Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 11]

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Publicado no Opera Mundi em 01º de setembro de 2024.

O Estado sionista realiza funções como um Estado subimperialista, sendo regiamente recompensado (econômica e politicamente) pelos seus mentores

 

Conforme viemos afirmando em artigos anteriores, a invasão de Rafah, localizada na parte norte da Faixa de Gaza, a última porção do enclave a ser ocupada – e que consolidou a ocupação física pelos sionistas do território como um todo –, promoveu uma demarcação crucial na política social genocida aplicada contra os palestinos há dez meses. Como o predomínio militar sobre o território por parte dos sionistas se consumou, poder-se-ia esperar o fim da violência. Numa situação normal, ou seja, sem a incidência de uma política social genocida, a vitória do invasor sionista poderia ter sido ali anunciada.

Vários são, no entanto, os fatores que repaginaram esta perspectiva do desenrolar linear dos fatos. Em primeiro lugar, notamos que, nas áreas já dominadas formalmente pelo invasor sionista, continuaram a existir focos de resistência militar por parte do islã político. Atentados contra as forças invasoras foram perpetrados em localidades destruídas e desabitadas, obrigando o poder militar sionista a voltar por onde anteriormente havia passado e, mais uma vez, combater. Dentro deste contexto, criou-se um escudo de proteção argumentativa para tentar justificar a continuidade da brutalidade dos sionistas contra a população civil. Os bombardeiros certeiros e covardes contra estas se incrementaram, tornando-se ainda mais odiosos. Argumenta-se falsamente que a presença de militantes da resistência no seio da população desabrigada é o que justifica os sionistas lançarem bombas de alta quantidade de explosivos sobre os desabrigados. Da mesma forma, a ameaça dos invasores sobre tais populações obrigaram a fuga em massa de refugiados (a evacuação é imposta continuamente), após avisos para que estes deixassem as áreas que foram anteriormente designadas pelos sionistas como “seguras”. A população em fuga célere e desesperada passa, então, a ser atingida por bombas e tiros de snipers e metralhadoras localizadas em tanques e outros veículos. Atualmente, calculam as autoridades da UNRWA, a população desabrigada (cerca de 90% do total) está confinada em cerca de 10% do território do enclave.

Em segundo lugar, dado este cenário dantesco de hipocrisia, já que os militantes armados do islã político estão em túneis ou instalações próprias, distantes da população civil, a política social genocida torna-se cada vez mais depurada. Ou seja, criou-se uma situação esquizofrênica: o islã político não foi derrotado, e, em consequência, como uma espécie de punição, amplia-se a destruição física desmotivada da população palestina. Numa outra vertente: a matança é utilizada pelos ocupantes como um instrumento político, uma faca sobre a cabeça das lideranças do islã político para forçá-las à capitulação ou a lutar sem base social. A derrota militar está sendo compensada por uma macabra destruição da população desarmada, o que se torna, enfim, o verdadeiro objetivo da agressão sionista. Tamanha a intencionalidade de praticar um genocídio por parte dos sionistas pode ser constatada pela recusa destes em permitir que a vacinação infantil contra a poliomielite seja efetivada. As vacinas já estão disponíveis, mas os contínuos deslocamentos e bombardeios não permitem a instalação dos recursos físicos e de pessoal médico para a execução desta medida profilática.

Assim, concluímos, a insistência de que as condições da destruição física e social da Faixa de Gaza é o caminho para se derrotar o islã político cada dia se revela ser de fato um braço da política social genocida e, simultaneamente, um elemento-chave da barganha para o estabelecimento de novas condições de formatação de uma política de longo prazo, a formação do Grande Israel.

Dentro deste quadro, em terceiro lugar, o que realmente está sendo decidido no interior da política social genocida contra o povo palestino são pontos que estarão presentes se, no futuro, a questão palestina puder ser equacionada pelo viés do sionismo. O primeiro elemento aqui a ser considerado são os controles da saída da Faixa de Gaza pelo Norte, o Corredor Filadélfia, e o corredor logístico de todo o enclave a partir de uma faixa de terra no centro do enclave, a construção do Corredor de Netzarim. O primeiro separa a Faixa de Gaza do Egito, mas se localiza na parte interna palestina do enclave. Por acordo firmado entre Egito e o Estado sionista, os dois países estabeleceram que esta divisória não deveria ter presença militar. No momento, o que vemos é que no processo de negociação para a cessação da agressão sionista está a exigência sionista de que o Corredor Filadélfia fique de alguma forma, controlado pelos invasores. As outras partes envolvidas na negociação não aceitam esta imposição. O Hamas almeja um território livre de invasores; o Egito defende o cumprimento preciso dos acordos que concedem neutralidade ao Corredor Filadélfia. Este país indica, mesmo que não expresse com palavras exatas, o maior perigo para a implementação de limpeza étnica do enclave: nada impediria que o imenso poderio militar sionista inventasse uma situação fantasiosa e imploda as barreiras físicas que o governo egípcio interpôs entre o seu território e a alfândega de Rafah. Tal indução de uma crise bilateral criaria uma não menos fantasiosa situação que literalmente empurraria a população palestina para o país vizinho. O Estado sionista resolveria o “seu” problema de população indesejada e, ao mesmo tempo, legaria a responsabilidade do que viria a acontecer depois ao governo egípcio. Em seguida, certamente alegaria como fez outras vezes, que a população palestina se retirou do seu território nacional voluntariamente. Também a narrativa de que o mundo árabe deve se resolver com os seus problemas seria fartamente vociferada pelos sionistas, procurando legitimar a sua presença na terra usurpada. Caso a expulsão se consolide e caso inicie na nova morada do povo palestino uma onda de resistência contra o controle sionista da Faixa de Gaza, estaria sendo criado um pressuposto de que o Estado sionista teria direito de intervir no Egito. No passado foi o que se passou no Líbano e na Jordânia.

As bandeiras de Israel e dos Estados Unidos. (Foto: U.S. Air Force / Matthew Plew)

O segundo elemento, o Corredor Netzarim, está em fase de implantação. Trata-se aqui da construção de uma estrada transversal no centro do enclave (do interior para o Mar Mediterrâneo) que tanto possibilitaria a maior mobilidade de tropas para o controle militar da população civil palestina quanto abriria a possibilidade de dividir o enclave em vários territórios independentes uns dos outros (com outros caminhos rodoviários exclusivos à circulação de sionistas), cortando as conexões entre as suas respectivas populações. O objetivo militar aqui é claro: impedir uma articulação do islã político e da vida social civil, já considerando que a sua destruição física total não serão alcançadas no presente momento. Aqui nos vem à mente a política de formação de bantustões por parte do governo sul-africano durante a vigência do apartheid.

Ambas as situações acima descritas são paralelas e, antes de mais nada, demandam tempo para que se criem as condições as mais difíceis possíveis para todos os submetidos à opressão sionista. Como estes atores têm de administrar a brutal crise humanitária da população palestina, sua margem de manobra é cada vez mais limitada. Isto inviabiliza a negativa da imposição sionista, pois mesmo que Hamas e Egito não concordem com esta imposição (dada as condições cada vez mais desvantajosas para a negociação) terão que administrar o fato consumado, sem a possibilidade de negociações. Assim, quanto mais mortandade e instabilidade física, alimentar e psicológica da população palestina, mais favorável é o quadro, para os sionistas, para a implementação de suas políticas.

Enquanto isto, face às demandas do processo eleitoral norte-americano, o secretário de Estado, Anthony Blinken, e o presidente Joe Biden, instrumentalizam cinicamente a possibilidade de que um acordo entre o islã político e o Estado sionista – que seria viabilizado basicamente pela libertação dos cativos em troca do fim da agressão contra a população palestina e da libertação dos cativos palestinos em poder dos sionistas –, se arraste ao longo do tempo. Não há, neste sentido, nenhuma convicção séria por qualquer parte dos envolvidos de que as negociações cheguem a bom termo. Estas fazem parte mais do processo de condução do processo eleitoral norte-americano pelo Partido Democrata do que uma forma de resolver a situação local. Os corredores Califórnia e Netzarim são parte intestina do sionismo interno para a administração da Faixa de Gaza depois desta fase brutal de agressão ao povo palestino. Todos sabem disto e somente um milagre criaria algum fato novo que reverta tal situação. Dar tempo ao tempo, desgastando as alternativas ao que está sendo implementado há décadas, mas que ganhou contornos dramáticos a partir de outubro de 2023, é a principal arma do atual governo sionista.

Muito tem se colocado na mídia sobre as eventuais debilidades do Estado sionista com a atual política de conflito em muitas frentes (quase guerra em alguns delas) ao mesmo tempo. Conflitos militares são registrados em Gaza, na Cisjordânia, Iraque, Síria, Líbano, Irã e Iêmen. São apontados como pontos fracos do poder do Estado sionista os seguintes elementos: a) a debilitação e o desgaste do exército, causada por grande número de baixas e por longo período de combate e prestação de serviço militar; b) a crise econômica trazida com perdas de força de trabalho, investimentos e mercados; c) perda de soft power do Estado sionista, com o abalo de parte da opinião pública mundial sobre a política social genocida na Faixa de Gaza; d) perda de aliados governamentais, inconformados com a violência do genocídio, tornando o Estado sionista num pária internacional exposto a boicotes econômicos e de aquisição/venda de armamentos, energia e outros produtos; e) questionamentos jurídicos internacionais constrangedores dos governantes sionistas; f) aumento da oposição política interna ao governo, catalisada por familiares dos cativos que demandam negociações para a libertação dos seus parentes; g) fragilização emocional da população civil do Estado sionista, cuja integridade mental e emocional está sendo afetada; e, h) perda do sentimento de unidade nacional que caracterizou a sociedade sionista ao longo de décadas.

Nenhum destes elementos, em nossa opinião, é suficiente para estancar a força do Estado sionista comandado pela “geração dos assentamentos” há décadas. Muito pelo contrário, vários fronts foram abertos ainda durante a ocupação da Faixa de Gaza, contando justamente com o espraiamento da oposição do Eixo da Resistência na oposição aos planos mais extremados oriundos do governo da “geração dos assentamentos”. Para estes, na sua concepção messiânica de vida social, tudo é possível. Até a entrada em Rafah, a intenção era mais diretamente focada na neutralização do islã político do enclave. Após a conquista da dominação física deste território, os horizontes tornaram-se mais amplos para o Estado sionista. Este passou a atingir com intensos bombardeios vários pontos onde o Eixo da Resistência possui bases, e utilizou uma eficaz inteligência e precisa infiltração de território para matar lideranças expressivas desta orientação política através de ataques pontuais.

Junto a este amplo espectro de intervenções, o Estado sionista cativa com força e habilidade o apoio material e político de governos coloniais históricos (Inglaterra, França e Alemanha) e governos imperiais hegemônicos (os EUA) para produzir uma carapaça de “defesa do defensor” dos interesses destes no Oriente Médio. Esta coalizão está neste momento pronta para pagar qualquer preço político, econômico ou militar para defender o Estado sionista nos termos exatos em que este entende que esta defesa deva ser realizada. Também consegue neutralizar potências com interesses ainda não totalmente manifestos na região (Federação Russa) e postergar uma posição proativa do papel da China na Oriente Médio. Em África e na América Latina constatamos também uma presença proativa do Estado sionista, através da sua política externa. Aqui, reconhecemos, devem ser coletados mais elementos empíricos para determinarmos o escopo do papel subimperialista do Estado sionista, que no caso destes dois continentes deve funcionar mais como “imperialista” do que como “sub”. Nestes dois continentes há apoios e oposições de tipos variados ao que ocorre na Faixa de Gaza, mas de uma forma geral os governos dos países que deles fazem parte não erigiram uma barreira eficaz que abale frontalmente a normalidade das relações bilaterais entre estes governos e o Estado sionista. Exceção aqui apenas para África do Sul, Venezuela, Nicarágua e Colômbia.

Aproveitando-se de que estamos numa espécie de “era das guerras” (considerando aqui o impacto da guerra na Ucrânia), o Estado sionista avança em marcha forçada em direção à construção do Grande Israel, mesmo que esta agenda não seja explícita ou visível. Esta dimensão do sionismo externo é uma “ausência presente” no âmago do sionismo. É este o processo maior que está envolvendo todos os episódios no Oriente Médio atualmente. Quatro questões imediatas devem ser elencadas para alinhar esta perspectiva: a) a derrota do islã político e a limpeza étnica na Faixa de Gaza e na Cisjordânia; b) a derrota do islã político fora do atual território ocupado pelo sionismo (Líbano, Irã e Iraque); c) a derrota ou neutralização de qualquer tipo de oposição aos sionistas por parte de governos não alinhados com o islã político (Síria e Egito) mas que possuem papel relevante na condução da administração do sionismo externo; e, d) a normalização de relações diplomáticas com o Estado sionista por parte de países que possuem papel relevante no Oriente Médio, pertencentes também ao islã político, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes.

Na ótica da construção do Grande Israel, o processo que acima abordamos coloca todos estes atores funcionando sinergicamente, como se uma derrota ou vitória dependesse da outra, sem considerar qual das partes se torne passiva, rebelde e/ou cooperativa com os interesses do Estado sionista. Se todos estes países forem de alguma forma, neutralizados ou capturados para a órbita da aceitação do Estado sionista, chegaremos ao fim do atual conflito. Tal situação seria a pax israelensis.

Todo este cenário, catalisado pela política social genocida do povo palestino, amplo em sua extensão e consequências imprevisíveis no momento, é pensado por parcelas críticas ao sionismo como meio para alinhamento de elementos que apontam um cenário de crise grave. Esta possibilidade existe e é alardeada por críticos dos mais variados matizes de pensamento. Mas estas análises de perspectivas sombrias não são, em nosso entendimento, causadas pelos argumentos pelos quais esta crise é exposta. É o caso, por exemplo, da análise do major-general reformado do Exército, Yitzhak Brik, feita em 22 de agosto passado em coluna de opinião no jornal Haaretz. Segundo o militar, o país entrará em colapso dentro de um ano caso haja continuidade da guerra. Motivos políticos, econômicos, sociais e, principalmente, a derrota da guerra em termos de objetivos induziram o ex-militar à sua posição cética. Segundo ele:

Estamos também a perder a nossa resiliência social, à medida que o ódio crescente entre diferentes partes da nação ameaça inflamar-se e provocar a sua destruição a partir de dentro.”

De um ponto de vista ideológico totalmente distinto, Ilan Pappé – eminente historiador israelense, pertencente ao grupo da “Nova História”, responsável por firmar a categoria “limpeza étnica” no interior da História da formação do Estado sionista –, também advoga que o sionismo está em crise terminal. Para Pappé, a própria estrutura do Estado sionista já apresentava, antes de 7 de outubro de 2023, rachaduras; depois desta data, a crise se explicitou com intensidade. Segundo o autor:

Historicamente, uma infinidade de fatores pode fazer um estado naufragar. Pode resultar de ataques constantes de países vizinhos ou de uma guerra civil crônica. Pode seguir o colapso de instituições públicas, que se tornam incapazes de fornecer serviços aos cidadãos. Muitas vezes, começa como um lento processo de desintegração que ganha força e então, em um curto período de tempo, derruba estruturas que antes pareciam sólidas e firmes.”

A dificuldade está em identificar os primeiros indicadores. Aqui, argumentarei que eles estão mais claros do que nunca no caso de Israel. Estamos testemunhando um processo histórico – ou, mais precisamente, o início de um – que provavelmente culminará na queda do sionismo. E, se meu diagnóstico estiver correto, então também estamos entrando em uma conjuntura particularmente perigosa. Pois, uma vez que Israel perceba a magnitude da crise, ele liberará uma força feroz e desinibida para tentar contê-la, como fez o regime de apartheid sul-africano durante seus últimos dias.”

As duas opiniões abalizadas e aqui apresentadas revelam com clareza o que o senso comum tem de melhor como análise do que se passa na sociedade sionista. Sustentamos tese contrária: não há uma crise, pelo menos como apontada pelos dois analistas. Se assim fosse, argumentamos, a própria guerra se tornaria completamente inviável antes mesmo dela começar. E neste caminho não seria dado ao povo palestino o tratamento que ele recebe dos seus usurpadores. Também não seria viável a projeção de poder militar e inteligência de campo em todos os sítios onde haja interesses e/ou oposição ao Estado sionista. Isto não poderia ocorrer por um simples e único motivo: custos. O peso financeiro da manutenção da máquina militar/inteligência do Estado sionista é incapaz de criar demanda agregada suficiente para produzir todos os bens e serviços para uma sociedade, que é intensivamente consumidora (e não produtora) das suas necessidades materiais. A sociedade sionista possui um altíssimo padrão de vida. Estes elementos conjugados (custos da defesa e consumo elevado da força de trabalho) já seria por si só um impeditivo da política expansão do Estado sionista.

Tal situação contraditória só funciona porque este país não é soberano! Pelo menos não no sentido em que as teorias de relações internacionais apontam. Como um pináculo do imperialismo constituído após o fim da colonização europeia da Ásia e África, o Estado sionista é um ente nacional “contratado” para fazer justamente o que está fazendo. EUA e União Europeia esperam que o Estado sionista exerça um papel proativo máximo, realizando por eles no Oriente Médio o que eles fariam (e de fato fizeram quando eram potências coloniais) caso ainda houvesse colonização. Sendo assim, o Estado sionista realiza funções como um Estado subimperialista, sendo regiamente recompensado (econômica e politicamente) pelos seus mentores.

A sensação de crise, na realidade um stress, demonstrado por Yitzhak Brik e Ilan Pappé, é produto de uma situação muito peculiar: neste momento de “ataque após ser atacado” o Estado sionista precisa ser defendido para continuar atacando o Irã e seus proxies. Somente sob esta dinâmica poderá então alcançar seu objetivo maior de expansão de fronteiras. Além do desgaste emocional de promover uma política social genocida – que por mais que seja defendida como necessária, e até “naturalizada”, produz uma tensão paranoica de incontornável insegurança dos cidadãos na sociedade sionista –, todo o conjunto de confrontos em que o Estado sionista está envolvido produz uma sensação de perda de referências coletivas/políticas por parte dos que não estão diretamente ligados aos processos decisórios.

É no interior desta sensação de impotência que estas críticas alcançam a dinâmica de crise do sionismo. Mas tal situação aborda o problema a que se dedicaram resolver apenas de forma superficial, pressupondo equivocadamente o declínio ou mesmo o fim do Estado sionista. Esta percepção de “vaticínio da crise” como forma de análise não compreende que o Estado sionista, no atual governo da “geração dos assentamentos”, não está levando o país à crise ou ao caos, mas administrando uma “crise de crescimento”. Esta situação, caso seja vitoriosa, formatará as estruturas para o objetivo inicial do sionismo: o Grande Israel.

Temos, no entanto, que concordar com os dois autores quando se preocupam com a questão econômica. Se algum dia houver uma crise terminal no interior do Estado sionista, esta virá pela economia, pela escassez de recursos e apoio econômico internacional. Caso tal situação extrema ocorra, tendo que andar com suas próprias pernas, a sociedade sionista terá que enfrentar um “conflito distributivo” típico do capitalismo, algo que nunca conheceu de forma sólida. Nesta eventualidade, em meio às disputas pela sobrevivência, as classes sociais e os grupos de interesse poderão finalmente demonstrar se o Estado sionista é consistente e se tem capacidade de reproduzir sua força de trabalho em níveis, digamos, “normais”. Caso contrário, haverá o desinteresse de seus habitantes pelo projeto e, talvez, uma emigração expressiva, aí sim enfraquecendo sua capacidade militar.

As análises de Brik e Pappé estão restritas às aparências formais e perceptíveis do funcionamento macroeconômico pelo viés keynesiano. Yitzhak Brik, sem dar muitos detalhes, aponta para o fardo dos custos e perda de mercados, indicando que a “economia está quebrando”. Ilan Pappé dedica-se mais ao assunto, apontando vários elementos para justificar seu prognóstico de crise da economia como um dos elementos da crise do Estado sionista: a crise fiscal, abalada por gastos militares perenes; a dependência da ajuda financeira norte-americana; sanções econômicas crescentes (como as impostas por Turquia e Colômbia); incompetência do atual ministro da economia Bezalel Smotrich; gastos públicos essenciais que são drenados ilegalmente para a política de assentamentos, base política do ministro da Economia e do governo; fuga de capitais; perda da base de arrecadação tributária. Todos estes elementos são realistas, mas circunscritos apenas ao limite do atual contexto de “guerra total” em que o Estado sionista e seus aliados estão envolvidos. Numa perspectiva dinâmica, de longo prazo, tal situação não se manterá. Temos como pressuposto, observando a História de 75 anos de existência do Estado sionista, que, vencendo ou perdendo a atual contenda regional, o Estado sionista se recomporá economicamente com o que convencionamos chamar ao longo desta série de artigos de um “convite” do ocidente coletivo.

Temos ainda que ter em mente que esta atitude favorável dos “contratantes” do Estado sionista para fazer o que está fazendo ocorre porque estes financiadores precisam desesperadamente de uma crise política regional no Oriente Médio para recompor seus “estoques de poder”. Para isto, desde o 11 de setembro de 2001, faz-se necessário travar uma guerra sem fronteiras com o islã político. Os mentores e financiadores do Estado sionista fracassaram ao longo de toda a História pós-colonial do Oriente Médio nas várias tentativas de compensar esta perda de controle causada pela recusa do islã político (pelo menos grande parte deste movimento social) em se compor automaticamente com uma política neocolonialista por acordos de cúpula, como os Acordos de Abraão. No momento atual, o tom desta oposição está centralmente localizado no poderio econômico e militar do Irã, apenas uma das facetas do islã político. Mas o que deve ser combatido não é apenas uma rebeldia de Estados, mas um fenômeno típico das nações colonizadas em busca da sua independência, como o ocorrido na Guerra da Argélia (1954-1962): a insurgência.

No atual contexto de conflito do Oriente Médio, o Irã comparece ao cenário de confrontação através da tradução do sempre contestador xiismo, agora não contra o sunismo, mas em oposição ao universo democrático-burguês que o Estado sionista tão bem representa. A projeção de poder do Estado sionista na região (o sionismo externo) induz à formação de movimentos sociais e governos que se alinham na confrontação contra a dominação do Oriente Médio através de uma insurgência sem controle. Este é o principal obstáculo de uma dominação hegemônica das ex-potências coloniais e dos EUA no Oriente Médio e é contra esta contestação – que existem ou que possam a vir existir – que o Estado sionista está se digladiando em todas as frentes de conflito. Articula intimamente esta batalha com a expansão das suas fronteiras atuais, formando o Grande Israel.

Mais uma vez encerramos nossa reflexão quinzenal nos referenciando a uma personagem ou situação crítica que expõe a política social genocida contra o povo palestino. Desta vez voltamos a falar da jornalista Bisan Owda, que foi indicada para concorrer ao prêmio anual concedido pela National Academy of Television Arts & Sciences (NATAS) na categoria Notícias e Documentário. Surgiu uma oposição insana contra a indicação da jovem jornalista palestina da parte de 150 dirigentes desta indústria, alegando que a jornalista pertenceria aos quadros da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), uma organização marxista. Agregaram ao argumento apresentado em carta à NATAS que este partido é caracterizado como terrorista pelas autoridades norte-americanas desde 1997. O trabalho indicado para a premiação foi o documentário “It’s Bisan From Gaza and I’m Still Alive”, produzido pela AJ+, vinculada à emissora Al Jazeera. Felizmente, a entidade promotora do evento rejeitou a petição dos incomodados, alegando que a indicação foi avaliada por dois painéis independentes de julgadores, pertencentes às principais empresas de comunicação do país. Boa sorte, querida Bisan Owda!

 

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