O movimento operário em Contagem, 1968 – Uma análise crítica

João Ferreira

 


Apresentação 

A nossa comemoração do 1° de Maio de 2024, dia internacional de luta dos trabalhadores em todo o mundo, está voltada para resgatar a breve e radical luta dos operários de Contagem, ocorrida entre 16 e 26 de abril de 1968. Procuramos destacar como a massa operária, não encontrando no sindicato uma organização para a luta, abre caminho para o enfrentamento do capital com base na sua experiência e no limite de suas próprias forças.

Na literatura das ciências sociais sobre a greve (Weffort; Grossi; Neves) faz-se referência ao tema da espontaneidade da greve de 1968, concomitantemente à atuação do sindicato dos metalúrgicos e das organizações de esquerda, atuantes nas fábricas e bairros operários (principalmente Ação Popular, Política Operária, Colina, Corrente), naquele momento. 

Apesar dos dirigentes sindicais e dos grupos de esquerda que atuaram intensamente na preparação e desenvolvimento da greve, o caráter espontâneo do movimento é relativamente consensual na literatura e mesmo nas avaliações das esquerdas, a posteriori dos fatos. Admitir a espontaneidade significa dizer que a prolongada paralisação não foi conduzida pelo sindicato, e sim pela massa, por meio das lideranças operárias emergentes no movimento. Representou o auge da luta de classes: influenciou a greve de Osasco, pôs em questão a legislação contra a greve e a política salarial da ditadura militar, enfrentando o regime na medida de suas possibilidades.

Partimos do pressuposto de que os fatos “retém suas próprias luzes”, propiciando o retorno de um tempo supostamente perdido (Victor Meyer). Suposto, porque, ao esbarrar nos limites impostos por um sindicato que sofrera intervenção no ano anterior e, portanto, não era um sindicato livre, o movimento viu-se obrigado à impulsionar a organização de base e coordenar a ação da greve envolvendo diversas fábricas sem contar a estrutura sindical.

Essa experiência, aliás, voltou a se expressar mais recentemente na greve da Companhia Siderúrgica Nacional, em 2022, deixando patente o caráter irredutível da exploração da força de trabalho pelo capital e a necessidade de entender a superação do atrelamento sindical e da lei de greve como uma luta política, de classe, a ser desenvolvida pelos próprios operários.

Em Nove Teses (1975), Ernesto Martins aponta o desafio de entender a primeira greve importante após o golpe militar: “Contagem, sem dúvida, representou o auge da luta de classes da época e seus ensinamentos nunca foram aproveitados devidamente.” Sem pretender fazer aqui uma “história da greve” e tampouco dar conta de extrair seus ensinamentos de modo sistemático, queremos pôr em relevo o entendimento de que a espontaneidade do movimento de Contagem constitui uma forma de aprendizagem na luta — e não apenas expressão de uma revolta contra a exploração capitalista e de políticas como a do arrocho salarial. Para isso, recorremos principalmente à contribuição de Francisco Carlos Weffort e de textos da Política Operária publicados na época.

Por razões relacionadas ao tamanho do arquivo e atenção para leitura, a presente publicação será dividida em três partes: na primeira apresenta-se a narrativa da primeira greve de Contagem (abril de 1968) tal como foi construída por Weffort; na segunda, reflete-se sobre a questão do espontaneísmo do movimento grevista; na terceira, procura-se mostrar como a Política Operária interpretou os sentidos da greves em termos da perspectiva de luta naquele momento.

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Os eventos (parte1)

De acordo com Francisco C. Weffort [1] a motivação imediata da greve na Cidade Industrial de Contagem (MG), em abril de 1968, está na recusa dos diretores da Belgo Mineira em aceitar o reajuste de 25% pleiteado pelos operários. A greve ocorre num contexto marcado pelo arrocho salarial, mas também por diversas lutas desde a segunda metade do ano de 1967, inclusive a greve na Acesita, com 3.500 operários parados em fevereiro de 1968.

Nada se sabe, até hoje, sobre os detalhes desse processo que contou com uma organização dos operários da trefilaria; [2] são eles que desencadearam a greve.

7:00 horas da manhã: na Belgo Mineira, não acontece a troca de turno dos operários. Os que entram são convidados a participar da greve de ocupação. Weffort fala que o movimento grevista atinge então 1.200 operários.

Os jornais noticiam o movimento sem apontar suas origens. As primeiras declarações do presidente do sindicato dos metalúrgicos também nada dizem a respeito. Declara-se surpreendido: “De fato, ninguém sabia de nada sobre a greve, com exceção das centenas de operários que fizeram a greve.”

Weffort, sem citar fontes, oferece a seguinte descrição do processo da greve:

A greve de abril começou, portanto, fora dos marcos do sindicato. Mais que isso, começou sem qualquer forma de organização. Não obstante sejam muito poucas as informações disponíveis sobre as suas origens, há indícios suficientes para supor que os embriões de organização corporativa que aparecem no movimento foram sempre posteriores aos acontecimentos e apenas buscavam alguma forma de coordená-los. Ao que se sabe, os operários da trefilaria da Belgo-Mineira, donos já de alguma experiência em greves ocorridas antes de 1964, não se conformaram com o pequeno aumento de outubro de 1967 e passaram a pressionar a empresa por um reajuste “fora de época”. [3]

Ainda de acordo com Weffort, após o fracasso da primeira reunião entre os grevistas e os diretores da Cia, o presidente do Sindicato (tratava-se de Antonio Santana) é chamado para mediar o conflito. Esta segunda reunião termina sem acordo. 

Em 17 de abril, a greve continua e a comissão cria um grupo encarregado de manter a disciplina. À tarde, representante da DRT aparece para uma visita aos diretores. O temor de uma invasão policial leva a comissão a criar um grupo voltado para a segurança. Ao final do dia, a paralisação está estruturada em comissões de representação, disciplina e segurança, que permitem a entrada dos trabalhadores do segundo turno, conquistando-os para a greve de ocupação.

No dia 18 de abril, a DRT declara greve ilegal. Diante disso, os operários decidem abandonar a ocupação e dirigem-se ao sindicato. Às 18 horas desse dia, a Polícia Militar ocupa a empresa. A comissão da Belgo-Mineira e a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos assumem a direção de uma a greve que então começa a se alastrar. No dia 19 de abril, nova reunião para discussão do dissídio instaurado pela DRT termina outra vez no impasse. Nesse dia, o movimento grevista recebe a adesão da Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE), com cerca de 500 operários, num processo marcado pela inexperiência e falta de confiança entre si quanto à liderança.

Com a possibilidade da extensão da greve e de sua maior duração, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, apela aos dirigentes sindicais para cessar uma greve que, mencionando boletins da esquerda pregando derrubar o governo e da organização de grupos dos cinco, se mantém à margem da lei. Afirma que irá negociar pessoalmente com o movimento. O que estava em jogo para a ditadura era tanto a ameaça do movimento operário, que passava por cima da lei de greve, como a ruptura da política salarial vigente, ou seja, o arrocho salarial. Contudo, a ditadura militar estava diante de uma situação de fato.

No dia 20 de abril, na chegada do ministro à Belo Horizonte, a greve já abrangia a Mannesmann, com aproximadamente 4.500 empregados paralisados.

Nesse mesmo dia, ocorre a primeira assembleia do movimento grevista (Belgo, SBE e Mannesmann), a qual constitui a Comissão de Greve, designando Ênio Seabra (operário da Mannesmann e dirigente sindical cassado em 1967) como seu presidente.

Na avaliação de Weffort, a Comissão de Greve foi “menos uma direção real que um ponto de referência para a ação dos piquetes.” Segundo o autor, “a criatividade organizatória da greve ficou sempre muito atrás da combatividade espontânea da massa de operários.”

Este é o movimento que confronta o ministro do trabalho, coronel Jarbas Passarinho, sem temer as ameaças do representante da ditadura militar. De fato, a greve, sustentada nos piquetes do pessoal da Belgo-Mineira e da SBE, se amplia até atingir seu ponto alto em 22 de abril. A Comissão se abre para os representantes de todas as empresas paralisadas, num total aproximado de 15 mil operários (Neves, p.133).

A resposta da ditadura veio rapidamente com a ocupação da Cidade Industrial pela Polícia Militar no dia 23 de abril. Com isso, bloqueia-se o único meio de organização do movimento, as assembleias massivas, a distribuição de boletins e os ajuntamentos de rua. De acordo com Weffort, 

Os pequenos embriões nascidos da espontaneidade operária se revelaram demasiado frágeis para mantê-los e as tentativas de articulação feitas pelos sindicatos dos metalúrgicos e dos bancários foram tardias. Embora vitorioso enquanto tinha campo aberto à expressão de sua espontaneidade, o movimento foi condenado ao fracasso desde o momento em que teve de provar sua capacidade de organização. Foi dissolvendo-se aos poucos, a medida em que os operários, agora completamente isolados, foram retornando ao trabalho. [4] Alguns dias depois, a Cidade Industrial já havia restabelecido plenamente suas atividades. Terminara a greve de abril.

Notas

[1] Francisco Correia Weffort. Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco – 1968. Cadernos CEBRAP, São Paulo,15,1972. O texto está disponível no site  https://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/?r=acervos/busca&keyword=weffort

[2] Setor da usina siderúrgica onde se processa transformação de chapas de metal em fios.

[3] Weffort assinala que a reivindicação foi apresentada “fora de época”, quer dizer, à margem da exigência legal de reajustes anuais de acordo com a data-base da categoria metalúrgica. Como a lei admitia antecipação, o patronato ofereceu 10% — proposta recusada pelos operários. No desfecho da greve, o Governo autoriza um abono salarial de 10% sem desconto estendido a todos os trabalhadores brasileiros.

[4] O retorno se deu a partir de 24 de abril. No dia 26, em assembleia no sindicato, os metalúrgicos decidiam encerrar a paralisação (Neves, p.136).

 

O espontaneísmo como questão A (parte 2)

Ao que se sabe, escreve Weffort, no Caderno do CEBRAP (1972,) à propósito do início da greve na Belgo-Mineira. Nestas quatro palavras em negrito condensa-se o sentido geral do espontaneísmo do movimento: não há uma versão própria dos operários a respeito. Dispomos dos testemunhos de participantes das diversas organizações da esquerda, apresentados por eles mesmos ou coletados a posteriori por pesquisadores como Francisco Correia Weffort (1937-2021), Yonne Grossi (1932-2023), Magda de Almeida Neves e Edgar Leite de Oliveira. 

Mesmo o papel atribuído às organizações de esquerda na greve pelos que dela fizeram parte deve ser apreciado com cautela. Assim, na comemoração dos 50 anos decorridos da greve, em 2008, Nilmário Miranda, ex-militante da Polop, escreve taxativamente:

A greve na Belgo foi liderada pelo Comando de Libertação Nacional (Colina), organização autodenominada político-militar, que editava o Piquete e era uma dissidência da Política Operária (Polop).” [1]

Vejamos a opinião de Antonio Santana Barcelos, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e militante do PCB em 1968. Após afirmar que o sindicato inicialmente apoiou a greve sem assumir formalmente a sua direção, porque corria o risco de uma nova intervenção, menciona o papel ativo do pessoal da AP e da Polop no encaminhamento da paralisação:

Na época, quem armou esse movimento grevista de 68 foi o pessoal da  Polop, o pessoal da Política Operária, clandestinos, quase todos eles eram estudantes universitários, na época, eu até coloquei um ou dois, que eram ligados a eles, que ficavam na porta das fábricas. Mas eles se arriscavam demais porque eles não eram metalúrgicos, eram estudantes universitários. De repente, a polícia pegava na porta lá do coisa, ia preso, ia ser torturado, aí,  nós criamos no sindicato, através de opinião da Conceição, a Imaculada, que  era secretária do sindicato, um departamento social de pessoas responsáveis por conseguir documentação pra aposentadoria daqueles operários, que  estavam em condição de se aposentar. Então, ela foi pegando o pessoal da Polop, foi colocando lá, fichando eles como pessoal do sindicato, que aí eles  tinham todo o direito de estar na porta da indústria [risos], procurando o  operário pra conversar, certo? Então, eles aproveitaram e organizaram aquele  movimento. [2]

É pouco provável que esses quadros da “Polop” (na verdade do Colina, dissidência desta organização) tivessem de fato organizado a greve, mas certamente participaram ativamente do processo na medida de suas forças e  possibilidades. Obviamente, Santana precisava destacar sua própria importância, pois a diretoria do sindicato ficou à margem das iniciativas do movimento grevista.

Imaculada Conceição, ex-militante do PCB que fazia parte da Corrente, dissidência comunista alinhada às posições de Marighela, ressalta, em seu testemunho, a relevância da tradição de luta anterior ao golpe de 1964 e discorda de que a greve foi espontânea:

Dizer que a greve foi espontânea é um erro. Existia toda a problemática dos trabalhadores e, por outro lado, a conjuntura política pós 64. Havia um movimento operário em ascensão que foi cortado, mas as lideranças continuavam lá. Ninguém pode afirmar, nem eu mesma, que o dia e a hora da greve não tenham sido marcados por alguma corrente. Eu creio que não, mas todos já trabalhavam para eclodir o movimento grevista. [3]

A controvérsia – tudo indica – continuará, pois é intrínseca a um movimento “espontâneo”.

Os testemunhos constituem registros importantes, porém apresentam mais os dilemas e as expectativas das organizações de esquerda participantes da primeira greve importante de 1968 do que propriamente uma posição de liderança. Esse tipo de fontes pode, contudo, oferecer respostas a questões do tipo: Haviam, de fato, células comunistas na fábrica? Qual foi a sua atuação?

A resistência em admitir um papel ativo, de protagonista ou de sujeito da greve à “massa operária”, inclusive tantas décadas após os fatos, revela uma concepção de luta de classes na qual apenas a vanguarda pode assumir a direção de movimentos.  

Para entender melhor a problemática, vale a pena ler duas cartas escritas por Friedrich Engels a August Bebel no final do século XIX.

A primeira data de junho de 1899 [4]. A segunda, dois anos depois, merece ser aqui transcrita:

A greve de carvão no Ruhr é certamente estranha para você, mas o que acontece? A greve imprudente da paixão raivosa é, como as coisas estão, a forma usual com que grandes novos estratos de trabalhadores são trazidos em nossa direção. Esses fatos me parecem ter sido considerados muito pouco no tratamento de Vorwärts. Liebknecht não conhece sombras, ou é totalmente preto ou totalmente branco; e se ele pensava que tinha o dever de provar ao mundo que nosso partido não incentivou essa greve, e até mesmo a acalmou, então Deus tenha misericórdia dos pobres grevistas – por eles foi demonstrada menos do que a preocupação desejável, para que venham ter conosco em breve. [5]

A carta aos companheiros da CSN, publicada no portal do Centro de estudos Victor Meyer, assume a perspectiva apresentada por Engels na carta acima citada. [6]

A propósito das fontes de Weffort, cabe dizer, ainda, para o esclarecimento da frase “Ao que se sabe”, que talvez tenha sido oriunda da convivência com militantes como Régis de Castro Andrade, do POC, um quadro integrado na produção em Osasco. Dele, temos uma entrevista com importantes pistas para conhecer a forma como se constituíam as fontes de informação naquele período da ditadura.

Uma outra característica das comissões de empresa era que as reuniões eram feitas fora do local de trabalho. Era impossível se reunir na empresa, tava cheio de “dedo-duro”, então as reuniões eram feitas em fins-de-semana nas casas. Os sábados e domingos em fins de 67, começo de 68 eram ativíssimos, o pessoal passava o tempo todo se reunindo aqui e ali, as principais lideranças emergentes ali, não necessariamente do POC, mas de qualquer organização, ou mesmo não organizadas, se encontravam em toda parte, iam nos campos de futebol de várzea para tomar cerveja, discutir no bar, e era um trabalho de conscientização, de organização e de estímulo permanente. [7]

Notas

[1]  Contagem: A cidade operária símbolo. ESPECIAL 1968 – 01/05/2008 – Nilmário Miranda. Disponivel em https://teoriaedebate.org.br/2008/05/01/contagem-a-cidade-operaria-simbolo/   

[2] Edgar Leite de Oliveira. Conflito social,memória e ecxperiência; as greves dos metalurgicos de Contagem em 1968. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em  Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. Disponível em https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/FAED-8DBH4N 

[3] A história contada pelos protagonistas. ESPECIAL 1968 – 01/05/2008 – Andréa Castello Branco, Disponível em https://teoriaedebate.org.br/2008/05/01/a-historia-contada-pelos-protagonistas/ As indicações de militância de Imaculada Conceição encontram-se disponíveis em https://forumverdade.ufpr.br/blog/2013/06/04/anistia-inaugura-monumento-as-vitimas-da-ditadura-e-promove-reparacao/ 

[4] A carta de Engels de 1889 encontra-se disponível em http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2022/05/A-greve-dos-mineiros-do-Ruhr-de-1889.pdf 

[5] A carta de Engels de 1891 encontra-se disponível em https://www.marxists.org/archive/marx/works/1891/letters/91_05_01.htm 

[6] Disponível em http://centrovictormeyer.org.br/carta-aos-companheirs-sobre-a-greve-na-csn/  

[7] Trabalho e sindicalismo: memória dos 30 anos do movimento de Osasco. DOSSIÊ MAIO DE 68 – ENTREVISTA. Tempo Social, v. 10, n2, outubro 1998. Disponível em https://www.scielo.br/j/ts/a/NS3k5MbwDZn5rJB97yzGdDf/


Uma avaliação polêmica (parte 3)

Na edição n. 17, de maio de 1968, o jornal Política Operária, do recém fundado Partido Operário Comunista [1], apresenta-se um balanço da experiência de Contagem. Há de se observar uma notável convergência entre a análise de Weffort, anteriormente exposta, e a posição do POC:

O movimento foi marcado pelo espontaneísmo, não tendo sido nem preparado nem dirigido pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Alguns diretores do Sindicato limitaram-se a auxiliar os operários e as comissões de greve que foram se formando. Enquanto isso, os trabalhadores começaram a se reunir no Sindicato, onde marcavam ponto todos os dias. E foi também no Sindicato que os operários se declararam em Assembleia Permanente enquanto os patrões não respondiam às suas exigências. (…) O espontaneísmo desta greve em Minas, que foi tão importante para o sucesso inicial do movimento, foi também o responsável pelo seu fim.

O sentido emprestado ao termo espontaneidade aparece em tintas mais fortes no trecho abaixo transcrito:

A greve foi ficando cada vez mais forte, estendendo-se das fábricas maiores às menores. Durante o movimento iam aparecendo novas lideranças, com visão de classe, que não confiam nos conchavos ou “diálogos” com os homens da burguesia e se baseavam mesmo na luta organizada da classe. Vemos assim que em qualquer luta, por mais espontânea que seja, toda consciência adquirida antes desempenha um papel importante: aqueles operários da Cidade Industrial que, de repente, explodiram contra a exploração sistemática de seu trabalho, de há muito que vinham assimilando as lições de tudo que se passava em volta. As experiências de pequenas paradas de trabalho contra atraso de pagamento, os esclarecimentos que lhes eram passados por companheiros mais conscientes, a compreensão de que nada podiam esperar dos governantes e dos patrões, as experiências das lutas dos estudantes: tudo isso foi amadurecendo na cabeça de todos aqueles trabalhadores cansados de vender por uma miséria o suado trabalho de suas mãos. Tudo isso contribuiu para que, num dado momento, toda a insatisfação acumulada se transformasse num movimento coletivo de revolta.

No jornal, menciona-se a assembleia na qual 6.700 participantes da greve responderam às ameaças de “guerra” e propostas de abono de 10% do ministro do Trabalho com uma prolongada vaia. A cada tentativa da ditadura, representada no ministro do Trabalho, de impedir o movimento, os operários reagiam com uma ação ousada. Assim, diante do impedimento do uso do salão do sindicato pela polícia, realizaram uma assembleia na delegacia do sindicato, na Cidade Industrial, em que, por 1.534 contra 40 votos dos sindicalizados com direito a voto, exigência da DRT, decidiram, com a aclamação dos 6.000 operários presentes, continuar a greve.

A conclusão da matéria, em que pese a avaliação de que faltou uma organização que dirigisse cada ação, apontando a necessidade das comissões de greve se transformarem em Comitês de Empresa, aposta na continuidade do movimento garantido pelo surgimento de nova lideranças reveladas na luta. A elas caberia a responsabilidade de preparar “cada pequena ação na perspectiva da greve geral.” [2]

Essa expectativa expressa-se de modo evidente no Informe Nacional n. 1, de agosto de 1968, do POC.  Sob o titulo de “A tarefa imediata do nosso Partido: propagar, agitar, preparar e dirigir a greve geral”, assim se fundamenta a pretensão:

Nossas análises políticas já tem mostrado o papel que a greve geral desempenha neste momento no conjunto da luta de classes no país. Depois da Cidade Industrial e de Osasco ela já ultrapassou a fase da agitação para entrar na fase de sua preparação efetiva. O exemplo ecoou em parcelas decisivas da classe que agora se preparam para conduzi-lo avante.

Decorriam daí diretrizes para o trabalho de agitação:

Na nossa agitação nas fábricas, com panfletos, boletins ou comícios-relâmpago, devemos tratar da greve geral. A agitação deve preparar no sentido de ganhar o maior número de operários para a ideia da greve. 

Eram atividades de um processo que incluía, adiante, para viabilizar a greve geral, a criação de “comandos gerais de greve em cada cidade”. [3]

Esse voluntarismo extremado que deslocava os militantes para fora da realidade pode ser explicado, em certa medida, como o resultado esquerdista advindo da forte pressão exercida no âmbito da Frente de Esquerda Revolucionaria (FER) e dentro do POC, pelos defensores da luta armada imediata em 1968. Era, por outro lado, manifestação do relativo isolamento do partido em relação aos centros da vida operária, nas fábricas e nos bairros. Nesse contexto, o exercício de palavras de ordem de ação, a exemplo da greve geral contra o arrocho salarial, acabava por redundar numa lista de chavões pontuados com exclamação.

O Informe Nacional n. 2, de outubro de 1968, rediscutiu a questão da greve geral fazendo reparos ao modo como foi formulada no Informe anterior. Sem abrir mão da palavra de ordem, critica o encaminhamento da greve geral como tarefa imediata. Desenvolve uma reflexão acerca da compreensão de que o arrocho salarial é simplesmente a exploração capitalista e que, em decorrência, somente um processo revolucionário derrubaria o arrocho. Alerta que somente pode fazer “essas acrobacias teóricas quem estiver bem distanciado da própria classe” e que o termo significa, para os operários, o conjunto as leis da ditadura que forçam os reajustes salariais a ficaram abaixo do custo de vida”. Outro argumento importante que combate é o de que “a burguesia não pode conceder mais do que concede atualmente sem comprometer toda a sua política econômica, uma visão economicista que subestima a força da luta de classes e, mais importante, de que, diante da greve geral, será capaz de por um fim a politica de arrocho para evitar a radicalização da luta operária, procurando “outras formas para acumular intensivamente a sua mais-valia”. [4]

A concessão à greve geral contra o arrocho se traduziu, naquelas circunstâncias, na organização de uma frente de esquerda para desencadear a segunda greve em Contagem, em outubro, com a reivindicação de 50% de aumento salarial e sem entrar em dissídio, greve duramente reprimida e nitidamente acima das possibilidades de luta do proletariado.

O peso da palavra de ordem da greve geral contra o arrocho na mobilização entre os militantes fez a direção nacional do POC deixar de lado, praticamente esquecer o problema do atrelamento do sindicato ao Estado burguês, nas condições daquele momento. Daí, possivelmente, a dificuldade de fazer um balanço da greve de Contagem em seus dois momentos.

Se, após a desocupação da Belgo-Mineira no dia 18 abril de 1968, os grevistas se dirigiram ao sindicato é porque este constituía uma forma de reagrupar forças e a garantia da negociação, quer dizer, da ação nos limites da legalidade. A comissão de greve assumiu (como vimos, de modo bastante precário) o papel de uma coordenação do movimento. Mas esta tarefa organizativa, vital na greve, em nenhum momento suscita, nos documentos mencionados, qualquer referência aos limites do sindicato como instrumento de luta de classe.

Em junho, Ernesto Martins (Érico Sachs) apresenta um texto ao Ativo Nacional Operário do POC, no qual se afirma taxativamente que a participação dos revolucionários nos sindicatos, tendo em vista o trabalho nas fábricas e a organização sob controle da base operária, teria a obrigação de dar passos concretos para quebrar a estrutura de atrelamento ao Estado, sem jamais aceitar cargos em diretorias sindicais. [5]

Pode-se dizer que as recomendações caíram em ouvidos moucos. No clima grevista da luta contra a ditadura militar não havia possibilidade de pensar o trabalho nos sindicatos como parte da tática de luta pela independência política do proletariado.

Alguns anos mais tarde, já no exílio, Ernesto Martins fez um balanço da luta de classes naquela época que, pela sua relevância, transcrevemos aqui:

Contagem ainda não era um setor de vanguarda, que sem dúvida repercutiu na classe, mas  que com exceção de Osasco, não encontrou imitadores.

A situação do proletariado piorou durante os anos seguintes. É preciso ver que não foi  somente o Ato-5, o arrocho geral de qualquer oposição à política da ditadura, o responsável  para esse estado de coisas. O AI-5 foi promulgado num momento em que o movimento de  massas já estava em refluxo. Além da repressão das greves, o regime tinha começado a  beneficiar-se da retomada das atividades econômicas, superando a crise cíclica, pela qual, o  capitalismo brasileiro tinha passado na década de 60. Esses fatores em si ainda não teriam  justificado o silêncio de cemitério, que no decorrer dos anos seguintes se impôs no terreno  das lutas de classes no país. Fases de expansão econômica não são forçosamente adversas à  luta da classe operária, quando os métodos de trabalho dos revolucionários forem  apropriados (em muitos países as primeiras organizações do proletariado surgiram  justamente em fases de expansão econômica). Isso pressupõe das lideranças e dos quadros  um trabalho a prazo e não a contínua procura do confronto com o regime e com o sistema. No  nosso caso não houve esses movimentos coletivos. Prevaleceu a resignação do proletariado,  que em grande parte procurou soluções individuais, trocas de emprego, etc., para aliviar-se dos seus problemas.   Essa situação foi facilitada pela ação das esquerdas, que abandonaram a classe operária à  sua sorte. O PC, com sua política de “Frentes Amplas”, apoio à oposição burguesa e às  consequentes cisões internas praticamente tinha se tornado uma organização de classe  média. A chamada ER, que na primeira ocasião se tornara militarista, não só afastou-se  completamente do proletariado, como arrastou grande parte de quadros e bases operarias  para a derrota. A pequena minoria, finalmente, que não seguiu esses caminhos (e aqui não  estamos nos referindo só a nós), além da sua fraqueza numérica, por sua vez teve dificuldades  de adaptação à nova situação criada. Como resultado da situação geral, o proletariado  brasileiro, durante anos foi exposto à pressão e a influencia unilateral do regime militar, sem  que a esquerda pudesse contrapor algo a esse monopólio. Embora o regime não conseguisse  conquistar a classe operária – nem sequer chegou a criar bases no seio dela – conseguiu neutralizá-la por muito tempo, condenando-a a uma passividade prolongada. [6]

A ruptura dessa situação veio em 1978, mas esse é outro capítulo da história da luta operária no Brasil.

João Ferreira

Abril de 2024

Notas

[1] O Partido Operário Comunista (POC) foi o resultado da fusão entre a ORM-Polop e a Dissidência Leninista do PCB no Rio Grande do Sul.

[2] Jornal “Política Operária”, n.17 maio de 1968 – POC. Acervo CEDEM/microfilmes 1975-1982.

[2] Informe Nacional n. 1, agosto de 1968  – POC. Acervo CEDEM/Microfilmes 0816-0825).  

[4]  Informe Nacional n.2, outubro de 1968 – POC. Acervo CEDEM/Microfilmes 0826-0827)

[5] Nosso trabalho nos sindicatos, 1968. Disponivel em http://centrovictormeyer.org.br//wp-content/uploads/2010/04/Nosso-trabalho-nos-sindicatos.pdf 

[6] Nove Teses, 1975. Disponível em http://centrovictormeyer.org.br/acervos/arquivo-erico-sachs/ 

 

Livros citados

Luís Flávio Rainho e Oswaldo Martines Bargas. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo. FG/Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. São Bernardo, 1983.

Magda de Almeida Neves. Trabalho e cidadania: as trabalhadoras de Contagem. Petrópolis: Vozes, 1995.

Victor Meyer. Frágua inovadora: o tormentoso percurso da Polop, 1999. Disponível em

http://centrovictormeyer.org.br//wp-content/uploads/2010/04/Fr%C3%A1gua-inovadora.pdf 

Yonne Grossi. As greves de Contagem – 1968: notas para uma revisão crítica. Cadernos dos Movimento Populares Urbanos. Belo Horizonte: DCP/FAFICH/UFMG, n.1, 1979.

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