Fatos & Crítica 38: A crise social, as manobras de Bolsonaro e as propostas da oposição

Coletivo do CVM

 

A crise social continua revelando suas terríveis consequências. Estima-se que 33 milhões de pessoas estejam passando fome no país, número que vem se acelerando nos últimos meses em função do aumento extraordinário do custo dos alimentos.

A pequena diminuição do desemprego no trimestre até maio – para 9,8% – não foi capaz de atenuar esse quadro geral de miséria, tendo em vista que o número de trabalhadores informais continua alto e o rendimento médio de R$ 2.613,00 revela uma perda de poder aquisitivo da ordem de 7,2% em relação ao mesmo período do ano passado.

O fato é que mesmo o trabalhador que tem um emprego formal está tendo dificuldades para garantir a reprodução de sua força de trabalho e o sustento de sua família, diante de uma inflação de 12%, e tem que reduzir a cada dia que passa a quantidade e a qualidade de sua alimentação. Isso significa dizer que, nesta fase do ciclo econômico do capitalismo no Brasil, a exploração da força de trabalho se agrava de maneira absoluta.

Como se pudesse compensar a miséria social que afeta os trabalhadores, o governo ultraliberal de Jair Bolsonaro alega que a economia teria voltado a crescer. De fato, o Produto Interno Bruto do país cresceu 1,0% no primeiro trimestre do ano, em relação ao trimestre anterior, puxado basicamente pelo setor de serviços, mas a indústria cresceu apenas 0,1% e a agropecuária diminuiu 0,9%.

E a queda de 3,5% na chamada “formação bruta do capital fixo” – termo que diz respeito aos investimentos capitalistas – também no primeiro trimestre do ano, revela que não se pode esperar um crescimento econômico nos próximos meses. Os próprios economistas burgueses, com base inclusive nos sinais mundiais de recessão, preveem para o segundo semestre deste ano um crescimento bem menor do país, até porque os estímulos ao consumo gerados pelos saques do FGTS e pela antecipação do 13º salário dos aposentados não estarão mais atuando.

 

A PEC eleitoral

Um cenário econômico e social desse tipo coloca a candidatura de Bolsonaro à reeleição como altamente improvável, o que é revelado pelas pesquisas de intenção de voto recentemente realizadas, que preveem uma vitória de Lula no primeiro turno com cerca de 47% dos votos, contra 28% do capitão.

Diante dessa perspectiva eleitoral desanimadora, as forças do Centrão que sustentam Bolsonaro no parlamento idealizaram uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que pretende alavancar a sua candidatura, por meio da concessão de uma série de benefícios, visando a ampliação de sua base eleitoral.

Está prevista na PEC 01/2022 a distribuição de recursos da ordem de R$ 41 bilhões, divididos entre o aumento de R$ 400,00 para R$ 600,00 do valor do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família), distribuição de R$ 1.000,00 por mês para os caminhoneiros e duplicação do valor do vale-gás. Tudo isso com validade apenas até dezembro deste ano, para não deixar dúvidas quanto aos seus objetivos.

De fato, como a intenção de uso de recursos públicos para fins eleitorais é absolutamente descarada, faz parte da proposta também a instituição de um certo “estado de emergência” para o mesmo período, de forma a blindar Bolsonaro de qualquer acusação de burla da legislação eleitoral.

Trata-se de mais uma iniciativa de utilização do poder econômico para influenciar no resultado das eleições, mesmo violando a “regra de ouro” do teto de gastos. Tradicionalmente no Brasil utiliza-se a compra direta de votos do eleitor nas cidades e o voto de cabresto no interior, dominado pelos latifundiários. Essas duas formas garantiram as maiorias conservadoras nos parlamentos do país ao longo de décadas.

As diversas frações da burguesia também utilizam permanentemente o seu poder econômico para o financiamento direto das campanhas de seus candidatos, em todos os níveis, de maneira a garantir que os seus interesses estejam representados nas diversas esferas de poder.

Recentemente, tendo sido proibido o financiamento empresarial direto por conta dos escândalos recentes, ele foi substituído por um fundo público eleitoral, que monta a R$ 4,9 bilhões para as eleições gerais de 2022. A distribuição desse fundo leva em conta a proporcionalidade da participação dos partidos na Câmara de Deputados (48% dos recursos), nos votos válidos na última eleição (35%), no Senado (15%), sobrando apenas 2% para serem distribuídos igualmente entre todos os partidos registrados.

Assim, as diversas frações da burguesia se livraram do peso de financiar diretamente seus candidatos – embora isso não as impeça de continuar bombeando recursos pelo tradicional “caixa 2” das empresas – e empurraram essas despesas para a conta do Tesouro Nacional, garantindo, entretanto, que fossem distribuídos de uma forma que privilegiasse e preservasse a maioria esmagadoramente conservadora do Congresso Nacional.

Mais recentemente, essa mesma maioria inventou uma outra forma de influenciar as eleições nas bases eleitorais dos parlamentares que apoiam o governo, com a instituição de um “orçamento secreto”, assim chamado por ocultar o nome dos parlamentares interessados nas verbas, pelo qual cerca de R$ 16,5 bilhões foram ou serão distribuídos neste ano para a realização de pequenas obras patrocinadas por deputados e senadores nos seus respectivos currais eleitorais, incluindo as superfaturadas e as inexistentes.

Assim, a PEC eleitoral de Bolsonaro é mais um expediente utilizado por frações burguesas para manipular as eleições. Se não garante a reeleição do capitão, talvez permita que ele chegue ao segundo turno, além de servir para preservar o conservadorismo dominante no parlamento brasileiro. Aliás, comentaristas políticos preveem que o Congresso Nacional que sairá dessas eleições gerais, por conta do “orçamento secreto”, será ainda mais reacionário do que o atual, se é que isso é possível.

Imprensada entre aceitar a compra descarada de votos pelo Centrão de Bolsonaro ou ser acusada de estar contra o aumento do novo Bolsa Família, a oposição optou pela primeira alternativa. Como ficou com a dolorosa sensação de ter dado um tiro no pé, obrigou-se a praticar táticas de obstrução parlamentar, para atrasar a implementação das medidas e, deste modo, diminuir o prejuízo eleitoral.

 

Vamos juntos pelo Brasil?

Em junho foram tornadas públicas as Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil, de autoria da coligação que apoia a candidatura Lula à Presidência, constituída pelo PT, PSB, PCdoB, Verdes, PSOL, Rede e Solidariedade.

As Diretrizes da coligação denominada “Vamos juntos pelo Brasil” propõem que as “forças democráticas e progressistas” se unam em torno de uma “reindustrialização nacional de novo tipo”, do fortalecimento da agropecuária e do estímulo a setores inovadores, fomentando complexos industriais estratégicos nas áreas da saúde, energia, alimentos e defesa. Tudo isso seria acompanhado de um “vigoroso programa” de modernização e ampliação da infraestrutura de transporte, social e urbana.

Para a coligação, a política econômica do governo Bolsonaro é a principal responsável pelos retrocessos na produção e no consumo e bastaria a recomposição do papel indutor do Estado e das empresas estatais na direção certa para colocar a economia capitalista novamente nos trilhos e restaurar as condições de vida da população.

Resumindo, o PT e seus aliados propõem substituir novamente a política econômica neoliberal dos governos Temer e Bolsonaro por uma política nacional-desenvolvimentista de estilo keynesiano, no qual o Estado e as empresas estatais teriam papel proeminente.

O problema é que o Brasil não é um país isolado dentro da ordem mundial imperialista e o que se configura nos médio e longo prazos é uma recessão generalizada, que terá um impacto profundo nos países exportadores de matérias primas, como é o nosso caso. O cenário que temos à frente, e que, de certa forma, já se iniciou, é o de estagnação econômica conjugada com inflação, o que coloca na ordem do dia em todos os países capitalistas a luta dos trabalhadores contra a desvalorização dos salários.

Assim é que as “forças democráticas e progressistas”, que pretendem assumir o governo em 2023, terão pela frente a escolha entre conter as reivindicações dos trabalhadores ou desagradar à classe dominante, empenhada em preservar as suas taxas de lucro. O segundo governo Dilma, por exemplo, ao enfrentar dilema semelhante, nomeou o neoliberal Joaquim Levy para o Ministério da Economia e jogou no lixo a experiência nacional-desenvolvimentista da “nova matriz econômica”, sem que esse gesto tenha alterado minimamente o destino do governo.

A disposição prévia da coligação “democrática e progressista” de subordinar-se aos interesses da classe dominante revela-se em outro item das “diretrizes”: em vez de revogação pura e simples da reforma trabalhista de Temer, ela pretende apenas a “revogação dos seus marcos regressivos”, como o fim da gratuidade na Justiça do Trabalho. Nada sobre rever a reforma da previdência e as privatizações realizadas pelos governos anteriores. Cabe agora apenas barrar a privatização dos Correios e “fortalecer” os bancos estatais.

No que concerne aos trabalhadores, propõe vagamente a retomada da valorização do salário-mínimo, sem se comprometer com qualquer valor ou meta, e a renovar e ampliar o Bolsa Família, coisa que o próprio governo Bolsonaro já está praticando, agora com fins eleitorais.

Pretende também respeitar a autonomia sindical, assegurar o direito de greve e incentivar a reestruturação sindical, sem revelar concretamente como fará isso. E defende o respeito às “decisões de financiamento solidário e democrático da estrutura sindical”, o que parece remeter a alguma forma de arrecadação de fundos compulsória, definida por direções sindicais burocráticas em assembleias esvaziadas, prescindindo da adesão voluntária e consciente dos trabalhadores.

Nenhuma palavra é proferida contra o atrelamento da estrutura sindical ao Estado, que ainda permanece praticamente intacto na legislação em vigor. Nenhum sindicato no Brasil pode existir sem possuir uma “carta de reconhecimento” emitida pelo Ministério/Secretaria do Trabalho, onde o Estado outorga sua base territorial de atuação – nunca inferior a um município – e onde existirá apenas um sindicato por categoria profissional.

As demais “diretrizes” têm um conteúdo tão genérico, que poderiam ser assinadas por qualquer político em tempos de eleição, como: investir na educação, na saúde, na cultura, na ciência e na segurança pública; promover a dignidade das mulheres, das crianças, dos idosos e dos animais; combater o racismo e a corrupção; valorizar os servidores públicos.

Mas duas diretrizes são especialmente reveladoras do “DNA” desse embrião de programa de governo: uma que fala da defesa dos “direitos humanos” dos policiais, velha contraposição retórica da direita à defesa das vítimas da violência do aparelho repressivo, num momento em que a “exclusão de ilicitude” dessa violência é ampla e impunemente praticada.

A outra propõe a promoção das mulheres por meio do “empreendedorismo”, fórmula ideológica desgastada que tenta colocar nas mãos das desempregadas soluções de ascensão social ilusórias dentro do capitalismo, destinadas ao fracasso.

Sim, entre as “diretrizes” há também a revogação do teto de gastos, mas este, na prática, já se tornou letra morta, depois dos dispêndios para o combate às consequências da pandemia em 2020 e com a PEC eleitoral de Bolsonaro. Também falam em taxar os “super-ricos”, mas sabem muito bem que nenhuma lei nesse sentido teria mínimas chances de sucesso no ultraconservador Congresso Nacional brasileiro, formado em grande maioria pelos próprios “super-ricos” e seus representantes diretos.

Quanto à política externa “ativa e altiva” que propõe, ela foi exercida no passado, em maior ou menor grau, por governos brasileiros de distintas inclinações (Jânio Quadros, Geisel, governos petistas) e representa a posição de uma burguesia brasileira empenhada em colaborar, mas também em barganhar, com o imperialismo, na defesa de seus interesses comerciais. O próprio governo Bolsonaro teve que recuar de uma política de subordinação e alinhamento total com o governo americano, e de hostilidade com a China, depois de receber a pressão dos setores prejudicados, em especial dos representantes dos exportadores.

Formar estoques reguladores dos alimentos, modificar a política de preços da Petrobras e expandir o seu parque de refino também aparecem nas “diretrizes”, com o propósito de combater a “carestia”, mas nada disso é novidade e já foi praticado em governos passados, inclusive nos militares.

Em suma, as “diretrizes” das forças “democráticas e progressistas” não ousam tocar minimamente no domínio econômico e social da burguesia, estando muito longe de solucionar os graves problemas sociais que os brasileiros vivem hoje.

No passado, em 1987 por exemplo, o PT defendeu em suas resoluções políticas palavras de ordem como a estatização do sistema financeiro, dos serviços de transportes coletivos e da indústria do cimento; a reforma agrária sob o controle dos trabalhadores; o reajuste mensal automático de salários e pensões; a aposentadoria aos 30 anos de serviço para homens e aos 25 anos para mulheres; a jornada semanal máxima de 40 horas e a estabilidade no emprego.

Nenhuma dessas reivindicações de 1987 seria incompatível com a ordem social capitalista, mas teriam o poder de mobilizar e organizar os trabalhadores em seus locais de trabalho e moradia, e apontar para a perspectiva de uma sociedade socialista.

As “diretrizes” atuais não fazem mais do que propor pequenos ajustes na política econômica e nas políticas compensatórias, que atenuam a miséria social, mas não questionam as suas causas. Do ponto de vista ideológico, são posições típicas da pequena-burguesia, que tenta fazer a mediação entre os interesses burgueses e os dos trabalhadores, aproveitando para tirar disso algumas vantagens para si própria.

“Diretrizes” desse tipo não são capazes de mobilizar os trabalhadores, nem muito menos de organizá-los para a luta em defesa de seus interesses imediatos e futuros.

A propósito, sabe-se que Bolsonaro deseja dar um golpe e instituir uma ditadura, ideia que já aparecia antes mesmo de ele assumir o governo em 2019. Suas pequenas chances eleitorais de agora, ao invés de enfraquecer, fortalecem esse desejo e, ao que parece, ele conta com o apoio de parte das forças armadas, das polícias militares e das milícias, grande parte oriundas destas últimas.

Diante de uma ameaça desse tipo, que pode se tornar realidade se as crises social, econômica e política se agravarem, não basta proclamar “golpes de ditaduras nunca mais, democracia sempre”.

É preciso, antes de tudo, que os trabalhadores organizem a sua resistência nas lutas específicas – e, quando for o caso, a sua própria autodefesa – e tenham em mente a necessidade de unificação dos movimentos, conforme já mencionamos no boletim F&C nº 37.

A única força capaz de representar um obstáculo sério a uma tentativa de golpe bolsonarista será a formada pelos trabalhadores, desde que estejam organizados e mobilizados para uma greve geral, destinada a paralisar a iniciativa golpista.

Coletivo do CVM – 07/07/2022

LEIA AQUI EM PDF O CADERNO F&C Nº 38

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