A Ucrânia na zona de tensão entre a Rússia e o ocidente
Lothar Wentzel
Há algumas semanas as armas silenciaram no Leste da Ucrânia. Na Bielorrússia as partes em conflito negociam sobre o futuro da Ucrânia. O processo está em aberto. Entretanto, pode-se tentar elaborar um primeiro balanço parcial do conflito.
A queda da União Soviética foi uma das grandes catástrofes políticas do final do século XX. O Partido Comunista estava tão esgotado, que não tinha mais condições de controlar o processo político. Ao contrário da China, onde o antigo Partido Comunista promove a conversão planejada do país ao capitalismo, e assim ao menos preserva os interesses nacionais, a União Soviética afundou no caos. Um populista incapaz e alcoólatra à frente do governo – Boris Yeltsin – fortaleceu ainda mais esse processo.
Qual foi o resultado? Ao redor da União Soviética surgiram novos estados nacionais e mesmo o núcleo territorial de língua russa dividiu-se em quatro estados: Bielorrússia, Ucrânia, Cazaquistão e Rússia. Numa selvagem luta pelo poder, surgiram grandes corporações capitalistas sobre a base dos grandes complexos industriais soviéticos, com os ditos oligarcas no comando, repartindo a herança do comunismo entre si e tornando-se os verdadeiros governantes. No período de governo de Yeltsin, o Ocidente conseguiu forçar uma abertura do mercado russo para si. Capital no valor de mais de 50 bilhões de dólares americanos – que seria urgentemente necessário ao país – fluiu para o exterior
O capitalismo que surge agora na Rússia não é um sistema econômico moderno e dinâmico, pois se baseia em grandes monopólios, com pouca concorrência a temer. A infraestrutura estatal é fraca, a corrupção está alastrada, o campo para inovações é reduzido. Apenas na indústria de armamento, para a qual fluíram grandes investimentos, existe um alto nível de desenvolvimento. A Rússia ainda tem, após os EUA e a China, o terceiro maior orçamento militar do mundo. O campo é largamente improdutivo e não pode nem mesmo alimentar o próprio país.
Entretanto, a Rússia possui grandes riquezas naturais, em especial o petróleo e o gás natural. Junto com os armamentos, são principalmente essas matérias primas que a Rússia exporta. Com isso ela pode importar meios de subsistência e outras mercadorias do Ocidente e garantir o abastecimento da população. Contudo, grande parte das pessoas vive na miséria, em especial os aposentados e a população rural. A desigualdade no país cresceu fortemente. Enquanto os oligarcas e seus apêndices podem usufruir de todo o luxo, a maioria da população tem que batalhar no trabalho.
A classe operária na Rússia está resignada e politicamente passiva. A decepção com o comunismo é profunda. No dia a dia, o clientelismo está disseminado. Muitos se tornaram seguidores do seu respectivo oligarca, que lhes oferece alguma condição de subsistência com o emprego. Correntes nacionalistas também se disseminaram. A única coisa positiva que ficou da época soviética é a lembrança dos anos 70 sob Brejnev, quando ainda dominavam “ordem e decência” e uma certa prosperidade. Para alguns, ainda tem um papel a tradição da “grande guerra pátria”, da vitória com grande sacrifício sobre a agressão alemã. Entre os operários e a população russa em geral, está disseminado o sentimento de humilhação nacional decorrente da perda da posição de potência mundial, da divisão do território de língua russa e do fraco desenvolvimento do próprio país.
Forças socialistas quase não existem fora de pequenos círculos. O que se chama hoje de Partido Comunista é um monte de populistas nacionalistas. Para a classe operária é importante organizar-se novamente em torno de seus interesses e criar organizações independentes. Sindicatos independentes – cuja raiz já existe hoje – podem ter um grande papel nisso. Tais organizações precisam procurar se unir com forças – principalmente da intelectualidade – que lutam contra o capitalismo corrupto e autoritário e pela democratização da sociedade. Este será, entretanto, um longo caminho.
A tomada do governo por Putin foi saudada por grande parte da população, porque ela conduziu o país novamente à estabilidade e a uma melhor defesa dos interesses nacionais, depois dos tempos caóticos de Yeltsin. Putin governa apoiado pela maioria dos oligarcas, pelos militares, pelo aparato estatal e pelo controle das mídias mais importantes, especialmente da televisão. Ocorrem legitimações por meio de eleições, mas na verdade governa-se autoritariamente. Os blocos no poder fazem acordos entre si e Putin atua como moderador desse processo. Ele provém do serviço secreto e sabe avaliar esses processos e conectá-los a suas próprias ideias. O seu objetivo é trazer de volta à Rússia uma parte das suas antigas forças. O apelo ao sentimento nacional russo é um elemento essencial de seu domínio. Assim, ele permanece um político pragmático, que pratica a Realpolitik.
Na Ucrânia, reproduziu-se um processo parecido ao da Rússia. No processo de queda da União Soviética, as elites regionais acreditaram poder defender melhor os seus interesses no turbilhão da derrocada através de um Estado próprio. Surgiu, da mesma forma que na Rússia, um capitalismo oligárquico. A grande indústria pesada não tinha condições de concorrência no mercado mundial. Somente a indústria de armamento tinha condições de exportar. Apesar das melhores relações com o Ocidente, o desenvolvimento econômico na Ucrânia permaneceu tão problemático quanto na Rússia.
A Ucrânia não pode recorrer a um sentimento nacional comum. Os ucranianos na União Soviética eram considerados como ricos e amantes da liberdade e, portanto, pouco confiáveis. Eles sofreram muito, especialmente na coletivização do campo, dos anos 1929-1933. A metade da população entende-se como russa, a outra metade, mais como ucraniana. A língua ucraniana é um dialeto, com algumas variações do russo, mas não é uma língua própria. Em grandes partes da Ucrânia, uma língua mista é falada.
A Ucrânia Ocidental ao redor de Lemberg (Lwiw) possui uma particularidade. Esse território não muito grande pertenceu à Áustria até 1918, depois, até 1939, à Polônia, e foi ocupado pela União Soviética em 1939 em decorrência do pacto entre Hitler e Stalin. Os ocupantes stalinistas trataram mal a população. Depois do ataque das tropas alemãs à União Soviética, muitos dos ucranianos de lá, de espírito nacionalista, apoiaram o exército alemão e prestaram serviço como “voluntários” à Wehrmacht. Alguns foram utilizados também para o extermínio de judeus. Após a derrota do exército alemão, a região caiu novamente em poder da União Soviética. Restos dessas forças nacionalistas conduziram uma guerra de guerrilhas até 1947 contra o exército soviético. Nessa região, ainda hoje há forças nacionalistas ucranianas fortes.
Na Ucrânia, sucederam-se presidentes que ora queriam cooperar mais fortemente com a Rússia, ora com o Ocidente. Todos provêm do espaço dos oligarcas. Todos decepcionaram rapidamente os seus eleitores. Também o pró-ocidental Viktor Yuchtchenko, que chegou ao poder apoiado por um movimento de massas, perdeu logo a confiança, de modo que, em 2010, com Yanikovitch, foi eleito novamente um presidente empenhado em buscar um equilíbrio com a Rússia.
Em novembro de 2013, a União Europeia (UE) fez à Ucrânia a oferta de um tratado de associação, que compreendia principalmente a liberdade aduaneira entre o país e a UE. Essa oferta não foi combinada com a Rússia. A UE não dispõe de uma política externa própria. Enquanto a Inglaterra se adapta quase incondicionalmente aos interesses americanos, a França e a Alemanha tentam – com ideias diferentes – exercer uma política independente. A Alemanha está – também por interesses econômicos – mais interessada num equilíbrio com a Rússia. Explica-se o procedimento diletante da UE pelo fato de que apenas era possível a unidade em relação à oferta, mas não em relação ao método.
Para a Rússia, o acordo significava um perigo imediato, pois as fronteiras com a Ucrânia são abertas e um afluxo de mercadorias ocidentais significaria, por ano, um prejuízo de 2 bilhões de dólares em taxas alfandegárias, além de outros problemas. Até hoje não há fronteiras aduaneiras entre a Rússia, a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia. Então, os fluxos de mercadorias da UE não seriam mais controláveis. Ainda mais importantes são os perigos no longo prazo. A Rússia vê no acordo uma antessala para a entrada da Ucrânia como membro da UE e da OTAN. Na época da reunificação alemã, foi prometido à Rússia que a OTAN não se expandiria para a Europa Oriental. Nesse meio tempo, todos os países da Europa Oriental estão na OTAN – mesmo aqueles, como a Estônia e a Letônia, que têm uma fronteira conjunta com a Rússia. Até mesmo a Geórgia esforça-se para ser membro da OTAN. Por isso, é inevitável que surja na Rússia a impressão de que é levada adiante uma política de cerco, dos tempos da Guerra Fria.
Isto não é injustificado. Os EUA olham a Rússia, como antes, com grande desconfiança. A Rússia dispõe ainda de um grande potencial em armas atômicas e foguetes intercontinentais. Os EUA querem apequenar a Rússia e, por trás dos panos, exortaram várias vezes a uma pressão contra o país. Finalmente, da mesma maneira encoberta, apoiaram militarmente o governo ucraniano.
Muitas pessoas na Ucrânia saudaram o acordo de associação com a UE com grande alegria. Ligada a isso está a esperança de que a UE as ajude a sair de sua miséria econômica. Quando o Presidente Yanutchenko, por pressão da Rússia, adiou a assinatura do acordo, surgiu um movimento de massas que pressionou pela queda do presidente. Nesse movimento, uniram-se diferentes elementos: jovens que queriam uma sociedade mais democrática, pessoas esperando benefícios econômicos, mas, também de forma crescente, forças nacionalistas da Ucrânia Ocidental, sem que estas tivessem dominado as manifestações. Os operários tiveram apenas um papel limitado nesses comícios; forças de esquerda apoiaram os elementos democráticos nos movimentos, mas procuraram também trabalhar por um equilíbrio com a Rússia.
Nesses conflitos, ocorreu a divisão do país. No sul e no leste houve declarações de simpatia pela Rússia. Em primeiro lugar, separou-se a Crimeia. Só em 1954 a Crimeia havia sido integrada à Ucrânia. Em março, procedeu-se a um plebiscito – não reconhecido nem observado internacionalmente. O resultado foi de mais de 90% a favor da integração à Rússia, muito alto, sem espelhar o estado de espírito da população, embora possa-se assumir que a maioria é favorável à integração na Rússia. No caso da Crimeia, deve-se acrescentar que lá está estacionada a frota russa do Mar Negro. Paralelamente a isso, aconteceram movimentos separatistas no Leste da Ucrânia. Foram movimentos espontâneos, mas que foram influenciados e patrocinados pela Rússia.
O governo russo toma o caminho de um conflito limitado com o Ocidente. Seu mais importante meio de domínio ideológico é o sentimento nacional russo. Portanto, ele não pode desvencilhar-se da demanda por solidariedade com a população ligada à Rússia, sem ele próprio arriscar suas bases de poder. Por outro lado, é militarmente e, antes de tudo, economicamente demasiado fraco para entrar numa confrontação total com o Ocidente. Nos bastidores, aparentemente, ocorrem lutas para se decidir até onde se deve ir. A política russa, portanto, é também oscilante.
Da mesma forma o Ocidente quer apenas um conflito limitado. Ele esclarece desde o início que não interviria militarmente. Em vez disso, foram decididas nesse meio tempo sanções econômicas que alcançam sensivelmente a Rússia. Também no Ocidente não há uma posição unificada. Os EUA e a Inglaterra estão interessados num enfraquecimento mais amplo da influência da Rússia, enquanto a Alemanha e a França se dão por satisfeitas com o status quo. Também no Ocidente, a política foi oscilante.
Em março, foi elaborado um compromisso, sob a liderança do Ministro do Exterior da Alemanha. Ele previa eleições parlamentares imediatas, a renúncia do antigo presidente no outono e uma autonomia local para o Leste da Ucrânia. Esse compromisso não era adequado para os russos, nem principalmente para os nacionalistas ucranianos. Então, ocorreu um tiroteio no local das manifestações, sob condições ainda não esclarecidas, no coração da capital Kiev. Com isso, o antigo presidente foi deposto e, posteriormente, eleito um novo. Duas circunscrições no Leste da Ucrânia não participaram da eleição.
O governo ucraniano, comandado pelo pró-ocidental e recém-eleito oligarca Porochenko, tentou, em primeiro lugar, solucionar militarmente o conflito no Leste da Ucrânia, mas acabou falhando por causa da falta de disposição de luta do seu próprio exército, cuja maioria de oficiais e soldados não queria o conflito com a Rússia. Por seu lado, os russos apoiaram os separatistas com material, especialistas e cerca de 1000 soldados. Após sucessos iniciais dos ucranianos, deu-se um impasse, sob o qual foi concluído um cessar-fogo. De fato, o governo russo não está especialmente contente com os separatistas, entre os quais combatem elementos duvidosos, e o governo ucraniano terá dificuldades com as ligas de voluntários do seu lado, das quais participam muitos nacionalistas.
Após o cessar-fogo, houve negociações. Ao mesmo tempo, a UE fechou um acordo de associação com a Ucrânia, onde, entretanto, o ponto mais importante, o acordo alfandegário, foi adiado por um ano. Desenhou-se um compromisso: a integração da Crimeia na Rússia é aceito, no Leste da Ucrânia surge uma região autônoma dentro do Estado, a Rússia garante um abastecimento financiável de gás à Ucrânia e o acordo alfandegário com a UE é negociado de novo. Renuncia-se à entrada da Ucrânia na UE e na OTAN. As sanções contra a Rússia são levantadas passo a passo. Mas esse processo não está assegurado.
Se vier a ocorrer, a Rússia teria tido um pequeno sucesso, mas pago muito por ele. Que a Rússia se defenda contra um cerco, é compreensível. Que a Rússia tente unificar a população russa novamente em um Estado, é aceitável, se isso ocorrer em base voluntária, no sentido da autodeterminação dos povos. Mas os conflitos promoveram principalmente um pensamento autoritário e nacionalista. Porém, isso não resolve nenhum dos gigantescos problemas sociais da Rússia.
A Ucrânia provou-se nesse conflito ser um Estado fraco. Ninguém seriamente na UE quer a Ucrânia como membro. Avalia-se que investimentos da ordem de 300 bilhões de dólares seriam necessários para que a economia da Ucrânia pudesse ter condições de concorrência no mercado mundial. A UE já tem muito o que fazer com o seu próprio desenvolvimento econômico. Por isso, a vontade de trazer esses problemas para dentro da UE é restrita. Antes de tudo, receia-se uma onda de força de trabalho barata vinda da Ucrânia, que inundaria a UE com a sua admissão e que inflaria ainda mais o desemprego. Por isso, a Ucrânia receberá alguma ajuda a mais do Ocidente. Mas, mesmo depois, continuará em grande parte sozinha com os seus problemas gigantescos.
Na Ucrânia, por alguns meses, houve um movimento social, principalmente de jovens, no qual muito foi discutido sobre os problemas e o futuro do país. Esse movimento pereceu com o aguçamento da questão nacional. Na Ucrânia, como na Rússia, as forças que queriam avançar nas questões sociais e democráticas foram de novo colocadas em segundo plano.