativa ao capitalismo nas condições do século XXI. Que advirá não de um processo espontâneo ou “natural”, fundado nas contradições ou tendências destrutivas que reformas progressivas pela via social-democrata poderiam impulsionar, mas das possibilidades inscritas nas lutas de classes, em que pese a onda de direitização política em que nos encontramos por todo o lado e as nuvens escuras acumulando-se no horizonte, prenunciando a tempestade da guerra. A palavra de ordem formulada por Engels, reafirmada por Rosa Luxemburgo, Lenin e outros revolucionários no século passado, define o nosso desafio e empenho: socialismo ou a continuação da barbárie! (CVM)
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[1] Arbeitslos, 1913. Disponível em:
– Sozialistische Klassiker 2.0, acessível pelo link: https://sites.google.com/site/sozialistischeklassiker2punkt0/luxemburg/luxemburg-zustaende/rosa-luxemburg-arbeitslos
– Desempregado! Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos, vol. I, organizado por Isabel Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[2] Marx K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; 2011. p. 589.
Desempregado![1]
Rosa Luxemburgo
O ano que se aproxima do fim, que começou com um período de terrível desemprego para a classe trabalhadora alemã, constitui também um ano de jubileu na história de sofrimento e luta do proletariado europeu. Há exatamente meio século, em 1863, a famosa crise chamada Fome do Algodão atingiu seu clímax na Inglaterra. Um quarto de milhão de homens e mulheres completamente desempregados, mais de 1, 5 milhão empregados apenas alguns dias por semana em troca de míseros centavos; meio milhão de pessoas dependentes do apoio público – à luz ofuscante dessa miséria em massa, é que se deveria mostrar, pela primeira vez de uma forma clara, o que a sociedade existente estaria disposta a fazer pelas vítimas famintas de seu sistema e qual era o seu ponto de vista decisivo diante de toda essa miséria. Foi nessa época, quando os proletários de Lancashire, fartos de passar fome, se preparavam para uma emigração em massa para a Austrália, que apareceu o manifesto dos fabricantes, no qual os representantes dos sacos de dinheiro declaravam: sob nenhuma circunstância os empresários poderiam tolerar que parte de sua “maquinaria” – ou seja, a força de trabalho viva – deixaria o país. Porquanto seriam necessários novamente “em um, dois, três anos” quando os negócios voltassem a crescer. “Um, dois, três anos” de fome em massa: esse é o destino periódico da “máquina viva” sob o domínio do capitalismo – um destino que aparece para o capital como uma lei inviolável da natureza e, de fato, é tão inviolável quanto o capital joga peteca com milhões existências proletárias apenas com base em suas considerações de lucro, lançando-os ora no purgatório do excesso de trabalho, ora no inferno do desemprego completo. A vantagem dos magnatas do algodão de Lancashire reside no fato de não ter surgido nenhuma solução contra o desemprego em massa enquanto as forças de trabalho têm permanecido, “maquinaria viva”, propriedade privada do capital – apesar disso ter sido dito há meio século atrás, com uma franqueza cínica.
Mas eles fizeram ainda mais pelo esclarecimento contínuo da classe trabalhadora. Resistiram, com unhas e dentes, a qualquer ação governamental em grande escala, mesmo aquelas para aliviar o sofrimento de centenas de milhares, e insistiram que os desempregados deveriam ser maltratados no máximo com esmolas opressivas, em vez de medidas generosas. Estava criado, assim, há 50 anos, o programa segundo o qual o problema do desemprego tem sido praticamente tratado pelos Estados capitalistas desde então.
Hoje estamos mais uma vez no início daquelas crises periódicas que afligem a sociedade com a pontualidade de um relógio. Foi apenas 15 anos atrás que nos disseram que o ciclo de dez anos de crises de Marx era um ponto de vista ultrapassado, pertencente aos anos grosseiros do capitalismo, e que as catástrofes econômicas estavam se tornando cada vez mais brandas e logo pertenciam ao reino dos contos da carochinha. Diante desta profecia, quantas respostas demolidoras, golpe após golpe! Nos anos 1900-1902 a primeira crise do batismo do novo século; 1907-1909, depois de quase cinco anos, a segunda crise mundial, e agora, após um lapso de apenas quatro anos, estamos no meio da primeira onda de uma terceira crise.
Mas a realidade superou todo o pessimismo de Marx também em outros aspectos. No século passado, a crise alternava-se com a prosperidade, não apenas para os capitalistas, mas também para os trabalhadores. Os altos salários durante os tempos de bons negócios e os baixos preços dos alimentos durante a crise foram, para as massas proletárias, momentos de alívio nessa oscilação súbita. Em sua obra principal, Marx ainda descreve os salários geralmente altos como regulares “procelárias da crise”.[2] Desde o início do novo século, os “petréis”[3] desaparecem e a calamidade da crise desce sobre as massas, sem que elas tenham podido, durante o período de prosperidade, alcançar um mínimo de bem estar. Por outro lado, o aumento constante dos preços, que deprime a ascensão material da classe trabalhadora quando a situação dos negócios é boa, torna-se um flagelo especial que aumenta a gravidade do desemprego até o ponto da amarga miséria em massa. Hoje, os capitalistas acumulam quantidades cada vez maiores de ouro em cada boom da indústria, enquanto a situação dos trabalhadores oscila entre a fome crônica quando estão sobrecarregados de trabalho e a fome aguda quando estão desempregados. A oposição entre capital e trabalho é assim elevada ao máximo, o jugo do capital torna-se insuportável. O desânimo, o desespero e, finalmente, a renúncia ao respeito próprio e à dignidade, tal como se expressam precisamente no crescimento do “movimento amarelo” [Gelben-Bewegung],[4] estão tomando conta de setores mais amplos da classe trabalhadora hoje.
Temos apenas um remédio eficaz contra essa tendência deprimente: a transformação revolucionária das consciências. Claro, não se pode alimentar uma pessoa faminta com ideais revolucionários. Mas seríamos charlatães, não merecedores da confiança das massas, se quiséssemos acalmar os famintos com a menor esperança, como se tivéssemos uma panacéia [solução mágica] em nossos bolsos contra a fome crônica e aguda das massas no atual período de desenvolvimento capitalista. Seríamos charlatões infames e cruéis se tentássemos seriamente convencer os proletários famintos de que todos os nossos projetos e demandas para aliviar a situação dos desempregados finalmente encontrarão algo além de um sarcástico encolher de ombros das classes dominantes em seu frenesi imperialista. Isso seria o mais imperdoável meio século depois que Lancashire declarou em termos inequívocos que Deus e a natureza reservavam apenas uma coisa para as vítimas da crise capitalista: esperar famintos por “um, dois, três anos” até que o capital precisasse de novo de sua “maquinaria viva”.
Você não pode satisfazer alguém faminto com ideais revolucionários, mas pode dar-lhe fé no futuro e, assim, coragem e respeito próprio; pode despertar nele energias espirituais que lhe dá superioridade interna e o fortalece diante do agravamento do sofrimento físico. O proletário faminto é capaz tanto da mais profunda ruína espiritual, quanto do mais elevado heroísmo revolucionário. Na Revolução de Fevereiro de 1848, o proletariado parisiense, sofrendo terrivelmente com o desemprego, voluntariamente passou fome durante três meses para dar tempo ao governo provisório de introduzir a “república social”. Foi a crença sólida em seu ideal socialista que ensinou as massas parisienses a suportar fome por meses com coragem, paciência e dignidade e, finalmente, lutar e morrer por esse ideal nas barricadas. Exigiram que escolas e bibliotecas fossem abertas para eles em tempos de crise, para que pudessem aproveitar seu lazer forçado para o seu desenvolvimento intelectual. Eles estabeleceram seus próprios termos e os aplicaram por meio de ameaças e violência; mas nem por um momento eles abandonaram sua própria dignidade de classe. Foi a ascensão intelectual, a energia de luta que contagiou a classe trabalhadora inglesa às vésperas da fundação da Internacional, que a predispôs a suportar a extrema dificuldade com coragem e consolo. E na Revolução Russa, o idealismo de massa realizou milagres de auto sacrifício e espírito de luta, capazes de levar o proletariado através do mar de sofrimento do desemprego, da fome e da perseguição antes, durante e depois da revolução.
Também agora na Alemanha, os efeitos devastadores do desemprego só podem ser combatidos, em última análise, mediante uma agitação de massas que apela ao que há de melhor no proletário moderno: ao seu inesgotável idealismo revolucionário, que estimula o que há de mais forte nele – a vontade de agir e a crença em seu próprio poder. O desânimo das massas e a enxurrada lamacenta do “movimento amarelo”, esse autoabandono do proletariado, somente serão superados por uma onda ardente de agitação socialista capaz de elevar o proletário faminto acima de si mesmo, colocando ao seu alcance suas tarefas revolucionárias, deixando claro para as massas que devem aceitar os maiores sacrifícios pessoais exigidos pela luta com alegria e desprendimento, a fim de apressar, por meio de ações ousadas, o colapso de um sistema que periodicamente lhes impõe as mais terríveis privações em nome do lucro capitalista.
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Notas:
[1] Publicado na “Correspondência Social Democrata” em 27 de dezembro de 1913. Baseado em Collected Works Volume 4, 1928, pp. 166-169.
[2] Pássaros de mau agouro.
[3] Petrel, pardela ou pardelão é uma ave marinha que frequenta os oceanos e nidificam em ilhas isoladas.
[4] De acordo com o Dicionário do CPDOC/FGV, a origem do termo sindicalismo amarelo “foi o syndicalisme jaune (sindicalismo amarelo) francês, corrente sindical minoritária, estruturada em federação nacional em 1902, financiada pelo patronato, oposta às greves, defensora da livre iniciativa, contrária à intervenção estatal, nacionalista, antissocialista e católica”.
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EXPERIENCIAS DE LUTA DA CLASSE OPERÁRIA