Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 10]

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Opera Mundi  – 14 de agosto de 2024.

 

Em meio a um conjunto de impactos que envolvem o seu governo e sua pessoa, Netanyahu está nadando de braçada na aplicação precisa do ideário sionista

 

Nos últimos trinta dias variados foram os eventos que cercaram a política social genocida praticada contra o povo palestino. Como afirmamos nos dois artigos anteriores, a chegada das tropas sionistas a Rafah, no extremo sul da Faixa de Gaza, não definiu, como poder-se-ia pensar, o fim do processo iniciado em outubro de 2023. De uma forma geral, a ocupação de todo o enclave deveria significar o controle da situação. Aqui temos dois pontos chaves a serem considerados: a) a eliminação física da resistência armada do islã político não foi alcançada pela incursão militar; e, b) a indisposição clara do governo sionista em participar de qualquer tipo de acordo para a libertação dos seus nacionais. Dadas estas duas situações, consideramos que tais fatos demarcaram não o fim do confronto, mas um momento propício de uma longa trajetória que vem sendo trilhada pelo sionismo no Oriente Médio: a construção do Grande Israel.

Os injustificáveis e contínuos massacres que se seguiram à ocupação integral do enclave onde habita parte significativa do povo palestino continuam. Incessantemente o poder militar opressor bombardeia e/ou obriga os desabrigados a uma nova onda de deslocamentos, afetando dolorosamente uma população já exausta por agressões, perdas e privações. Alegam os sionistas que a continuidade do lançamento de pesadas e sofisticadas bombas sobre a população civil está relacionado ao combate da infiltração da militância armada do islã político no seio da população. Mas tal situação pode (e provavelmente é o que ocorre) não corresponder aos fatos; as agressões, pela sua capacidade gigantesca de causar danos colaterais em pessoas inocentes, indicam que elas são produto direto da política social genocida sionista e não o combate contra guerrilheiros. Se este raciocínio não é crível, ao menos se mostra como tal. Apresentam os agressores algumas indicações de que um ou outro bombardeamento com grandes danos colaterais entre os civis – tal como ocorreu com a presumida morte em julho de Mohammed Deif, comandante das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, o braço militar do Hamas – é suficiente para justificar todos os demais lançamentos de pesado material explosivo.

Ainda, se as alegações dos militares sionistas forem verdadeiras, fica constatado de forma clara que a vitória militar sobre o islã político – tal como desejada e explicitamente indicada como objetivo único pelo governo sionista – não se consumou. Em toda a extensão da Faixa de Gaza, onde os invasores já tinham anteriormente dado o ar da sua graça, continuam a ocorrer conflitos, novos bombardeamentos e mais deslocamentos da população desalojada. O sistema de guerrilha instalado nos túneis (experiência importada para a Faixa de Gaza das Guerras da Coreia e do Vietnã) se mostra um mecanismo eficaz de sustentação da guerra de guerrilhas contra o poderoso exército formal. Isto coloca para os sionistas tanto um viés negativo (a eliminação física do braço armado do islã político não foi alcançada) quanto um positivo (de sinal verde para a continuidade da política social genocida).

Seja qual for a dimensão exata em que estes bombardeamentos covardes estejam sendo implementados, o despojamento da conduta genocida através da desfaçatez dos agressores serve para demonstrar com clareza solar a clave da sua orientação: a moral é rasa mas a pontaria é precisa!

Um outro aspecto vinculado ao contexto demonstrado acima a ser considerado: há um nítido afastamento do governo sionista do tratamento pela via da negociação da libertação dos cativos desde 7 de outubro de 2023. As contínuas reuniões entre o governo sionista e intermediários (basicamente do Egito e Catar) não têm sido encaminhadas de forma consistente devido as constantes mudanças de exigências, ausências ou não aceitação pelo governo sionista de propostas que viabilizem o acordo. Esta desgastante situação provoca ou o adiamento do encerramento da questão (com um acordo de cessar fogo definitivo) ou uma pausa longa para avaliação das propostas até que novo encontro entre as partes se realize. Assim, concluímos, os sionistas consorciaram o retorno dos seus nacionais apenas com a eliminação física do islã político através da política social genocida. A questão passa a ser, então, a busca da compreensão de quais as intenções do Estado sionista para se dispor prolongar indefinidamente esta situação, sabendo que este é o epicentro de toda a crise política que envolve o Oriente Médio no momento presente. Percebe-se, nesta direção, que o Estado sionista está instrumentalizando os reféns num conjunto de medidas e contramedidas para apenas implementar “razões de Estado” e não defender a integridade física e moral dos seus cidadãos.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em março de 2019. (Foto: Alan Santos/PR)

Em tonitruante efeito de demonstração, foram libertados até agora apenas quatro cativos. Tal situação ocorreu nas proximidades do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza, em 8 de junho de 2024. Ali ficou claro quais são as condições delineadas pelo Estado sionista para efetuar a liberação dos cativos. Após intenso trabalho de inteligência e o uso máximo da capacidade de operar a política social genocida, foi descoberto o cativeiro onde estes cidadãos se localizavam. Produziu-se, então, uma ação dantesca de destruição de duzentas e setenta e quatro vidas palestinas para tirá-los do cativeiro. Apesar de ser apontado pelos sionistas como um fato positivo para a continuidade da eliminação da resistência armada do islã político através da política social genocida, fica claro neste episódio o modus operandi desejado: a hábil infiltração de inteligência e a completa falta de compromisso com normas de guerra em relação à população civil (como a utilização de caminhões de ajuda humanitária para transportar tropas) para encerrar o cativeiro dos seus nacionais.

Logo depois, no dia 17 de junho, o Gabinete de Guerra instalado em outubro foi dissolvido. Dois importantes membros desta instituição, o político Benny Gantz e o general Gadi Eisenkot, com posições distintas das defendidas pelo primeiro-ministro (de encerramento do conflito após a invasão de Rafah), inviabilizaram a continuidade do pacto político formado logo após 7 de outubro de 2023. Com a supressão deste órgão extraordinário, criou-se tanto a pulverização da base de apoio às posições do chefe de governo (o que fez crescer o seu poder de elaboração e execução de políticas públicas) quanto a ascensão quase irrestrita da extrema-direita na formulação e condução da política social genocida em Gaza, agora também ampliando a violenta usurpação de terras na Cisjordânia.

Mas, o que é o foco central no momento em que escrevemos esta análise: este rearranjo dos órgãos de Estado sionista viabilizou o transbordamento de forma inequívoca de todo o processo de conflito nas fronteiras norte e sul para a atuação na região do Irã e de seus proxies. Ou seja, em resumo: uma vitória (a libertação de cativos) levou a uma derrota (a perda do apoio político do centro) o que levou a uma nova vitória (a centralização do poder do primeiro-ministro consorciado com a extrema-direita, que tornaram o Irã alvo prioritário da atual política de formatação do Grande Israel). Fica desnuda a verdadeira trama de interesses que move o Estado sionista, que transformou uma crise interna (que lhe foi imposta) em uma crise externa (que ele alimenta).

Notamos neste aspecto que a dissolução do Gabinete de Guerra (ocorrida antes da invasão de Rafah) produziu um alívio para a direita sionista, que se viu com as mãos livres para produzir um processo de amalgamação mágico e funcional para o Estado sionista: aproximar intimamente a batalha do “sionismo interno” contra o islã político na Faixa de Gaza com a batalha do “sionismo externo” contra o Irã. Fossem outras as forças políticas no governo do Estado sionista (de centro ou de esquerda) teríamos certamente um processo de condução da política social genocida diferente, que pode ser assim caraterizado: a) a invasão de Rafah; b) a declaração da vitória; c) um acordo que produzisse a libertação dos cativos israelenses e dos prisioneiros palestinos; d) o estabelecimento de uma forma de governança (não é claro o seu conteúdo) para a Faixa de Gaza após a retirada das forças de ocupação sionistas. Não haveria, por este caminho, a conexão com o Irã. Lembremos que as forças do Eixo da Resistência insistentemente afirmaram (cremos que esta posição seja factível) que as hostilidades e ataques na fronteira norte do Estado sionista cessariam no momento que a política social genocida em Gaza fosse interrompida.

Neste contexto de avanço sem freios da extrema-direita sionista, tornou-se trágica a situação dos parentes dos cativos e de manifestantes solidários com a sua causa. Sendo eles próprios produtos de uma política de usurpação sionista, se vêm agora vítimas desta mesma ação, só que agora perpetrada por adversários políticos. Achavam-se incólumes, entendendo que a fase cruel do sionismo havia sido encerrada pela sua “geração do kibutz” nos Acordos de Oslo (1994); são agora confrontados pela “geração dos assentamentos” que em nome da continuidade da expansão territorial coloca a libertação dos reféns como uma peça menor do xadrez político.

Mesmo a “geração kibutz” não se dando conta ou admitindo este impasse, eles realizaram anteriormente a mesmíssima tarefa que seus adversários. Foram estes atores que implementaram inicialmente a usurpação de terras e direitos do povo palestino, o que ocorreu durante o exercício hegemônico do poder dos partidos Mapai, Ahdut HaAvoda e Rafi, fundidos em 1968 no Ha-Avoda (Partido Trabalhista). Agora quem realiza esta usurpação é a “geração dos assentamentos”, que é legitimamente representada pela escassa maioria parlamentar que sustenta um governo que possui “na veia” o projeto de viabilizar de uma vez por todas o que foi iniciado por desbravadores a partir do fim do século XIX, continuado pela vitória consistente (mas não completa) obtida em maio de 1948 e que vem sendo administrado desde esta data com esmero. O objetivo que perpassa todas estas agremiações é a obtenção de uma pax israelensis dentro de um contexto de submissão de larga parcela de povos e/ou governos de todo o Oriente Médio.

A prostração da identidade de “classe” sionista da “geração do kibutz” é imensa, tendo suas manifestações pacíficas reprimidas com tanta intensidade quanto as promovidas na Europa ocidental e EUA. Almejam dar um “freio de arrumação” no sionismo para alcançar o fim do cativeiro dos seus próximos, mas se vêm diante de um monstro devorador de vidas e terras alheias que não conseguem mais controlar.

Sendo assim, o que temos de conclusivo nesta dimensão da conjuntura, que se tornou muito mais complexa desde que a avaliamos no artigo anterior, é que os episódios que vem se desenrolando do que temos chamado de “sionismo interno” desde o 7 de outubro de 2023 não se resumiram a absorver o impacto e reagir ao ataque do islã político à ocupação fronteiriça da Faixa de Gaza. Este imenso conjunto de situações absolutamente bizarras que cerca o martírio do povo palestino é produto da criação de um verdadeiro monstro político pelo “sionismo interno”. Este ser imobiliza a análise crítica da situação pela capacidade ímpar dentro do universo da democracia burguesa de administrar a violência física e simbólica contra os adversários do Estado sionista. Já que é desprovido de uma visão de História sobre a sua essência socialmente construída – movendo-se no terreno do imaginário trazido pelo Holocausto do povo judeu e do abstrato combate ao terrorismo pautado na tese do “choque de civilizações” – os gestores atuais do sionismo conseguem turbinar um cenário de crise em direção a um novo quadro do “sionismo externo”, ou seja, a formação do Grande Israel.

Fato determinante a partir do repertório de inúmeros acontecimentos nos últimos trinta dias é a iminência de irrupção de um confronto de maior envergadura entre o Estado sionista (juntamente com seus aliados: EUA, Inglaterra e França) e o Eixo da Resistência (baseado no Irã e em seus proxies). Esta situação não ocorreu pela vontade explícita do governo persa mas, antes, foi causada pelo enredamento muito bem elaborado e executado pelo “sionismo externo”. Ao atingir com bombas e matando vários dirigentes militares e políticos do islã político (notadamente o assassinato de Ismail Hanyeh, ocorrido em Teerã em 31 de julho de 2024), o Estado sionista materializou um contrato assinado de confronto entre dois hegemons regionais. Assim, o Estado sionista e o Irã encontram-se neste momento à beira da eclosão de uma guerra. Esta pode se materializar em algumas horas ou dias, quando se espera que um ataque aéreo maciço deverá ser lançado contra o Estado sionista. É inevitável que as barreiras de defesa aérea não consigam eficiência total em relação ao ataque iraniano. A moderníssima guerra aérea (via foguetes, mísseis e drones) torna impossível considerar que exista uma total blindagem na defesa sionista. Mas até o presente momento, notamos, a “paciência estratégica” do Eixo da Resistência (que ainda não deu sinais claros de quando vai iniciar sua retaliação) tem provocado desgaste emocional e apreensão na sociedade sionista.

No atual momento em que escrevemos esta análise, nos vemos diante de um vácuo, já que a promessa de início das hostilidades ainda não foi concretizada. Mas tal situação não é um convite à inação. Constatando definitivamente que é o Estado sionista quem deseja a guerra, este pode produzir, segundo notícias divulgadas, uma última provocação para tentar acelerar o início do conflito: um ataque preventivo a alguma instalação ou núcleo de povoamento do Irã.

Talvez faça parte da estratégia iraniana de indefinição do início da retaliação contra o assassinato em seu território do líder do Hamas provocar um impacto maior sobre a economia global, como uma forma de pressão indireta sobre o Estado sionista. No dia 5 de agosto os mercados financeiros asiáticos abriram em queda, afetando as criptomoedas e o mercado acionário. Apesar da necessidade de que os fatos e as análises sobre estes evoluam, tornando-se mais claros, é inevitável considerar que o contexto de conflito no Oriente Médio tenha influenciado a instabilidade financeira. Tais movimentações podem produzir a contratação de uma crise econômica global. Ainda mais, como já foi por nós apontado anteriormente, estamos entrando numa fase econômica cíclica de crise.

Todo o quadro atual de pré-guerra foi, lembremos mais uma vez, formado a partir do “rito de passagem” constituído após a entrada do poder militar sionista em Rafah. A partir dali o atual governo sionista obteve uma importante conquista simbólica: produziu uma bipolaridade regional artificialmente construída. Para que tal situação tenha se tornando o que ela é, notamos que foi fundamental que até o presente momento o Estado sionista tenha alcançado uma sucessão de vitórias materiais e simbólicas. Este tem obtido sucesso em todos os fronts do pré-conflito que está prestes a ser iniciado: a) na aplicação da política social genocida do povo palestino sem causar oposições consistentes (inclusive judiciais) no cenário internacional; b) neutralizando as manifestações maciças de rua e de estudantes nos países desenvolvidos; c) anestesiando a ação política da “geração do kibutz”, dos familiares dos cativos e dos políticos profissionais de oposição; d) afrontando a indisposição dos militares sionistas, que advogam o encerramento do conflito por falta de condições visíveis de obter a vitória tal como o governo anunciou e pelo desgaste das tropas após nove meses de perdas, provocando um número elevado (embora desconhecido) de baixas; e) desrespeitando abertamente os direitos humanos de prisioneiros palestinos retidos sem justificativa depois de 7 de outubro de 2023; f) mentindo descaradamente e manipulando fatos básicos sobre a ação de suas forças armadas que atingiram populações que vivem em seu território, como o ocorrido contra a comunidade drusa em Majdal Shams nas Colinas de Golã, em 27 de julho de 2024; g) dividindo a oposição ao Estado sionista no Oriente Médio, notadamente com a exploração da normalização de relações de Jordânia, Egito, Marrocos e Arábia Saudita (diminuindo a oposição à política social genocida praticada pelos sionistas) e com a pouco efetiva e contraditória posição da Turquia (a mais contundente contra a política social genocida mas incapaz de romper laços de normalização do comércio, inclusive de armas com o Estado sionista); h) eliminando fisicamente quadros superiores do Eixo da Resistência, indicando com isto a sua disposição de tolher a organicidade da resistência armada do islã político: i) na adesão quase total ao que se passa na Faixa de Gaza pela Europa ocidental (com exceção dos governos da Espanha e Noruega); j) na condução exitosa das relações com o principal financiador da economia sionista, os EUA, apesar da forte instabilidade política no país em meio à campanha eleitoral para a sucessão presidencial.

Torna-se necessário ressaltar que, diferentemente da análise pouco criteriosa e calcada em clichês, o atual primeiro-ministro sionista, Benjamin Netanyahu, mola mestra da implementação de todo este cenário de crise, é um campeão. Tido por muitos opositores ao seu governo como um indivíduo sem equilíbrio emocional, ele conduz com clareza e senso de oportunidade uma complexa teia de relações sociais e políticas internas e internacionais. Também é a ele atribuída manobras pequenas para driblar os processos judiciais em que está envolvido, tentando com a insuflação da atual crise a extensão do seu mandato para se evadir dos rigores da lei. Pelo contrário, em nossa visão, ele representa a síntese de uma tendência intrínseca de um país imperialista, não sendo ele próprio um país imperialista, mas sim sub-imperialista, conforme descrito em vários de nossos artigos anteriores. Sendo assim, ele tem a condição incomum de ser um ente participante tanto do “deep state” sionista quanto do norte-americano. Não seria nenhum demérito dar-lhe o título de “o maior sionista de todos os tempos”.(sic) Em meio a um conjunto grave de impactos que se sucedem e envolvem diretamente o seu governo e sua pessoa, Netanyahu está nadando de braçada na aplicação precisa do ideário sionista. Sua ação minuciosa, muito embora grosseira e histriônica, torna letra morta todo e qualquer movimento contrário à sua verdadeira “fuga para frente” em prol de um sionismo proativo e não contemplativo, como o adotado pela “geração kibutz”. Ele está impulsionando ao máximo tanto o “sionismo interno” quando o “sionismo externo” para uma situação de tensão permanente extrema, tentando produzir a todo custo a expansão do poder militar e simbólico do Estado sionista concomitantemente à manutenção do financiamento deste. Com este imenso conjunto de condutas consistentes com o ideário sionista, ele está induzindo, pela via da guerra, a ampliação da sua área de influência no Oriente Médio para, no futuro, viabilizar a incorporação de novos territórios.

Esta ação política eficaz tem como base, e por outro lado estimula, atitudes de “negacionismo” dos fatos que envolvem o povo palestino. Os sionistas que tanto combatem o negacionismo do holocausto do povo judeu o adotam sem nenhuma limitação ao holocausto palestino. É o caso, fazemos questão de enfatizar, da recente entrevista do historiador Benny Morris ao canal Al Jazeera. Ao afirmar parvoíces do tipo “Israel não atacou hospitais” ou “desconheço a fome em Gaza” não obteve senão risos da audiência presente na entrevista. Além disso, como dizem por aí, foi “pego com as calças na mão” quando questionado pelo jornalista Medi Hasan sobre a natureza do roubo das terras palestinas na constituição do Estado sionista quando rejeitou tal tese; logo em seguida o astuto jornalista leu trechos de um livro que atestava tal processo de limpeza étnica que foi escrito… pelo próprio Benny Morris.

Vemos, então, que a postura do primeiro-ministro sionista não é um fato isolado na sociedade que governa. No caso citado, trata-se de um historiador de renome internacional, pertencente à corrente crítica da História da fundação do seu país conhecida como “Nova História”. Esta alcançou a compreensão precisa da violência utilizada para produzir a limpeza étnica que permitiu a criação do Estado sionista composto por uma escassa maioria de judeus. Mas, tal como um juiz que julga uma causa contra os fatos, Morris se volta contra as pesquisas científicas realizadas para elaborar seus trabalhos que indicam situações que em tempos normais seriam consideradas alarmantes. Ele e a corrente dos historiadores israelenses, que revolucionaram a compreensão primitiva e laudatória elaborada pelo Estado sionista sobre a sua origem, demonstraram cabalmente que a formação territorial do Estado sionista foi realizada em bases similares ao que está acontecendo neste exato momento. Morris, no entanto, é o único pesquisador desta corrente a transformar sua pesquisa em uma apologia e não numa crítica ao sionismo. O relevante historiador simplesmente denega sonoramente que o problema da questão palestina seja causado pela usurpação das terras pelos seus conterrâneos, preferindo transferir magicamente esta responsabilidade para os próprios palestinos. Sendo assim, perde referência no seu próprio trabalho de investigador, transformando-se num mero apologista daquilo que não constatou empiricamente.

Esta conduta aparentemente insana ou uma distopia cognitiva não é um caso único ou “um ponto fora da curva”; é um modus operandi – ou uma práxis, na acepção de Antonio Gramsci – de toda comunidade de judeus que aderiram ao sionismo. Mentem que nem sentem!

Dado o escopo da atual conjuntura, com a ameaça de eclosão de uma guerra regional, também têm sido produzidas análises que apontam problemas para o Estado sionista levar adiante uma política social genocida simultaneamente a uma guerra. Tais análises apontam inclusive que esta sobrecarga produzirá uma crise tal que demarcará o fim do sionismo ou mesmo do próprio Estado sionista. Estas avaliações também padecem de imprecisão, apesar de reconhecermos que os resultados de um eventual conflito generalizado não possa ser esquadrinhado com precisão neste momento, e que este bem pode implodir o patrimônio material e/ou imaterial do sionismo. Mesmo assim, tais avaliações catastrofistas sobre o futuro do Estado sionista estão contaminadas com a percepção de que o que está ocorrendo no Oriente Médio é o resultado da megalomania do primeiro-ministro e a perversão da extrema-direita sionista. Também é possível encontrar analistas que apontam “imperfeições” da atual política sionista, mas sem arranhar na análise quaisquer ações anteriores deste mesmo sionismo. Daí não conseguem detectar a dinâmica maior da política social genocida ora em curso. Tais análises acabam por resvalar no problema que levantam para o interior de uma crônica (não crítica) política superficial da dança das cadeiras pela disputa de poder. Estas análises não alcançam que a verdadeira raiz da dificílima situação por que passa o Oriente Médio e o povo palestino de forma especial nos dias que correm não é a viabilidade do sionismo, mas sim a viabilidade da expansão ilimitada do sionismo, em direção da construção do Grande Israel pela via da pax israelensis.

Entendemos que, mesmo que ao fim desta crise aguda haja desgastes sérios na estrutura do que chamamos de “sistema” sionista, o resultado final seja mais afim com os objetivos deste do que com os opositores. Esta é, em nossa visão, uma possibilidade muito mais palpável do que a vitória militar do Eixo da Resistência sobre o poder militar sionista. Não sabemos o que acontecerá nos próximos dias, meses ou anos. De qualquer forma, dada uma ampla gama de vitórias e ações de espionagem, terrorismo e pressão bélica bem sucedidas impetradas pelo Estado sionista ao longo de sua História militar, além de um poder de fogo de largo alcance, baseado em aviônica de última geração com grande capacidade de destruição, acreditamos que a possibilidade mais plausível resultante da atual conjuntura de guerra é a de que o Estado sionista consiga superar os empecilhos e continue sua sanha expansionista e genocida. Se esta situação produzirá um esgotamento (talvez fatal) para a sobrevivência do “sistema” sionista, só o tempo poderá dizer.

Gostaríamos neste final de análise de conjuntura voltar nossos melhores pensamentos para o jovem Muhammed Bhar, de 24 anos, que era portador de síndrome de Down e autismo. Sua vida foi ceifada barbaramente durante a passagem do “exército mais ético do mundo” (sic) pelo seu local de moradia. Os indivíduos pérfidos invadiram sua casa em 3 de julho de 2024, provocando sua morte com o ataque de um cão de combate e, em seguida, com a recusa quase explícita em tratá-lo ou permitir que a família o assistisse. Este é, enfim, o âmago da política social genocida dos sionistas contra o povo palestino. Infelizmente cão e tropas passam bem; fica o consolo de que ambos se merecem.

Sentiremos falta de nosso estimado mártir Muhammed Bhar. Allahu Akbar!

Palestina livre do rio ao mar!

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