Fatos & Crítica 20: o governo Bolsonaro tem futuro ?

Coletivo do CVM

Brigas intestinas, declarações desencontradas, demissão de ministros, conflitos com o Judiciário e o Legislativo, queda da aprovação nas pesquisas de popularidade e paralisia econômica com aumento do desemprego: eis o quadro geral dos primeiros meses do governo Bolsonaro.

A alternativa burguesa de extrema-direita à “velha política”, que se revelou a mais capaz de se impor sobre o desgastado PT nas eleições de 2018, vem se deteriorando a uma velocidade muito maior do que a prevista, fazendo relembrar os casos de Jânio Quadros e Fernando Collor, dois políticos de direita que tiveram os seus governos abreviados, o primeiro pelo fracassado golpe da renúncia, o segundo por um processo de impeachment.

 

Uma economia que não sai do lugar

Os meios de comunicação da burguesia martelaram à exaustão durante a campanha eleitoral que a crise econômica brasileira era devida às políticas econômicas erradas dos governos do PT. Pois bem, passados três anos do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, as políticas neoliberais de Meirelles e Guedes também não foram capazes de reerguer significativamente a economia do país.

Os dados do primeiro trimestre de 2018 são eloquentes: sucessivas quedas nas projeções dos bancos para o crescimento do país para este ano, a última delas situada abaixo de 1,5%, com viés de queda; produção industrial com decréscimo de 0,1% em doze meses; desemprego em alta, fechando o primeiro trimestre em 13,4 milhões, aos quais devem ser agregados mais 28,3 milhões de pessoas que estão subempregadas ou desistiram de procurar trabalho; e para coroar, uma inflação da cesta básica que chegou a 16,28% em São Paulo, também nos últimos doze meses, com destaque para produtos como feijão, batata e tomate.

Que a situação ruim não é só do Brasil, apontando para uma crise global, mostram as previsões da OCDE para o crescimento de algumas economias desenvolvidas em 2019: apenas 0,7% na Alemanha, 0,8% no Japão e retração de 0,2% na Itália. Retração prevista também para a Argentina, onde a política econômica neoliberal de Macri não só não impedirá como ainda agravará a queda do produto interno bruto do país, queda estimada em -1,5%. Até mesmo a economia chinesa reduzirá o seu crescimento de 6,6% em 2018 para 6,2% neste ano, segundo a mesma fonte.

Num cenário de baixo crescimento mundial – ou mesmo de recessão em alguns países – não é de se admirar que os Estados Unidos adotem políticas protecionistas, como as que Trump vem empregando recentemente, tendo a China e outros países como alvos. Isso tem garantido um crescimento ainda significativo para a primeira economia do mundo, mas já existem sinais de que esse quadro não será duradouro.

Depois de tentar iludir a opinião pública com a atribuição da responsabilidade da crise econômica, que é de fato mundial, às medidas keynesianas do PT de elevação dos gastos públicos, a mídia burguesa agora divulga o mantra de que tudo estará resolvido instantaneamente com a aprovação da famigerada Reforma da Previdência. Para eles, o baixo nível de investimentos seria um fenômeno psicológico, derivado das incertezas em relação ao sucesso do programa econômico do capital financeiro, hoje apoiado por todos os setores da burguesia.

É certo que a Reforma da Previdência, se aprovada, reduzirá os gastos do governo, aumentando a capacidade de pagamento dos juros da dívida interna e, assim, satisfazendo as necessidades do capital financeiro. Mas só isso não bastará. Vem pela frente uma investida ainda maior sobre as condições de vida do trabalhador, já bastante precarizadas com a aprovação da Reforma Trabalhista de 2017. Fala-se agora de uma carteira de trabalho “verde-amarela”, onde o contrato individual prevalecerá sobre o que restou da CLT.

Mas se o aumento da exploração do trabalhador é a forma clássica de recuperar a taxa de lucros e propiciar a retomada da acumulação de capital, os cortes generalizados nas despesas públicas – a exemplo dos 30% nas universidades – e a abertura da economia ao comércio internacional, com a redução de alíquotas de exportação, como proposto por Paulo Guedes, são medidas que, ao invés de impulsionarem a economia, contribuirão para agravar ainda mais a crise. Não é a toa que um economista burguês insuspeito como André Lara Resende já aventa a necessidade do retorno a medidas keynesianas para a retomada da economia, questionando a ortodoxia neoliberal.

 

Um governo sem coesão interna

Bolsonaro foi o único candidato que conseguiu capitalizar com o seu discurso direto e radical a insatisfação dos eleitores com a corrupção, com a situação econômica (“culpa do PT”) e com a crise da segurança pública.

Apesar disso, representa de longe a liderança mais despreparada política e intelectualmente, o pior outsider que a burguesia poderia sonhar para levar adiante o programa do capital financeiro – apoiado por todas as frações da burguesia – que tem como objetivo central a redução dos direitos e benefícios sociais adquiridos historicamente pelos trabalhadores.

Em poucos meses de existência, as brigas internas por espaço entre os setores que constituem o seu núcleo político (a ala ideológica de Olavo de Carvalho, os militares e os evangélicos) vêm ocasionando desgastes sucessivos, que põem em questão a capacidade de o governo aprovar no Congresso o programa do capital, condição essencial para a sua continuidade.

Os ataques verbais da ala “olavista”, da qual fazem parte os filhos do capitão, aos militares do governo propiciaram crises que redundaram na demissão dos ministros da Secretaria Geral e da Educação, bem como de dois presidentes da Associação de Promoção de Exportações, órgão com robusto orçamento, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores.

Nesse conflito do qual não escapou nem o General Villas Bôas, aquele mesmo que na ativa ameaçou o STF quando da votação do habeas corpus que tiraria Lula da prisão surge como personagem moderado e racional o próprio General Mourão, o Vice-Presidente, que vem se apresentando abertamente como opção de governo, no caso de Bolsonaro vir a ser afastado do cargo por incompetência política.

Também em relação à crise na Venezuela os militares tiveram que intervir para que a ala “olavista”, representada pelo Ministro das Relações Exteriores, não viesse a lançar o país na aventura de uma intervenção militar externa, de consequências imprevisíveis.

A ala evangélica neopentecostal também tem tido motivos para entrar em atrito com o governo, por dois relevantes motivos: a política de incentivo ao armamento individual e a possibilidade de tributação das igrejas, por meio de impostos sobre a movimentação de dinheiro.

Mas a maior preocupação com os rumos do governo veio dos lados do capital financeiro, representado pelo próprio Ministro da Economia Paulo Guedes. Pressionado pelos caminhoneiros autônomos, que fazem parte de sua base política e social, Bolsonaro mandou sustar o aumento do preço do óleo diesel programado pela Petrobras, com base no dogma neoliberal de acompanhamento dos preços internacionais para não prejudicar os acionistas da companhia.

Paulo Guedes teve que retornar às pressas do exterior para evitar a desmoralização da sua política e convencer Bolsonaro a voltar atrás. A greve que vinha sendo ameaçada foi suspensa, após uma série de promessas vagas feitas pelo governo aos caminhoneiros, incluindo a de maior fiscalização do valor mínimo do frete, tabelamento que também é considerado um pecado para os defensores do livre mercado. Que o assunto parece estar longe de ter sido resolvido, não há a menor dúvida e mais cedo ou mais tarde o capitão terá que decidir entre atender os ditames do capital financeiro ou os interesses dos caminhoneiros autônomos.

Para completar o quadro de confusão na área econômica, o governo anunciou que estuda a diminuição dos impostos na indústria do tabaco, desoneração que diminuirá as receitas em época de déficit fiscal e entrará em inevitável choque com os profissionais e instituições do setor da saúde.

O próprio agronegócio, outra base social importante do governo, está em alerta com certas atitudes de extremismo ideológico do governo, como a inauguração de um escritório de negócios brasileiros em Jerusalém, que agrada aos evangélicos, mas ameaça as exportações de carne; ou o desprezo em relação ao meio ambiente, que agrada aos grileiros e desmatadores em geral, mas colocam os produtos agrícolas do país sob suspeita no mercado internacional.

 

Um governo sem base sólida no Congresso

Disposto a combater a “velha política”, aquela que troca apoio no Congresso por cargos que propiciem negócios lucrativos, o governo tem tido dificuldade de aprovar a sua pauta no parlamento e vem sofrendo sucessivas derrotas.

Teve que engolir a aprovação do orçamento impositivo para as emendas parlamentares, ou seja, a obrigação de liberar recursos para os projetos de interesse dos deputados e senadores, o que representa mais um engessamento do orçamento e uma margem menor para os cortes de despesas por parte da equipe econômica.

Mais recentemente, sofreu derrota na comissão parlamentar que examina o decreto que alterou a estrutura ministerial do governo, tendo se comprometido a recriar os Ministérios das Cidades e da Integração Nacional, ambos muito cobiçados pelos políticos para a realização de práticas eleitoreiras. Também o COAF – órgão de controle da movimentação financeira – sairá do Ministério da Justiça e retornará para o da Economia, dando um alívio aos parlamentares que temiam ter suas contas bancárias investigadas e transformadas imediatamente em processos, caso o órgão se mantivesse nas mãos do “paladino” da luta anticorrupção, Sérgio Moro.

Para consolar Moro por conta da perda desse importante instrumento de investigação, Bolsonaro divulgou que a próxima vaga no STF estaria destinada ao atual Ministro da Justiça, para o seu constrangimento, diante da exposição precoce da candidatura e da revelação de que sua aceitação do cargo ministerial teve uma motivação carreirista.

Moro também já havia entrado em choque com o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, pela insistência do primeiro em pautar imediatamente o seu “pacote anticrime”, em paralelo com o da Reforma da Previdência.

Enfim, um governo que não se esforça em articular uma base parlamentar mínima que permita a aprovação dos seus projetos de lei. Do ponto de vista político essa articulação não seria difícil, considerando a predominância da direita e da centro-direita no Parlamento brasileiro. O que ocorre é que os deputados e senadores só sabem trabalhar com contrapartida financeira e se o governo Bolsonaro não estender a mão de novo à “velha política” ficará imobilizado e à mercê de “pautas-bomba”, como as que Eduardo Cunha preparou para Dilma Rousseff.

 

Governar com as redes sociais?

Tendo ganhado as eleições com o uso intensivo das redes sociais, é possível que Bolsonaro e seu grupo mais próximo imaginem que o seu sucesso se deveu não à conjuntura política especial do país em 2018, com a crise econômica e o desgaste dos governos do PT e de Temer, mas sim à utilização intensiva desses instrumentos modernos de comunicação.

Assim como Collor imaginou que os “descamisados” pudessem se mobilizar para salvá-lo do impeachment, é possível que Bolsonaro acredite poder governar por meio da mobilização política de suas bases com o uso das redes sociais. Para isso procura manter unidos e inflamados os seus apoiadores, combinado campanhas nas redes contra os seus “inimigos” com a constante divulgação de políticas do agrado da extrema-direita.

Assim, promoveram ataques ao STF pelas redes sociais, o que gerou reação forte do Presidente do Tribunal, que abriu investigação sobre os autores das ameaças, mas foram também anunciadas medidas populistas de direita com o objetivo de manter a coesão de sua base política.

São exemplos disso: a não renovação dos contratos de fiscalização automática da velocidade nas estradas, a defesa do fim da reserva legal na Amazônia, as críticas à fiscalização ambiental, a nomeação de policiais militares para o Instituto Chico Mendes, o estímulo à posse e ao porte de armas, a defesa da liberdade de matar dos fazendeiros em suas propriedades rurais, a revisão do papel da ditadura militar e o corte em 30% dos recursos de universidades públicas, em clara retaliação às suas críticas ao governo, desde o período eleitoral.

Na política externa, escancarou o alinhamento com o governo Trump, liberando os vistos de entrada de americanos no Brasil sem contrapartida, cedendo a base de lançamento de satélites em Alcântara, aceitando trocar o status de país com tratamento especial na Organização Mundial do Comércio por um vago apoio à entrada na OCDE, apoiando as agressões americanas na Venezuela e, para culminar, Bolsonaro fez algo inédito, pelo menos para um presidente brasileiro: de forma a não deixar dúvidas sobre o seu alinhamento, fez questão de visitar pessoalmente o órgão de espionagem americano, a CIA.

 

Alternativas do Governo Bolsonaro

Enquanto o capital financeiro e a burguesia em geral mantiverem a esperança de que a Reforma da Previdência e outras políticas contra os trabalhadores venham a ser aprovadas, o Governo Bolsonaro seguirá contando com o indispensável apoio social para continuar existindo.

Mas a melhor alternativa para a burguesia seria que o “bom senso” prevalecesse e que o governo desistisse de alvejar a “velha política”, entrando em acordo para a divisão de cargos com os partidos de centro-direita, de forma a obter maioria no Congresso Nacional.  É certo que isso representaria o fim da prevalência da ala “ideológica” no governo, mas estariam preservados a governabilidade e o programa burguês.

A segunda alternativa, em caso de impasse com o Congresso que inviabilizasse as medidas, seria a de um processo de impeachment contra o Presidente e a subida de Mourão ao poder, que, possivelmente, não teria dificuldades em negociar com a “velha política” e acertar as aparas com o Legislativo.

A terceira alternativa seria um autogolpe, em que Bolsonaro apelaria para as Forças Armadas, diante da resistência do Congresso de se livrar dos seus velhos vícios políticos. Parece pouco provável que os generais, principalmente depois dos ataques da ala “ideológica”, venham a embarcar nessa aventura. Se o fizerem, certamente não será em benefício de Bolsonaro. As condições para isso também exigiriam um acirramento da luta de classes, o que não está no horizonte próximo.

A quarta alternativa seria um autogolpe com o apoio do médio e baixo oficialato, com os quais Bolsonaro tem boas relações. Diz-se que houve, por ocasião do julgamento do habeas corpus de Lula pelo STF, uma movimentação nesse sentido, que foi neutralizada pela ação do General Villas Bôas, ao tomar para si a tarefa de intimidar a corte. Uma ação desse tipo, nas condições atuais teria tanta chance de êxito como teve a renúncia de Jânio Quadros no passado. Mas Bolsonaro e seu grupo próximo não se pautam exatamente pela racionalidade e podem tentar fustigar a esquerda para criar o acirramento político necessário a uma ação desse tipo.

 

Alternativa dos trabalhadores

Diante das investidas contra seus direitos sociais e o rebaixamento de suas condições de vida, os trabalhadores ainda não se mobilizaram. A principal explicação para isso é que a crise econômica gerou demissões em massa e o fechamento de fábricas, como no caso da Ford caminhões, reforçando a tirania do capital nos locais de trabalho.

O desgaste dos governos do PT e a prática sindical de rebaixamento das reivindicações e nenhum incentivo à organização pela base também contribuíram para limitar a ação da classe operária a lutas econômicas restritas. A votação expressiva de Bolsonaro em áreas industriais importantes revela também que a ideologia de direita chegou a penetrar nas fábricas, no vácuo causado pelo descrédito do PT e da CUT.

O balanço de forças é tão favorável à burguesia, que ela se deu ao luxo de prescindir até dos seus aliados históricos, os sindicatos pelegos, deixando-os também na penúria financeira com o fim do imposto sindical, da contribuição assistencial obrigatória e até mesmo do desconto das contribuições na folha de pagamento das empresas.

Se no longo prazo essas medidas acabam por contribuir para a organização independente dos trabalhadores, no curto prazo elas deixam todas as entidades sindicais, pelegas ou não, em grave crise financeira, afetando a sua capacidade de mobilização. Não é a toa que várias categorias fecharam acordos de dois anos, como a dos bancários e parte dos metalúrgicos.

Mas algumas manifestações, ainda que tímidas, começam a aparecer, como as que foram feitas contra a Reforma da Previdência em 22 de março em São Paulo. A comemoração unificada do 1º de maio no Anhangabaú, quando, depois de muitos anos, predominaram os discursos em relação aos shows e às distribuições de prêmios, mostrou que todas as entidades sindicais, independentemente de suas posições políticas, sentiram fortemente o impacto das investidas da burguesia.

Os sindicatos pelegos usam as manifestações para pressionar o governo para uma Reforma da Previdência mais “light” e buscam negociar o seu apoio a ela em troca da volta das contribuições compulsórias, que os liberaria da ingrata tarefa de ter que conquistar o apoio financeiro como decorrência da mobilização e da consciência dos trabalhadores.

Ainda no mês de maio, estão previstas uma greve dos professores contra a Reforma da Previdência e manifestações em todo o país contra os cortes de verbas nas instituições federais.

Para 14 de junho está programada uma Greve Geral contra a Reforma da Previdência, que representará um teste tanto para as entidades sindicais que se unificaram para a sua convocação, quanto para a reação de um governo declaradamente inimigo do trabalhador e que parece estar procurando um confronto, como no caso das instituições de ensino.

Por fim, cabe uma menção à prisão de Lula. Após a reforma de sua pena no STJ, será possível a saída da prisão em setembro, se não vier a ser condenado em outro processo. A decisão do STJ também liberou a pressão que impedia o julgamento sobre o cumprimento da sentença na segunda instância no STF e é possível que o assunto seja retomado, dando mais fôlego para manter Lula fora da prisão.

A autorização pelo STF da concessão de entrevistas de Lula a órgãos da imprensa revela que, passado o perigo de ele vir a ser eleito Presidente, algum relaxamento de sua situação prisional pode ser esperado. Que o assunto não desperta tantas emoções como no passado mostram as fracas manifestações, tanto da esquerda quanto da direita, quando foi comemorado um ano de sua prisão.

As declarações nas entrevistas do único líder carismático ainda em atividade no país revelam, entretanto, um tom de luta pela união nacional, no velho estilo de conciliação de classes que praticou durante o tempo em que esteve no poder. Ocorre que agora os tempos são outros e a burguesia julga ter força suficiente para impor o seu programa, sem ter que perder tempo em negociar com qualquer um que leve em conta, mesmo que minimamente, os interesses dos trabalhadores.

Nota: a redação deste texto foi fechada antes das manifestações contra o corte de verbas do governo federal para educação em todo país. Em breve publicaremos uma análise abordando as repercussões e em especial, os preparativos para a greve geral de 14 de junho.

CVM, 15 de maio de 2019

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