Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 16]
Bernardo Kocher
Opera Mundi – 22 de novembro de 2024
No ocaso da administração democrata, Israel está se sentindo livre para explorar a inação de Joe Biden e seus enviados ao Oriente Médio
As eleições norte-americanas ocorridas recentemente demonstraram cabalmente a cacofonia com que o Partido Democrata governou nos últimos quatro anos, exceto em relação à política genocida praticada contra os povos palestino e libanês. Neste aspecto, só poderemos encontrar no próximo mandato exercido pelo presidente eleito Donald Trump algumas poucas diferenças com o governo que se encerra em janeiro do próximo ano. E tais diferenças serão mais de forma do que de conteúdo embora possam, no entanto, aprofundar (não atenuar) as consequências do que está ocorrendo há quatorze meses no Oriente Médio.
Tendo sido eleito em 2020 no rastro de uma desastrosa administração de quem o sucederá, o presidente Joe Biden implementou e reverteu várias políticas públicas (aliás, ausência destas) que os republicanos perigosamente (não) praticaram em período gravíssimo de crise sanitária provocada pela epidemia de Covid. Tendo alcançando resultados razoáveis em termos de crescimento econômico e do nível de emprego, a administração democrata descurou de um conjunto de necessidades da classe trabalhadora – em tese base eleitoral por excelência dos democratas –, e implementou uma política externa agressiva e imperialista.
Em relação ao aumento do emprego, este não foi acompanhado de uma verdadeira satisfação das necessidades de reprodução da força de trabalho. Ainda houve desregulamentação e baixos salários no mercado de trabalho norte-americano. Mesmo a ausência de cobertura social é cabível para atrair para o mercado de trabalho interno uma classe trabalhadora desqualificada e imigrante sem a cobertura legal para se fixar definitivamente no território norte-americano. Esta situação é a ideal para a permanência no país deste setor precarizado da classe trabalhadora de vários países, mas não é capaz de atender às necessidades das famílias documentadas (de imigrantes) e as de origem europeia e afrodescendentes (empobrecidas pelos baixos salários, dupla jornada de trabalho, custos com saúde, aluguéis, etc.). Utilizando o mágico universo dos números positivos das estatísticas, os democratas deram a situação como favorável dentro do quadro eleitoral.
Em termos de política externa, o conflito quase aberto contra a Federação Russa na Guerra da Ucrânia demarcou uma orientação de sustentar aliados duvidosos e atacar inimigos concorrentes na competição capitalista. A Rússia se recuperou da avassaladora crise pós-União Soviética e tornou-se um player global. É esta competição que demarca o verdadeiro linchamento que os EUA promoveu na Europa/União Europeia, fazendo o bloco se curvar pela primeira vez em décadas aos interesses do aliado do outro lado do oceano Atlântico. Assim, a política externa imperialista dos democratas no período 2020-2024 impôs aos europeus uma submissão aos desígnios do capitalismo financeirizado norte-americano, que foi oferecida graciosamente pelos aliados europeus, alegando uma temida expansão imperialista da potência russa.
Esta orientação de guerra por procuração via Ucrânia contra a Federação Russa, já vinha sendo delineada a pelo menos duas décadas, demarcadas pela Revolução Laranja (2004) e a rebelião popular da Praça Maidan (2014). A esperada reação do governo russo às ameaças a sua soberania feitas pelo governo ucraniano ungido e mantido pelos europeus ocidentais e os EUA produziu o encontro da única solução para a falta de negociações entre Ucrânia e Federação Russa, que se dispôs a entabular o jogo de cartas marcadas do capitalismo em crise: a guerra.
Em termos de política interna norte-americana, houve um fortalecimento das expectativas de que a guerra trouxesse benefícios econômicos. Este é o caso, por exemplo, da opção feita pelos europeus pela desconsideração de toda a estrutura de envio de gás natural russo fornecido de forma regular por ótimos preços. Eles optaram por comprar o mesmo produto dos norte-americanos, só que liquefeito, por um preço até quatro vezes maior. Por outro lado, os custos do fornecimento de armas a serem enviadas para o cenário do conflito ucraniano pelos norte-americanos e demais aliados da OTAN produziram o efeito clássico do “keynesianismo bélico”, produzindo um acréscimo razoável de riqueza social e também drenando recursos a serem utilizados para a manutenção do poder financeiro de sustentação do sistema político norte-americano. Assim, a economia da maior potência econômica do mundo vivenciou desde fevereiro de 2022, quando iniciou o conflito na Ucrânia, uma espécie de “efeito gangorra”: gasto público astronômico na produção de armamentos e de guerra e geração de empregos (se bem que estes produzissem efeitos benéficos bem maiores para o emprego qualificado) contra a perda da capacidade do Estado em ampliar serviços sociais e direitos da classe trabalhadora.
O grosso da classe trabalhadora norte-americana fazia uso de um cobertor curto na oferta pública de meios de vida. Os democratas, por seu turno, ficaram cegos com a perspectiva de vitória contra um inimigo que, diferentemente da China, não possuía largos laços de interdependência com a economia americana. Os chineses são essenciais ao funcionamento do equilíbrio macroeconômico norte-americano ao reinvestirem os ganhos de sua balança comercial favorável na compra da dívida pública mobiliária federal, pois eles são os maiores compradores no mercado primário de títulos públicos. A economia russa é apenas e tão somente um competidor, podendo até deslocar os norte-americanos em vários nichos de mercado europeu.
A política social genocida praticada pelos sionistas contra o povo palestino surge no cenário político norte-americano como um momento de consolidação do caminho aberto pela guerra na Ucrânia. Uma nova leva de custos militares para sustentar um esforço de “guerra” de um aliado de longa data no Oriente Médio trouxe para o interior do complexo industrial militar mais uma onda de produção bélica.
Mas o efeito mais notável a ser considerado com a nova situação foi a decisão de sustentar uma política social genocida sob a falsa denominação de que era uma guerra. Este estado de ânimo, dando a impressão de que a guerra é a linguagem política do momento, pode realmente se transformar em uma guerra real. Para que esta orientação se consolidasse foi colocada na mesa a bola vez: a República Islâmica do Irã. Ela é o único elemento faltante para integrar este bloco de conflitos entre um “ocidente coletivo” contra o “eixo da resistência” (no Oriente Médio) mais o seu concorrente mais forte, a Federação Russa.
Neste estado de mal estar político, devido aos resultados adversos dos aliados da OTAN na Ucrânia e aos horrores injustificados praticados pelo aliado sionista, a classe trabalhadora norte-americana não depositou esperanças num eventual mandato de uma representante das minorias étnicas do seu país, Kamala Harris. Se a guerra é o meio pelo qual a economia pode ser estimulada, os resultados não indicavam que estava ocorrendo um acréscimo das condições materiais de vida da classe trabalhadora norte-americana. Neste caso, como ficou claro com a repressão contra os estudantes universitários que se manifestaram contra a política social genocida, restou apenas como rescaldo dos escassos resultados macroeconômicos o aumento da repressão para manter o aparente consenso de apoio aos democratas.
Os resultados eleitorais, ampla e generalizadamente contrários à candidata democrata, foram uma reprovação do eleitor (trabalhadores desqualificados, imigrante com documentos, minorias étnicas como árabes e latinos, etc.) aos meios de violência utilizados pelos aliados naturais para gerar emprego, garantir a democracia no Oriente Médio, e combater o inimigo econômico russo. Mesmo que o novo presidente republicano não represente algo totalmente distinto em termos do uso da repressão, ele ao menos indicou no seu mandato anterior e reafirmou durante a campanha eleitoral uma visão concreta: agora o centro da disputa é a China e, ao que parece, tão somente a China. Em relação à Palestina o novo governo indica que o caminho traçado pelos democratas será desobstruído de pudores e falsas críticas ao governo sionista que aqueles insistiram em manter como orientação.
No ocaso da administração democrata o Estado sionista está se sentindo livre para explorar a inação de Joe Biden e seus enviados ao Oriente Médio. A implementação do “genocídio dentro do genocídio” da população do norte da Faixa de Gaza, particularmente no campo de refugiados de Jabalia, onde 400 mil habitantes sofrem pelo recrudescimento da política social genocida no intuito de tornar a região desprovida de população nativa, indica que a incorporação desta larga porção da Faixa de Gaza é o objetivo do Estado sionista para o futuro próximo. Da mesma forma, o sul do Líbano é ambicionado como uma nova área de ocupação, tal como o norte da Faixa de Gaza. Em ambas as localidades a resistência armada impede a conclusão do conflito, ao menos na ótica sionista. Em Gaza, a pressão é total e a resistência é intensa, mas residual. No sul do Rio Litani, fronteira com o norte do Estado sionista, a entrada dos soldados sionistas no terreno libanês ainda não se deu, devido ao massivo e bem estruturado poder da guerrilha local que obstrui o avanço das tropas e dos tanques Merkava.
Em ambos os casos, a orientação de aplicação da política social genocida se mantém, nestas últimas semanas, mais intensamente em Jabalia (cidade e campo de refugiados próximo). Nota-se um silêncio sepulcral do que lá se passa. O nível de informação do massacre que está ocorrendo é bem menor do que tem sido desde o início da aplicação da política social genocida em outubro de 2023. Sabe-se que a ambição dos sionistas é expulsar ou eliminar fisicamente (para eles tanto faz) centenas de milhares de palestinos para criar uma buffer zone de poder militar consorciado com assentamentos de civis. No Líbano, dada a resistência eficaz da guerrilha no sul, o processo ainda está sendo implementado através do bombardeio de infraestrutura civil e assassinatos de lideranças da resistência em todo o território libanês, e não apenas nas áreas de predominância da população xiita.
Durante a campanha eleitoral norte-americana o governo sionista estava agindo no sentido de consolidar sua orientação para remodelar o Oriente Médio à feição do projeto de formação do Grande Israel. Este modelo de “geosionismo” já está sedimentado no mainstream decisor da política externa sionista. O governo de Benjamin Netanyahu esteve numa posição extremamente confortável no interior da disputa eleitoral, já que ambas candidaturas apoiam decididamente a ação do Estado sionista, se bem que com ênfases distintas. Donald Trump chegou a se pronunciar na campanha sobre as pequenas dimensões do Estado sionista, indicando clara e publicamente (o que não foi feito por Joe Biden) seu apoio ao Grande Israel. Se a vitória de Donald Trump se realizasse, esta orientação não seria posta de lado; se a vitória fosse de Kamala Harris a ação sionista até o pleito eleitoral norte-americano não seria revertida pela sucessora democrata. O que havia sido feito até então já estaria consolidado e, desta forma, seria um empecilho para um novo governante reverter a orientação política de aplicação da política social genocida.
Neste exato momento, ao término da contenda eleitoral, assistimos o governo de Joe Biden recusar-se a se tornar um pato manco em termos de política externa. Ele está abastecendo os arsenais ucranianos de armas, no aguardo de uma reversão do apoio norte-americano no próximo mandato ao presidente Volodymyr Zelenski. Quanto a Palestina, a promessa de suspender quaisquer (meias) barganhas que o atual mandatário tem feito ao governo sionista aponta para a superação de todos os impasses sobre o apoio ao Estado sionista com relação a situação da Palestina. Como já anunciado pelo futuro presidente, ele efetuará a incorporação da “questão iraniana” na agenda de política externa para o Oriente Médio. Não sabemos ao certo qual orientação Donald Trump dará para este inimigo-do-meu-amigo. Ela poderá se dar, em nossa opinião, por dois mecanismos: a) por participação direta ou indireta em bombardeios de saturação e destruição de infraestrutura do país persa (tal como os que têm ocorrido na Faixa de Gaza e no Líbano); ou, b) através da ação de inteligência e apoio material para regiões, grupos étnicos ou setores sociais da sociedade iraniana que se colocam como dissidentes do poder estabelecido. Estes dois caminhos podem servir de substrato para produzir uma ponte para a implementação de uma espécie de revolução colorida no Irã que amplie ou justifique a ação conjugada do imperialismo norte-americano com o sionismo externo na busca de uma pax israelensis no Oriente Médio.
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Lei em PDF: GAZA ANO ZERO PARTE 16