Fatos & Crítica 36: Guerra da Ucrânia: “Os custos serão pagos pelos trabalhadores”
Este conflito, que tem uma gênese que vai muito além da conveniente interpretação de nossa mídia nacional e de nossos políticos, como toda guerra na história, terá sérias consequências para todos nós. Os custos serão pagos pelos trabalhadores. Na Ucrânia e na Rússia, é claro, mas também nos países europeus, através do aumento do custo de bens energéticos, como gás e petróleo e gastos militares.
[Unione Sindacale di Base – https://www.usb.it/leggi-notizia/ em 08/04/2022]
Assim se expressou um sindicato italiano a respeito da Guerra na Ucrânia. E eles não ficaram apenas nas palavras. Os trabalhadores sindicalizados do aeroporto civil de Pisa impediram o embarque de armas para a Ucrânia, que estavam disfarçadas de “ajuda humanitária”. Fizeram isso não apenas pelo fato de estar sendo utilizada uma instalação civil para fins militares, mas em apoio à paz e contra a OTAN. “Nós não concordamos em enviar armas… porque arriscamos uma terceira guerra mundial”, declararam.
De fato, na Guerra da Ucrânia os trabalhadores não podem apoiar nenhum dos lados, pois se trata de uma guerra entre dois países imperialistas, possuidores de armamento nuclear, que lutam para expandir as suas respectivas esferas de influência: a Rússia, de um lado, e os Estados Unidos, de outro, estes últimos empreendendo uma “guerra por procuração”, na qual estão dispostos a lutar até o último ucraniano.
A guerra nos campos de batalha é acompanhada também de uma guerra de propaganda, em que cada lado se esforça para denunciar as barbaridades do outro, sejam reais ou fictícias. A Ucrânia acusa a Rússia de massacrar civis; a Rússia acusa a Ucrânia de executar prisioneiros de guerra e de manter laboratórios de guerra biológica com a ajuda americana. E a grande imprensa burguesa do Ocidente coloca toda a sua influência para caracterizar Putin como um demônio e Zelensky, como um anjo, ajudando a promover o fornecimento massivo de armas para o governo direitista ucraniano.
As contradições geopolíticas
Depois da Segunda Guerra Mundial, o líder comunista alemão August Thalheimer caracterizou a relação entre as potências capitalistas como de “cooperação antagônica”. As antigas contradições entre as potências imperialistas, que produziram o conflito mundial e continuaram a existir depois dele, foram de certa forma, contrabalançadas pela necessidade de cooperação entre elas, sob a hegemonia dos Estados Unidos.
Afinal, Alemanha, Japão, Itália e também a França e a Grã-Bretanha saíram arrasados do conflito e não tinham condições econômicas ou militares de recusar a liderança dos Estados Unidos na exploração colonial e no combate ao mundo socialista liderado pela União Soviética.
Nesse contexto, foi criada em 1949 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), para coordenar as forças militares dos principais países capitalistas da Europa e da América do Norte, sob o comando dos Estados Unidos, tendo como alvo o Bloco Socialista que, em reação, criou em 1955 o Pacto de Varsóvia.
Com a dissolução da União Soviética em 1991 e a restauração do capitalismo nos países que a formavam, bem como nos vizinhos do Leste Europeu, a OTAN perdeu a sua razão fundamental de ser, mas logo foi utilizada em guerras regionais na Iugoslávia (1995 e 1999), no Afeganistão (2001), no Iraque (2003) e na Líbia (2011), para a defesa dos interesses imperialistas da chamada “Aliança Ocidental”, sob a liderança dos Estados Unidos.
O mundo unipolar que emergiu do fim do Bloco Socialista proporcionou, entretanto, o crescimento capitalista exponencial da economia chinesa, que hoje rivaliza em tamanho com a dos Estados Unidos e ameaça a hegemonia global americana. Para conter esse avanço chinês, já na administração de Donald Trump foi deflagrada uma guerra comercial contra a China e foram implementadas medidas para cercá-la militarmente, como a criação da aliança militar AUKUS (formada pela Austrália, EUA e o Reino Unido) e do Quad (Diálogo Quadrilateral de Segurança), com a participação de Índia, Japão, Austrália e EUA.
Já a Rússia, depois da restauração do capitalismo, não teve um crescimento tão expressivo quanto o chinês, bastando citar que a sua economia hoje tem dimensões próximas às do Brasil. Mas preservou e ampliou o poder militar herdado da URSS, com a fabricação de armas modernas, como os mísseis hipersônicos. Isso a tirou da posição subalterna a que fora relegada pelas potências ocidentais após o fim da União Soviética e agora ela procura recuperar sua importância geopolítica.
Aproveitando-se da fraqueza da Rússia após o colapso da URSS, a OTAN – apesar das promessas em contrário – expandiu as suas fronteiras sucessivamente para vários países da Europa Oriental que faziam parte do antigo Pacto de Varsóvia, inclusive integrantes da antiga União Soviética, como as repúblicas bálticas. E o seu desejo é o de continuar a expansão, abarcando também a Ucrânia, país que chegou até a inscrever esse objetivo dentro de sua própria Constituição.
Mas a política americana de cerco à Rússia e à China impulsionou inevitavelmente um em direção ao outro e a construção de uma “parceria sem limites” – termos utilizados pela Declaração Conjunta dos dois países, assinada em fevereiro de 2022 – combinando a potência econômica chinesa com a potência militar russa.
À China interessaria muito mais um mundo sem conflitos, onde ela pudesse expandir as suas relações comerciais com base no seu vasto potencial econômico, exportando capitais e promovendo grandes projetos de infraestrutura globais, como as “Novas Rotas da Seda”.
Mas a política agressiva dos EUA, envolvendo o envio de missões militares a Taiwan e navios de guerra para o Mar do Sul da China, para não falar no apoio à insurgência em Hong-Kong e no Xinjiang, obrigou-a a encarar a realidade e aproximá-la da Rússia. A relativa cooperação mundial que lhe favorecia foi substituída pela confrontação.
Assim é que começa a se conformar uma aliança entre a Rússia e a China, em contraposição ao bloco imperialista dos países da Aliança Atlântica, bloco onde agora a cooperação predomina amplamente sobre o antagonismo. Como o bloco em formação entre a China e a Rússia tem também como objetivo se expandir globalmente, ele entra inevitavelmente em choque com o poder hegemônico dos EUA.
A Guerra da Ucrânia é uma expressão desse antagonismo nascente.
Causas internas
Se as causas principais da guerra são geopolíticas, ela não seria possível se as contradições internas da Ucrânia não permitissem.
O país ocupa o último lugar na Europa em renda per capita, abaixo até mesmo dos países mais subdesenvolvidos do velho continente, como a Albânia, o Kosovo e a Moldávia. Estimava-se na segunda década deste século que 60% de sua população vivia na pobreza. Os sintomas disso são a alimentação das redes de prostituição europeias por mulheres ucranianas e a participação delas no comércio de “barrigas de aluguel”.
A razão para essa tragédia encontra-se no colapso econômico e social do país, a partir da dissolução da União Soviética em 1991. Membros da antiga burocracia local tomaram o poder nos anos 90, declararam a independência e distribuíram as propriedades estatais para uma nova burguesia, implantando uma economia capitalista caracterizada pelo elevadíssimo grau de corrupção.
Em 2014 a difícil situação econômica, social e política do país gerou um amplo movimento de massas contra o governo, logo hegemonizado pela extrema direita, que retirou do poder Viktor Yanukovych. Ele era o representante da nova classe burguesa que se orientava em direção a Moscou, apoiado pela parcela etnicamente russa da Ucrânia, que se concentra no leste industrializado do país.
Essas contradições fizeram renascer o velho nacionalismo ucraniano, voltado contra a Rússia, cujas características fascistas expressaram-se abertamente nas homenagens oficiais a Stepan Bandera – líder que na Segunda Guerra Mundial colaborou com a Alemanha nazista na ocupação do país – e na formação de milícias armadas, como o Batalhão Azov. O incêndio da Casa dos Sindicatos em Odessa, matando 50 pessoas, expressa bem o nível de radicalização dessa extrema direita ucraniana.
As potências ocidentais aproveitaram a situação, desde os primórdios do processo, para atrair o país para a Comunidade Europeia e para a OTAN, apoiando com todos os meios, inclusive armas e treinamento, a liderança política formada por tecnocratas neoliberais e nacionalistas de extrema-direita.
Para os ucranianos, participar da União Europeia (UE) significaria antes de tudo uma porta aberta para a emigração em direção a melhores condições de vida, escapando da miséria reinante. A Ucrânia não foi admitida na UE, mas a abertura das fronteiras ocidentais para os quatro milhões de refugiados de guerra acabou por realizar antecipadamente esse objetivo. Quanto ao país em si, se vier a ser aceito na UE, dificilmente escapará do destino de capitalismo periférico no interior da Comunidade Europeia, a exemplo de Romênia e Bulgária.
Porém, as ações de opressão dos novos governos surgidos após 2014 contra a minoria russa levaram à eclosão de uma guerra civil no país, dando ensejo à anexação da Crimeia pela Rússia e à proclamação de duas repúblicas separatistas no leste do país, que ficaram desde 2014 sob intenso bombardeio da administração de Kiev.
A guerra instalada
Para os países imperialistas, a guerra é sempre uma saída para as crises econômicas, ao queimar capital em grande escala e promover a indústria de armamentos. No plano mundial, não houve recuperação econômica no pós-pandemia, a taxa de lucro nas principais economias continua em baixa e a crise do capitalismo mundial não tem solução à vista. A guerra da Ucrânia aparece como uma “janela de oportunidades” para os EUA e alguns países europeus, ainda que flerte com um conflito nuclear que aniquilaria a vida no planeta.
Os EUA utilizaram o governo direitista ucraniano como instrumento de seu plano de isolar a Rússia, ao propor a incorporação do país à OTAN, o que permitiria, entre outras vantagens, a instalação de mísseis nucleares a uma distância tão curta de Moscou que impossibilitaria uma retaliação russa em caso de ataque. Nessa luta pela sobrevivência, o imperialismo russo não teve alternativa a não ser marchar sobre a Ucrânia.
Ao mesmo tempo, os EUA conseguiram manipular e unificar os países da OTAN contra a Rússia, sob sua liderança, enfraquecendo as veleidades de independência da Europa, que está renunciando à importação de gás russo em contratos de longo prazo e a baixo custo, para importar gás liquefeito americano em quantidade insuficiente para o consumo e a alto custo.
A Alemanha é o país que mais sai prejudicado em suas ambições geopolíticas no cenário europeu, uma vez que o gasoduto Nord Stream 2, financiado pela Gazprom russa e várias empresas europeias de energia, é essencial para a indústria alemã e transformaria o país num centro distribuidor de energia para a Europa Central. Nunca a “cooperação” predominou tanto contra o “antagonismo” nas relações entre as potências europeias e os Estados Unidos.
A tática utilizada pelos EUA na guerra consiste em fornecer o maior número de armas ao governo ucraniano, sem deslocar forças para o teatro da guerra, ao mesmo tempo em que aplica sansões econômicas à Rússia para enfraquecer seus recursos e criar divisões na sua sociedade que possam levar à destituição de Putin. Para eles, o maior sonho seria substituir Putin por uma liderança subserviente como foi Yeltsin no passado, que concordasse em abrir mão da soberania do país em termos políticos e, sobretudo, militares.
É possível que a Rússia tenha subestimado a importância do nacionalismo ucraniano na resistência à invasão. Ela falhou ao não conseguir a destituição do governo de Kiev e teve que redirecionar suas tropas para objetivos mais limitados no leste da Ucrânia: a ampliação da superfície das repúblicas separatistas e a criação de um corredor terrestre entre elas e a Crimeia.
Consequências
Qualquer que seja o resultado do conflito, perderão com ele os trabalhadores da Rússia, da Ucrânia e, em maior ou menor grau, de todos os países do mundo.
Os trabalhadores ucranianos perderão suas casas, seus empregos e sofrerão uma miséria ainda maior do que a existente antes da guerra. Os trabalhadores russos sofrerão com as sanções econômicas, especialmente com a inflação e as consequências do bloqueio econômico ao país.
Os trabalhadores europeus terão que arcar com custos altos de energia, numa situação de inflação ascendente, inédita em países como a Alemanha, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, o aumento dos gastos militares vai significar menos recursos para as áreas sociais, ou seja, o padrão de vida dos trabalhadores será duramente afetado. Movimentos de protesto poderão surgir no contexto europeu e não é impossível que venha a ocorrer fissuras entre os países do bloco.
Mas, numa situação em que a esquerda tradicional europeia se dobrou ao liberalismo e abandonou a perspectiva socialista, as chances de subirem ao poder governos de extrema direita, que capitalizarão a insatisfação gerada pelas consequências da guerra, é alta. A quantidade de armas que está alimentando os grupos extremistas ucranianos poderá facilmente cair nas mãos dos grupos neonazistas do restante da Europa, trazendo uma preocupação a mais.
O impacto da guerra sobre o mercado de alimentos também será bastante severo, uma vez que a Rússia e a Ucrânia são responsáveis por um quarto das exportações mundiais de trigo. Assim, principalmente os países africanos poderão sofrer com a escassez de alimentos e o aumento de seus preços.
Por essas razões, devemos apoiar a posição internacionalista de parar a guerra e o morticínio, com a implantação de um cessar-fogo imediato, além da suspensão do envio de armas à Ucrânia. Isso implica também a defesa da dissolução da OTAN e, no caso brasileiro, a interrupção de qualquer iniciativa de adesão a essa aliança militar, mesmo como sócio de segunda classe.
Os trabalhadores de todo o mundo nada têm a ganhar com essa guerra, só têm a perder.
Por isso mesmo, o movimento contra a continuidade da guerra e todos os seus terríveis desdobramentos econômicos, políticos e sociais, é uma exigência que se impõe aos trabalhadores em sua luta.
Assumir essa perspectiva de classe significa apontar para a necessidade da superação do capitalismo, mediante a conquista do poder e a instauração do socialismo. A palavra de ordem “socialismo ou barbárie” nunca foi tão atual e deve ser novamente levantada pelo proletariado consciente.
Coletivo do CVM – 12 de abril de 2022