Portugal 1974: Liquidação das conquistas democráticas

Ernesto Martins (Érico Sachs)

Neste 25 de abril em Portugal, há precisamente 49 anos, irrompia a Revolução dos Cravos que derrubou a ditadura de Salazar que vigorava  desde 1933. O CVM publica a análise de Ernesto Martins (Érico Sachs) sobre este momento histórico, que foi escrita originalmente para a Revista Marxismo Militante Nº 2 exterior em fevereiro de 1976.  (CVM)

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O Segundo Pacto, concluído entre militares e representantes dos partidos políticos, deverá marcar a volta de Portugal a um regime democrático-parlamentar burguês. Embora os militares resguardassem o direito de intervenção política nos próximos quatro anos, o princípio da divisão dos poderes e o acesso dos políticos ao governo foram garantidos pelo Pacto.

Estamos em plena fase de liquidação das conquistas revolucionárias do movimento desencadeado pelo 25 de Abril. O marco visível para o declínio do processo revolucionário foi o 25 de novembro do ano passado, a fracassada rebelião dos paraquedistas. Representou, entretanto, somente um marco externo, pois de outro modo não seria compreensível a relativamente fácil vitória da reação. Desde agosto, pelo menos, as forças revolucionárias e a esquerda em geral se encontram na defensiva. Apesar de ter havido contra-ataques e do movimento de polarização no seio da própria esquerda, todos os sucessos momentâneos, aparentes ou reais, não conseguiram anular a tendência geral da ofensiva das forças da direita.

Não pretendemos aqui reconstruir essa evolução em todos os seus detalhes. Nos limitaremos a destacar os seus pontos altos, que permitem uma compreensão melhor da situação atual e uma avaliação das perspectivas.

Em agosto de 1975, as ações terroristas no Centro e no Norte de Portugal, dirigidas contra o PC, sindicatos e outras forças de esquerda, tinham atingido o seu ponto culminante. Quase todas as sedes do partido tinham sido destruídas, mormente nas localidades menores. Ao norte de rio Tejo, o PC e organizações à esquerda dele tinham voltado a uma existência semiclandestina ou mesmo clandestina. Se os bandos terroristas diminuíram então as suas atividades ostensivas, isto se deu não só porque tinham cumprido as suas tarefas. No quadro de uma estratégia geral da ofensiva da direita, a iniciativa foi deixada então a cargo do grupo Melo Antunes no seio do MFA, o que em espaço de tempo relativamente curto levou a queda do Governo Gonçalves.

 

A FUNÇÃO DO GOVERNO AZEVEDO

A formação do próximo governo Azevedo, foi precedida por negociações prolongadas e penosas. Finalmente aceitou-se a plataforma apresentada pelo PS e apoiada pelo PPD, a qual visava o “restabelecimento da legalidade”, isto é, o “saneamento” da imprensa e rádio de elementos comunistas e de esquerda, a demissão dos Presidentes dos Conselhos (prefeitos) comunistas e seus aliados, o restabelecimento da disciplina nas FFAA, a reorganização da economia, etc. Era óbvio que se tratava de uma plataforma de repressão, pois nenhum ponto deste programa poderia ser realizado sem despertar a resistência dos operários e de demais camadas da população interessadas nas conquistas revolucionárias.

O PC ingressou também neste governo, fornecendo um ministro, aceitando dessa maneira as condições impostas pelo OS e o PPD. Estava claro, porém, que o PC não tinha voz ativa no governo. Ou ficava em minoria no Gabinete, ou então, nem sequer foi informado de certas medidas, como no caso da destruição da torre de emissão da Rádio Renascença. O PC tinha entrado no governo com a justificativa de querer “evitar o pior”. O fato de ter sido convidado a entrar nesse governo, evidentemente não se deve a considerações de ordem democráticas de representatividade, e sim, ao predomínio, que o Partido exercia sobre o proletariado de Lisboa. Para um confronto aberto com essa parte mais coesa da classe operária portuguesa, reformistas e burgueses não queriam arriscar ainda.

O programa governamental não funcionava. O Gabinete Azevedo fracassava continuamente pelo fato de não dispor das FFAA como instrumento de repressão. E sem um movimento de repressão adequado era difícil impor medidas reacionárias. Nas FFAA tinha se dado um adiantado processo e deterioração da hierarquia. No Sul havia poucas unidades, que se prestavam a medidas repressivas contra a esquerda. No Norte, no Porto, tinha sido fundado o SUV (Soldados Unidos Vencerão) e a rebelião da Unidade de Transportes, RASP, igualmente no Porto, tinha se tornado prova de força, na qual o governo se viu obrigado a fazer concessões. O “restabelecimento da disciplina” no seio das FFAA tornou-se a tarefa principal para o governo, mas toda tentativa neste sentido provocava nova oposição e novas rebeliões nas fileiras.

A classe operária soube aproveitar a evidente fraqueza do governo, desencadeando novos movimentos de massas pela defesa do nível de vida, que deteriorava rapidamente sob a inflação. Começou com a greve vitoriosa dos metalúrgicos e atingiu um auge como o cerco da Assembleia Constituinte pelos operários de construção. Em Lisboa começou-se a falar de transferência do governo e Constituinte para o Porto, a fim de livrá-los da pressão direta dos operários da capital.

Nessas condições, o PC começou a mudar de atitude. Sob a pressão do movimento de massas apoiou as greves (embora condenasse o cerco da Constituinte). Em breve foi acusado de estar “com um pé na oposição e com outro no governo”. No seio da fração governamental, por outro lado, começou a esboçar-se uma cisão. Otelo de Carvalho, ainda chefe do COPCON [1] – ver Nota no final do texto – e o chefe do Estado Maior, Fabião, começaram a distanciar-se do programa repressivo, que ganhara força entre os militares governamentais.

A situação se tornou tão insustentável para o governo, que decidiu parar as suas atividades. Não se demitiu para evitar nova crise ministerial mas transferiu todas as responsabilidades para o Presidente da República. Este se apoiou no Conselho da Revolução.

Entrementes, medidas decisivas tinham sido tomadas nos bastidores, sem que algo de concreto transpirasse para fora. Em virtude da impotência do governo de impor o “restabelecimento da disciplina” nas FFAA, a tarefa foi confiada a um restrito grupo de oficiais “apolíticos”, que desfrutou do apoio do Conselho da Revolução e da fração Antunes. Como chefe desse grupo operacional foi escolhido o General Ramalho Eanes, atual chefe do Estado Maior, e a figura mais ativa foi sem dúvida, o coronel Jaime Neves, chefe das unidades de comando da Amadora.

Depois de terem falhado as tentativas de formação de uma nova unidade militar com função policial (AMI), que deveria neutralizar o COPCON, foi iniciado o recrutamento de ex-militares entre os refugiados angolanos, os quais foram colocados sob o comando de Jaime Neves. Assim formou-se uma tropa de choque que estava imunizada contra o vírus revolucionário que tinha penetrado nas FFAA, na metrópole. Relatos posteriores da imprensa de Lisboa revelam que existia um plano estratégico, que previa a transferência de unidades militares mais seguras do Norte e do Centro para a capital. Simultaneamente as Associações dos Camponeses ao norte de Lisboa (sob liderança latifundiária), forma encarregadas de realizar comícios de protestos nas rodovias, a fim de isolar a capital. A destituição de Otelo de Carvalho do comando do COPCON e das unidades de Lisboa devia servir como medida provocativa para rebeliões de unidades esquerdistas. Seria a hora para um restabelecimento definitivo da disciplina na FFAA.

As coisas se tornaram mais simples ainda para os oficiais direitistas. Os paraquedistas de Tancos se rebelaram no dia 25 de novembro. Não se tratava de tentativa de “golpe”, mas de um movimento de protesto, como se tinha tido há pouco no Porto. A situação, entretanto, já era outra. A reação estava preparada. A unidade do coronel Neves veio com blindados, disposta a abrir fogo. Os paraquedistas, que tinham vindo protestar, e procurar adesões para o seu movimento de protesto, não estavam preparados para enfrentar essa situação e se renderam.. Não havia coordenação nenhuma com as demais unidades de esquerda, pegues completamente de surpresa pelos acontecimentos. Unidades como a Polícia do Exército, que procuraram socorrer os paraquedistas, não estavam preparadas para um confronto. Os marinheiros queriam sair em formação fechada para enfrentar os comandos da Amadora, mas acabaram acatando as ordens dos seus oficiais de ficar nas unidades. Eles confiavam nestes oficiais, que na Marinha eram predominantemente PC ou pertenciam a fração de Gonçalves. Não havia “plano de golpe” da esquerda. Não havia nem tentativa defensiva séria contra o golpe da direita. O que houve foi o empenho de uma parte da fração de Gonçalves do MFA de liderar os paraquedistas rebeldes. O ex-ministro Costa Martins, do MFA e ligado ao PC, encontrava-se no Quartel General de Tancos desde o dia 23 de novembro.

Que a esquerda militar ou política não tentou golpe nenhum mostra o procedimento dos paraquedistas, o qual do ponto de vista de uma operação militar ESTARIA INCOMPREENSÍVEL. Além disso, as unidades militares de esquerda em Lisboa tinham nítida superioridade, tanto em homens como em poder de fogo. Nem sequer cogitaram de fazer uso dela.

 

“COM UM PÉ NA OPOSIÇÃO…”

Qual foi a atitude do PC? Quando começou novamente a apoiar o movimento de massas, isto é, de ficar “com um pé na oposição”, o fez sob o signo da “demissão do Governo Azevedo” e da formação de um novo governo Gonçalves. Com esse objetivo procurou dirigir os movimentos de massa. Essas palavras de ordem se ouvia tanto nas manifestações dos metalúrgicos, como dos operários de construção, e em todos movimentos que bases do partido participavam. E com essa finalidade apoiou também a rebelião dos paraquedistas – exatamente até a tarde do dia 25 de novembro. Acontece que uma das reivindicações principais dos paraquedistas era a destituição de quatro comandantes da Aeronáutica, especialmente odiados pelas fileiras. E acontece também que os ditos quatro comandantes eram membros do Conselho da Revolução.. E a composição do Conselho tinha de ser modificada para que se pudesse cogitar novamente da formação de um governo Gonçalves. A fórmula ideológica para o restabelecimento do status quo anterior ao governo Azevedo, da qual o Partido ainda sonhava, era “reunificação da forças progressistas d MFA”. No dia 21 de novembro, quando os paraquedistas já estavam em conflito aberto com seus oficiais e o Comando, o Comitê Central do PC emite uma Declaração Política, na qual consta:

“…O caminho da superação da crise nas forças armadas continua a ser a reunificação das tendências   progressistas do MFA e o prosseguimento de sua política de vanguarda na base da luta contra a direita reacionária e duma plataforma na base da luta contra a direita reacionária e duma plataforma que assegure uma vida democrática, a defesa das conquistas da revolução e o caminho para o socialismo.
…O PCP pronuncia-se firmemente por uma solução política e não por atuações inconsideradas que criem condições favoráveis para um golpe de força de direita.
…O PCP apela para um sério esforço pela reunificação do MFA numa base progressista, pelo reforço das tendências revolucionárias no Conselho da Revolução, por um governo onde não esteja o PPD, partido da reação, e onde sejam reforçadas as posições da esquerda militar e civil.
Pela sua parte, o PCP está pronto a participar nas negociações indispensáveis para abrir caminho para um tal resultado.”

No dia 25 de novembro, no dia em que os paraquedistas deixam Tancos e se dirigem às bases da Aeronáutica, mas antes de as tropas do coronel Neves terem entrado em ação, a Comissão Política do Comitê Central publica nova Declaração, na qual reafirma:

“Na sequência da orientação que tem defendido, o PCP insiste na necessidade de se buscar urgentemente uma solução política para a crise.
…A saída da crise está na reorganização do MFA numa base progressista e na formação de um governo de esquerda na base de uma plataforma que corresponda aos interesses, aspirações e objetivos das classes   trabalhadoras e do povo em geral.
…Todas as forças progressistas militares e civis estão interessadas numa solução política negociada”.

Tal como sempre, o PCP continua pronto a examinar em conjunto a saída da situação.

Ao mesmo tempo, isto é, no mesmo dia, o Partido não estava disposto a mobilizar massas contra o golpe dos oficiais direitistas. (Veja “depoimentos de soldados e operários” no “Poder Popular” nº 20, de 5 de dezembro de 75). Os militantes e simpatizantes, que apareceram nas sedes partidárias, ficaram à espera o dia todo. Na parte da tarde foram anuladas as palavras de ordem de greve, lançadas na véspera. Posteriormente, depois de uma reunião da Comissão Política, o Partido bateu definitivamente em retirada. Os militantes foram mandados para casa, com a instrução de aguardar e não tomar iniciativas. No dia 28 de novembro, três dias depois, uma nota da Comissão Política do CC do Partido declara:

“O PCP defendeu com insistência uma solução global da crise consistindo na reaproximação e reunificação das tendências do MFA e no reforço da representação das forças de esquerda (civil e militar) no governo, de onde deveria sair o PPD, partido da reação.
…Ainda no momento presente, apesar da nova situação criada e de uma nova correlação de forças, as linhas gerais ‘fundamentais’ da solução da crise preconizada pelo PCP continuam a ser o único caminho que pode cortar o passo à contrarrevolução.” (citações de “Avante” de 30 de novembro)

Durante os dias críticos após o 25 de novembro parecia que os oficiais direitistas em torno do coronel Neves tivessem ganhado o domínio militar e político da capital portuguesa e que se iniciasse uma caça geral à esquerda. Neves exigia a manutenção do estado de sítio durante um prazo de três meses, o que fez com que os próprios socialistas se sentissem ameaçados. A situação mudou somente quando tropas da 2ª Região Militar, do coronel Charais (do grupo dos 9) entraram em Lisboa e o estado de sítio pode se levantado.

O 25 de novembro representou também o fim do MFA, que recebeu um enterro de terceira classe. Foi liquidado, quando o Conselho da Revolução, agora expurgado de todos os elementos de esquerda, se declarou órgão de todas as FFAA, pois a “missão histórica do MFA estava terminada”. O caminho estava aberto para a reorganização das FFAA como instrumento de repressão interna.

Fica óbvio que nestas circunstâncias a fórmula do PC, da “reaproximação e reunificação” não passava de sonho impotente. Não era mais viável nem como solução reformista, pois não correspondia mais às relações de forças criadas. Na realidade não representava mais do que um exercício de verbalismo, por trás do qual se escondia a disposição de participar, “apesar da nova situação criada”, do governo de coligação. Sob a pressão da direita condenou finalmente “as aventuras esquerdistas”, pela boca do secretário geral, Álvaro Cunhal. Desistiu de exigir a saída do PPD do governo e acabou assinando o novo Pacto, como os demais partidos. O PCP se agarra à cadeira de ministro e não a largará enquanto não receber o pontapé previsível. Isso se dará quando tiver esgotado seu papel de neutralizador do potencial combativo do proletariado lisboeta.

 

À ESQUERDA DO PC

Como reagiram e atuaram as forças à esquerda do PC? A FUR (Frente Única Revolucionária) não sobreviveu ao golpe de 25 de novembro. Já antes não funcionava mais em virtude da incapacidade dos seis grupos para uma ação tática comum. Surpreendida pelos acontecimentos, somente dois grupos, o MES (Movimento de Esquerda Socialista) e PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) estavam em condições de agir em conjunto e de analisar a situação criada de uma maneira realista.

Entre os grupos maoístas, o mais forte, a UDP (que não tinha participado da FUR), no dia seguinte ao golpe começou uma campanha contra o PC, acusando-o de “conluio” com oficiais direitistas na derrota dos militares esquerdistas. O sectarismo cresce com insignificância dos grupos. MRPP continuou numa frente tática com o OS; e os demais grupelhos, revelando um assustador desconhecimento da situação criada, centraram também fogo sobre o PC.

No que diz respeito às organizações militares foi o golpe mais sensível, sofrido pela esquerda portuguesa. Parece que foi quase que completa, atingindo tanto o SUV como outras organizações paralelas, pois todas as unidades suspeitas forma dissolvidas e os soldados desmobilizados. Quartéis inteiros em volta de Lisboa e no Norte ficaram vazios.

Foi justamente no setor militar onde a esquerda radical tinha obtido maior penetração. Mas também nesse terreno se fez sentir o fato de não se ter criado realmente uma alternativa à esquerda do PC em Portugal. A FUR, enquanto funcionou, influiu decisivamente para a criação do SUV. Atuação semelhante teve a UDP, que conseguiu penetrar entre os graduados do Exército. Mas, se a agitação desses grupos conseguiu contribuir para a formação de organizações militares, elas se revelaram incapazes para uma ação comum contínua, para uma orientação política. Não há ainda uma vanguarda revolucionária nas lutas de classes em Portugal. E como acontece no próprio proletariado industrial, as ações espontâneas não bastam para derrotar uma direita organizada e que sabe o que quer.

 

UMA SITUAÇÃO REVOLUCIONÁRIA?

Existiu em Portugal, em 25 de Abril, uma situação revolucionária? Eis um problema pouco ventilado até agora.

Endossando a definição de Lenin, no sentido que para uma situação revolucionária não basta que “os de baixo” não queiram mais continuar sob o sistema antigo, é preciso também que “os de cima” não possam mais continuar à maneira antiga, temos de chegar a uma conclusão afirmativa. Houve uma situação revolucionária, que se cristalizou lentamente e que atingiu o seu auge no relativamente curto espaço entre o fracassado golpe de Spínola, em 11 de março e as eleições, em 25 de abril de 1975. As próprias eleições ainda se realizaram sob o impacto dessa situação.

Para evitar mal-entendidos, estamos falando de uma situação revolucionária objetiva, mas isso ainda pouco diz sobre as possibilidades de uma revolução proletária vencer e se manter. No caso concreto de Portugal, essas perspectivas eram mínimas, para não dizer inexistentes. Em primeiro lugar, pesa a não existência de um partido revolucionário da classe operária. Para agravar a situação, existiu um partido, que se chamava de comunista e que era tido como revolucionário pelo setor mais adiantado do proletariado português. Isso, nessa fase de luta, impediu o surgimento de uma vanguarda revolucionária proletária, que só poderá ser resultado das experiências colhidas pela própria classe operária portuguesa no decorrer da luta. Em segundo lugar, o fermento revolucionário se concentrava ao sul do rio Tejo. O Norte camponês se tornava mais conservador com o desgaste dos governos provisórios consecutivos. Isso não seria um impedimento definitivo para uma revolução, se tivesse havido um partido revolucionário, que defendesse condições para isso. E em terceiro lugar, mas não por último em importância, Portugal, pela sua situação geográfica, seria extremamente vulnerável a tentativas contrarrevolucionárias.

Isso tudo não invalida o fato de ter existido objetivamente uma situação revolucionária. Os “de baixo” não queria mais. Mais da metade de todos os votos foram para a esquerda. Mesmo os votos dos socialistas têm de ser vistor sob esse ângulo, pois a imensa maioria desses eleitores, operários e pequeno-burgueses, não viam muita diferença no que diz respeito à meta professada pelos partidos da esquerda – o socialismo –  e sim nos métodos para chegar até lá. Mario Soares, de punho fechado, fez a campanha eleitoral nesse sentido. Veremos em seguida porque pôde consegui-lo.

A classe dominante portuguesa, os “de cima”, por sua vez, estava incapacitada de continuar como dantes. Estava incapacitada de governar e com o golpe diletante de 11 de março tinha perdido as suas últimas posições políticas e militares. Spínola tinha jogado tudo numa cartada só e provocado inclusive a desapropriação maciça do poder econômico antigo.

Nessas circunstâncias, só havia uma força social, que podia salvar o sistema capitalista em Portugal – a sua pequena-burguesia. E ela se lançou à tarefa, sem ter consciência dos resultados da sua luta. Não visava salvar a ordem capitalista. Pelo menos era esse o caso entre a fração mais ativa nas cidades e nas FFAA, que se considerava “socialista”, mas de um modo mais “moderado”. Era socialista à maneira dela, pleiteando um socialismo democrático e pacífico, consoante com seu mundo pequeno-burguês.

Sua oposição aos “excessos revolucionários” foi facilitada pelo fato de todo o desenvolvimento posterior ao 25 de Abril ter se dado à base de uma aliança de classes entre pequena-burguesia e proletariado, (sendo que este contava ainda com o apoio dos trabalhadores agrícolas do Sul). Isso em si, não era negativo. Negativo, entretanto, era o fato dessa aliança se dar sob o signo da liderança pequeno-burguesa – concretamente a do MFA.

Essa liderança pequeno-burguesa se manifestou de duas maneiras, principalmente:

  1. a) ideologicamente, os conceitos de um socialismo como produto da democracia e da tutela de um movimento militar foram levados para dentro da classe operária, limitando de antemão a sua iniciativa política. Desarmado assim ideologicamente, o proletariado estava desorientado com a cisão que se deu no seio do MFA e o consequente desenvolvimento para a direita do movimento militar.
  2. b) essa consciente autolimitação da luta proletária, que vinha de cima para baixo, tornou-se possível porque o PC dominava o setor mais adiantado da classe operária portuguesa, o de Lisboa e da península de Setúbal. Essa autolimitação, por sua vez, teve dois resultados: em primeiro lugar, consagrou uma divisão no seio da classe operária. Limitou a influência do próprio PC e deixou campo livre para a penetração do PS. Esse fato consumado foi criado logo no início, quando o PC se opôs às sucessivas ondas de greves, depois da derrocada do Estado Novo. Com essa recusa de defender os interesses operários mais elementares, o PC não só perdeu a atração sobre grandes setores do proletariado, como perdeu também a ocasião de mobilizar a classe em seu conjunto no cenário nacional, para torna-la força motriz do processo revolucionário, que estava se iniciando. Essa atitude do Partido não afetou tanto a sua posição em Lisboa, onde o proletariado já estava sob influência comunista e onde a liderança teve de fazer concessões às bases operárias rebeldes, e sim no resto do país, entre as massas não organizadas, onde o Partido perdeu a vez. Depois das ondas de graves, parcialmente abortadas, não se nota mais a expansão da influência do PC no seio do proletariado. Começa a fase do crescimento do PS.

O segundo resultado dessa autolimitação foi o fato de não ter se criado um Duplo Poder em Portugal. As Comissões de Fábrica e de Moradores (bairros) não chegaram a dar lugar a soviets. As Comissões surgidas durante as ondas de greves, como Órgãos de “democracia direta” dos operários de fábrica e, em parte, como resultado do inconformismo das bases proletárias contra a orientação do Partido e dos sindicatos durante as greves de massa, eram um produto espontâneo da luta. Evidentemente malquistas pelo Partido, este tentou ignorá-las e sabotá-las por muito tempo, esperando que desaparecessem de novo, depois das greves. Quando isso não se deu, tentou enquadrá-las na estrutura sindical. Isso tampouco deu certo. O proletariado defendeu tenazmente esses órgãos, nos quais depositava confiança. Surgidas espontaneamente, as Comissões, entretanto, nunca passaram do nível da espontaneidade. Nunca se tornaram órgãos políticos da classe operária. Operando em nível de empresa, chegaram, porém, a formar representações permanentes por cidade ou região e muito menos em escala nacional, que tentassem coordenar politicamente a ação da classe operária. Esta, grosso modo, confiava nas Comissões para resolver os problemas políticos a cargo dos meus partidos políticos.

Tal situação é de agrado de qualquer liderança não revolucionária. O fenômeno em si, entretanto, se deve ao grau de experiência adquirido pelo proletariado português naquele momento. Depois de anos de falta de luta política propriamente dita, na clandestinidade, não viu no governo (pelo menos entre os gabinetes Palma Carlos e Azevedo) um inimigo de classe e, sim, um expoente do MFA, cuja autoridade para resolver os problemas do país não estava sendo posta em dúvida. A presença de ministros comunistas nesses governos fez que o proletariado esperasse as decisões políticas de cima. Mesmo quando tomavam decisões de alcance político, com desapropriações e ocupações de empresas, essas medidas (com exceção da nacionalização dos bancos) foram tomadas em nível local.

Vimos como a política geral do PC contribuiu decisivamente para criar essa situação. Os órgãos de “democracia direta” do proletariado representam um gigantesco passo a frente nas lutas de classe, mas por si sós, não criam milagres. Os soviets na Rússia puderam desempenhar o papel que desempenharam, porque havia um partido bolchevique, que indicou esse caminho. Se as coisas lá se tivessem desenrolado conforme as intenções  mencheviques, os conselhos operários teriam se tornado meros apêndices de uma democracia parlamentar. E esse caso se deu justamente nas revoluções centro-europeias, onde os operários formaram igualmente órgãos da “democracia direta”, mas se confiaram à liderança reformista, dos socialdemocratas.

Em Portugal não havia um partido, que desempenhasse um papel semelhante ao que desempenhou o bolchevique na Rússia. O PCP certamente não estava em condições para isso e nem cogitava de desempenhá-lo. Uma estratégia revolucionária, uma política independente da classe operária, não teria somente impedido a sua participação nos diversos governos de coligação, como teria rompido o seu sistema de alianças, nos termos como o concebeu com a pequena burguesia. E esse sistema de alianças fazia parte da formação ideológica e política do Partido e dos seus quadros desde a luta clandestina.

Acontece, todavia, que as concessões ideológicas e práticas, feitas à pequena-burguesia, tinham de criar ilusões pequeno-burguesas, das quais o próprio Partido se tornou a primeira vítima. O caminho democrático para o socialismo não funcionou. A dura realidade da situação econômica falou outra linguagem, e foi justamente a pequena-burguesia que começou a manifestar o seu desencanto com a experiência dos governos provisórios. Perdeu o apego aos cravos vermelhos e começou a mover-se em direção à direita. Ainda não estava madura a situação para um choque direto com o MFA, mas foram os comunistas que se tornaram o bode expiatório da situação.

O PC conseguiu, portanto, com sua política de autolimitação e o nivelamento da luta aos horizontes pequeno-burgueses, exatamente o contrário do que esperava. Pretendendo não assustar o aliado com formas proletárias de luta, o perdeu em virtude da impossibilidade d enfrentar a realidade das lutas de classe com fórmulas utópicas emprestadas do arsenal ideológico pequeno-burguês. Acontece que a pequena-burguesia, classe que não tem perspectivas próprias de solução das contradições da sociedade burguesa, também não tem um apego definitivo às formulações momentâneas e manifestações conjunturais da sua ideologia. Esta é um produto de compromissos, de classe intermediária entre o trabalho assalariado e capital, e depende das relações de força, que se criam em todos os estágios da luta de classes. Ela só adere definitivamente à luta pelo socialismo, “quando não defende os seus interesses imediatos e sim os seus futuros, quando abandona os seus pontos de vista atuais, para identificar-se com os do proletariado” – já disse o Manifesto Comunista em sua incomparável sabedoria. Mas é difícil identificar-se com o ponto de vista do proletariado, quando este não é defendido nem exposto durante o processo revolucionário.

Essa lição não é nova, não é contribuição original das lutas de classes em Portugal. Ela pode ser aprendida com todos os movimentos revolucionários fracassados, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, nos quais reformistas conservaram a liderança. Ela não se limita aos países industriais da Europa, pois tivemos a mesma experiência há pouco no Chile. Todos os exemplos confirmam de novo que somente um proletariado independente e livre de ilusões políticas pequeno-burguesas, está em condições de arrastar e liderar outras classes na luta contra a sociedade burguesa – inclusive vastas camadas da pequena-burguesia.

 

QUAL ERA REALMENTE A ESTRATÉGIA DO PCP?

Resta colocar outra questão, a do porque da atuação calamitosa do PCP. Afinal, Partido Comunista Português não pode ser caracterizado simplesmente como reformista, no sentido clássico. Não está enredado numa prática parlamentar, com perspectivas de “Compromisso Histórico”, como o italiano, que se aproxima em escala crescente aos padrões social-democráticos (o que distingue este ainda de um partido social-democrático é a sua ligação com a URSS, mas isso já se tornou oneroso para ele). Nem pregou a colaboração com uma fração da classe dominante, como fez o PCB. Se quisermos caracterizar a atuação do Partido Comunista Português – deixando de lado a definição do neo-revisionismo, que hoje inclui toda uma escala de matizes – ele mais se aproxima daquilo, que na Internacional Comunista se chamava de centrista. Partidos centristas eram aqueles que se colocavam entre o reformismo aberto e o comunismo; que tinham uma base revolucionária e uma liderança reformista e cuja atuação prática era determinada pelos dois fatores.

Podemos colocar o problema também em termos mais concretos: o PCP tinha elaborado uma estratégia de luta pelo poder? Tinha colocado o problema para si?

Em primeiro lugar, o Partido procurou e manteve a sua participação em todos os governos de coligação desde o 25 de Abril (com exceção do Quinto Governo Provisório, do qual não participou abertamente).

Segundo, tentou por todos os meios conquistar a máquina de Estado pela cúpula, mediante a ocupação de cargos políticos e administrativos, diretamente ou por intermédio dos seus aliados mais próximos.

Terceiro, tentou reforçar o controle da máquina de Estado sobre a produção, evitando cuidadosamente levantar o problema do caráter do Estado.

Quarto, tentou conquistar os postos de comando nas organizações de massas (sindicatos), com um empenho simultâneo de evitar a organização espontânea das bases proletárias (Comissões).

Quinto, procurou esconder sistematicamente os objetivos finais da luta comunista, atrás de uma fraseologia democrática pequeno-burguesa (o PCP tomou a iniciativa de eliminar a “ditadura do proletariado” do seu programa).

Há uma certa “lógica” nessa sequência, se tomarmos em conta que os PPCC de hoje não foram mais educados pelas teorias leninistas de luta de classes e da revolução proletária em particular. São produtos da política das Frentes Populares e do pós-guerra. E é preciso levar em conta também, que o auge da experiência revolucionária dos atuais dirigentes dos PPCC europeus foi a tomada do poder pelo proletariado tchecoslovaco em 1948. Foi a Revolução de Praga, que era tida como “modelo” para Europa Ocidental, onde as tentativas de aplicar as experiências da Revolução Russa tinham “fracassado” no primeiro pós-guerra. Esse fato não pode ser menosprezado no julgamento da atuação dos PPCC ocidentais.

 

O que foi a Insurreição de Praga?

Com a libertação da Tchecoslováquia pelo Exército Soviético foi formado em Praga um governo de coligação entre comunistas e partidos burgueses nacionais. Cumpriu-se assim uma necessidade da política externa de Stalin, que esperava manter a sua aliança com as potências ocidentais no pós-guerra e para isso concordou com uma política de “esferas de influência”, e de “percentagens de influência” nos países da Europa Ocidental. Essa política que visava não assustar prematuramente os ex-aliados da guerra, excluía também qualquer referência à ditadura do proletariado nos novos países socialistas, batizados agora de indefinidas “Democracias Populares”, que para finalidades externas copiavam os sistemas parlamentares do Ocidente.

Com o fracasso da política externa de Stalin e o início da guerra fria pelo Ocidente (que visava oficialmente o “represamento” do poder soviético nas fronteiras de 1939), a burguesia tcheca achou ter chegado a hora de empreender um golpe para se livrar dos seus comunistas e restituir o país à esfera ocidental. Como primeiro passo, provocou uma crise governamental em Praga. Todos os ministros pediram demissão, obrigando os seus colegas comunistas a fazer o mesmo, tentando assim abrir o caminho para a formação de um governo puramente burguês. A resposta do proletariado tcheco foi imediata e maciça. A greve geral foi total. A classe operária saiu às ruas e milícias armadas tomaram conta dos lugares estratégicos da cidade.

A burguesia, incapaz de reagir, foi desapropriada política e economicamente. A revolução foi tranquila e pacífica. É verdade que para isso contribuiu o fato dos comunistas já terem sob controle, devido a sua participação no governo, diversos ministérios chave, terem postos de responsabilidade no exército e na polícia. Mas o que paralisou definitivamente qualquer tentativa armada de contrarrevolução, foi a presença de divisões soviéticas nas vizinhanças de Praga e que não teriam assistido passivamente a entrega do país ao Ocidente.

Isso foi o segredo da “revolução pacífica” e do “caminho pacífico ao socialismo”, que nas décadas seguintes se tornou ideologia oficial do PPCC. Como em todas essas generalizações precipitadas de processos revolucionários, são razões de utilidade pragmática o motivo preponderante. No caso tcheco, “esqueceu-se” que esse novo “modelo” funcionou num país limítrofe à URSS, pertencendo à sua esfera de influência (mesmo assim, não funcionou mais na Finlândia, nem na Áustria). E não pode funcionar em outras regiões onde não se pode contar com uma cobertura militar de uma potência socialista. Nessas circunstâncias, as tentativas de se inspirar no “modelo” de Praga tem que dar numa nova experiência reformista, com todas as suas consequências.

Por isso – independente das intenções da liderança do PCP – só podemos julgar um partido pela prática desempenhada e os resultados produzidos. E esses, no caso do PCP e com todas as suas contradições, não passam dos padrões do centrismo.

 

O PAPEL DA “PLATAFORMA DEMOCRÁTICA” EM PORTUGAL

Resta mais um problema, que as lutas de classe em Portugal atualizaram, problema que conserva toda sua atualidade para nós no Brasil, nas atuais condições de luta. Trata-se do papel desempenhado pelas chamadas “plataformas democráticas”.

Entende-se por isso, as estratégias que, vendo em regimes de ditadura aberta e indireta da burguesia (militar, bonapartista ou fascista) o seu “inimigo principal”, professam explícita ou implicitamente a “redemocratização” como objetivo imediato ou intermediário, ao qual subordinam as suas táticas e sua política de alianças.

Já que falamos de ditaduras abertas e indiretas da burguesia, subentende-se que se trata de situações históricas, em que o problema da revolução burguesa está superado e em que a burguesia de uma ou outra maneira está no poder.

1.)    A revolução burguesa se impôs politicamente depois de lutas seculares em 1910, com a queda da monarquia e a declaração da República.

2.)    Economicamente tampouco se pode falar de condições feudais em Portugal. Tanto o latifúndio no Sul, como o minifúndio no Norte faziam parte de uma agricultura de exportação, baseada no trabalho assalariado e na pequena propriedade burguesa, juridicamente definida.

3.)    O Estado Novo foi resultado da incapacidade econômica e política da República de solucionar a crise estrutural e aguda da metrópole decadente, e do beco sem saída em que tinham parado as tentativas pequeno-burguesas de romper o impasse, mediante o regime militar de 1926/28.

4.)    A industrialização veio relativamente tarde. Atingiu o seu auge durante os anos 50, antes da guerra colonial, que acabou provocando uma estagnação econômica e a oposição de frações burguesas não interessadas diretamente na exploração colonial.

5.)    A percentagem do proletariado na composição geral é relativamente alta. Estatísticas sindicais portuguesas falam em 1,4 milhões de operários industriais, de transportes e de minas, de uma população geral de 9 milhões. Trata-se de um proletariado jovem e, até a queda do Estado Novo, politicamente inexperiente, que em sua grande maioria não tinha conservado laços com a pequena, mas combativa classe operária da República, educada nas tradições anarquistas.

6.)    O peso quantitativo do proletariado português não é consequência do adiantado grau de industrialização do país. A indústria, com exceção de algumas grandes empresas é predominantemente composta de empresas médias e pequenas, frequentemente ainda de caráter artesanal, e de pouca produtividade, comparada com suas congêneres da Europa Ocidental.

Quer dizer que estamos lidando com um país de capitalismo atrasado, pouco desenvolvido mas não subdesenvolvido como na América Latina, por exemplo. Não entramos aqui no fator da dependência externa do desenvolvimento português, já que não influi diretamente na nossa problemática. O que queremos salientar é que no Portugal de 1974 não se colocava mais o problema da remoção de remanescentes feudais, como obstáculos para um desenvolvimento capitalista. E nenhuma fração da esquerda falava de uma revolução burguesa, antifeudal, como objetivo. Tanto o PCP como o OS tinham a instauração de uma sociedade socialista como profissão de fé

O caso do PS, evidentemente, não é conclusivo para nós. Sabemos pela prática, que sua politica se orientava para o estabelecimento de uma democracia parlamentar burguesa – como caminho de chegar ao socialismo, pelo que afirmava, e aí o grau de sinceridade da sua direção é secundário. O objetivo do socialismo do OS reflete mais o estado de espírito das suas bases e das massas em geral.

A situação partiu para a luta à base de uma plataforma que visava o estabelecimento de um regime democrático como próximo passo. No seu Programa adotado no VI Congresso, em 1965, declara serem as seguintes as tarefas imediatas:

“1. Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático;
2. Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento econômico geral;
3. Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem trabalha;
4.Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral;
5. Democratizar a instrução e a cultura;
6. Libertar Portugal do Imperialismo;
7. Reconhecer e assegurar aos povos das colônias portuguesas o direito à imediata independência;
8. Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.”

No quadro das tradições teóricas criadas no PPCC, o Programa chama esses objetivos de “revolução democrática e nacional”, embora não use essa terminologia como sinônimo de revolução burguesa. Não é aqui o lugar para se ocupar com a questão da terminologia. Fato é que se trata de um objetivo programático intermediário, independente se se tratar de “revolução” ou de “plataforma democrática” ou modestamente de “luta pelos direitos democráticos dos trabalhadores”. O que tem de comum com definições programáticas semelhantes na América Latina, são – ressalvadas as particularidades nacionais – não só as reivindicações, como também a política de alianças.

Antes, porém, explica o Programa do PCP, que a formulação dessa plataforma democrática não representa de maneira nenhuma (“nem um centímetro sequer”) um abandono do caminho da luta pelo socialismo:

“Lutando pela revolução democrática e nacional, o Partido Comunista Português  está lutando pela revolução socialista, para a qual a realização daquela criará condições”

“O papel que cabe à classe operária na realização da revolução democrática e nacional aumentará a sua força política, garantirá os direitos políticos que lhe permitam desenvolver nas melhores condições a luta contra a exploração capitalista, consolidará a sua aliança com outras classes e camadas da população, preparando as condições para a sua adesão à revolução socialista.”

É preciso ver que esse Programa ainda não passou pelo crivo revisionista de 1974, que eliminou a ditadura do proletariado:

“A vitória da revolução socialista e a construção da sociedade socialista não são possíveis sem a instauração de um regime em que o proletariado tenha o papel dirigente (ditadura do proletariado)”

A importância dessas formulações programáticas evidentemente não se limita ao terreno dos debates teóricos. Tiveram implicações muito práticas na política de alianças. Na prática o PC integrou diversos movimentos de oposição de caráter pequeno-burguês, principalmente nas fases eleitorais. Uma das últimas dessas foi a chamada CDE (Comissão Democrática Eleitoral), que representava a esquerda da oposição burguesa. O denominador comum das frações heterogêneas, que se encontravam nessas Comissões, era a redemocratização do país, a conquista dos direitos democráticos dos trabalhadores e do povo, a plataforma eleitoral para o apoio dos diversos candidatos. É evidente que essa “acumulação de forças” contra o “inimigo principal” – a ditadura estadonovista – realizada nesses termos, só podia dar-se mediante um abandono consciente de uma política de classe por parte do PCP e a aceitação da fórmula pequeno-burguesa da democracia, esvaziada de conteúdo de classe.

No dia 25 de Abril já se podia ter colocado a questão dos resultados dessa política. O “sacrifício” das metas e dos métodos de luta comunistas, elas influíram pelo menos na derrocada do regime?

Podemos responder tranquilamente que não teve influência. O Estado Novo não caiu porque o PCP adotou uma plataforma democrática, porque “adiou” os objetivos de luta proletária e porque integrou um movimento pequeno-burguês amorfo. O Estado Novo apodrecido e desgastado tombou sob o obstáculo intransponível da guerra colonial. O instrumento de sua queda foi o próprio exército colonial, de uma fração de seu corpo de oficiais, que se pôde apoiar no cansaço de guerra da grande maioria da população, inclusive de classe média, que representa sua origem social. Assim mesmo, o 25 de Abril não foi obra de um movimento de massas, e muito menos resultado da política do PCP.

O movimento de massa surgiu em consequência do 25 de Abril e daqui em diante começou a intervir. Surgiu sob o signo político da democracia, e isso significa que a grande massa era dominada por ilusões democráticas pequeno-burguesas, o que de antemão ameaçava diluir o movimento operário num movimento popular mais “amplo”.

O surgimento de tais ilusões democráticas na grande massa, inclusive no próprio proletariado, é provavelmente um fenômeno inevitável em tais momentos. Durante a ilegalidade, organizações clandestinas só atingem uma fração da classe e a classe toda tem que colher sua experiência na prática. Mas o que aconteceu em Portugal, é que essas ilusões foram reforçadas pelo PC e que sua política de plataformas democráticas chegou a dificultar e impedir parcialmente o amadurecimento do proletariado português como classe independente, capaz de liderar o processo revolucionário. O que ficou prejudicado desde o início, foram as posições da luta proletária depois do 25 de Abril.

Foi o PC que conseguiu organizar-se primeiro como partido. As suas tradições de militância, raízes criadas na atividade clandestina e a sua ligação tradicional com o mundo socialista lhe ajudaram nisso. O PS, fundado no exterior, sem maiores tradições históricas no próprio país, praticamente tinha de ser criado ainda, reunindo grupos heterogêneos em torno de Mario Soares. Mas essa vantagem, da qual o PC conseguiu assegurar-se – como já vimos – limitou-se praticamente à região da Grande-Lisboa e ao Alentejo. No resto do país teve de competir com o PS.

É preciso ver que para a massa politicamente inexperiente e politicamente ainda não definida era difícil distinguir entre PC e PS Ambos os partidos apresentaram plataformas antes de tudo democráticas. Ambos falavam em chegar ao socialismo através da democracia, ambos falavam em democracia sem entrar no seu conteúdo de classe.

O PS ganhou a corrida no resto do país, podendo ainda contar com uma forte minoria em Lisboa. Já nos referimos ao papel que a atitude do PC durante as ondas de greve desempenhou nesse processo. Outro fator que contribuiu para isso foi o empenho do PC em conquistar as cúpulas políticas, administrativas e sindicais, sem se preocupar com as necessidades das bases e sem realizar um correspondente trabalho de base. Mas, decisivo para a derrota do PC foi o fato do PS e outras forças terem podido erguer mais alto e de modo mais consequente a “bandeira democrática”. E essas forças podiam fazê-lo, ao contrário do PC, porque a democracia formal, a democracia burguesa, era realmente a sua razão de ser.

O Caminho desse desenvolvimento já tinha sido aberto na clandestinidade. Os quadros do PC tinham sido educados nessas bases programáticas e pela política prática, evidentemente. Saídos da clandestinidade, criaram os novos elementos recrutados no mesmo espírito, e todos juntos contribuíram para fazer penetrar a sua ideologia na grande massa. No terreno da luta prática havia a mesma continuidade. Na política de alianças, a participação e integração na CDE foi continuada mediante a participação governamental e a submissão ao MFA. Tornou-se vítima também da sua política de alianças e sua atual atitude lamentável, a da continuidade no governo Azevedo e da assinatura do “Novo Pacto”, indica que de força própria não encontra a caminho que o tire do beco sem saída.

A nossa crítica não visa o fato do Partido Comunista Português ter lutado pela derrocada da ditadura estadonovista. Essa foi indispensável para o proletariado português se encontrar como classe, tomar consciência e se organizar. Criticamos, sim, que combateu a ditadura em nome da democracia e esse imediatismo o tornou impotente na prática de enfrentar a democracia burguesa, que não é mais do que a ditadura velada do capital.

Tampouco criticamos o Partido pelo fato da sua colaboração com o MFA ou com frações dele mas uma colaboração tácita ou formal, não implica necessariamente na participação governamental nem na aceitação de responsabilidade pelos atos de um governo pequeno-burguês. Também aí esqueceu-se do velho princípio leninista de “marchar separado, bater junto”. Na prática, a participação do PC nos governos de coligação fechou o caminho para a formação de um Governo Revolucionário dos Trabalhadores, com a participação das massas e apoiando-se nos órgãos das massas, nas Comissões – o que teria sido a única alternativa realista ao restabelecimento da democracia burguesa em Portugal.

O que criticamos – e isso é de máxima importância também para a nossa luta no Brasil – é o fato do PCP ter feito uma política que, em troca de vantagens imediatas e aparentes sacrificou os interesses futuros da classe operária. Ele renunciou de antemão da criação de uma classe operária independente e politicamente madura para poder exercer um papel de liderança das demais classes e camadas na luta contra o capital. Os sucessos imediatos que conseguiu nesse caminho eram aparentes pois sacrificou não só o futuro como preparou a perda mesmo das conquistas parciais – entre as quais as democráticas.

 

O ÚLTIMO CAPÍTULO AINDA NÃO ESTÁ ESCRITO

Não devemos nutrir ilusões sobre a situação criada em Portugal. O auge da situação revolucionária surgida em 25 de Abril está passado. O proletariado perdeu a iniciativa e procura agora salvar conquistas obtidas nos últimos dois anos. Novembro de 1975 representa para a revolução portuguesa o que Janeiro de 1919 foi para a revolução alemã. E se em Portugal não houve algo comparável com o assassinato de Rosa Luxemburgo, deve-se isso ao fato de as lutas de classe em Portugal não terem chegado até agora a confrontos armados, semelhantes aos dos espartaquistas. Além disso, temos que ver que não existiu em Portugal nenhuma figura de liderança revolucionária como Rosa. A esquerda revolucionária portuguesa se mostrou incapaz de conquistar setores mais significativos do proletariado. Dividida entre si, limitada pelas suas origens e sua composição pequeno-burguesa, não estava em condições de chegar a um acordo sobre o caminho a seguir, mesmo quando pretendia.

A derrota sofrida pelo proletariado, entretanto, ainda não assegura a vitória da sociedade burguesa em Portugal. O que é mais problemático é uma consolidação da democracia burguesa naquele país. Privada dos recursos baratos das colônias, tanto no que diz respeito a alimentos como a matérias primas, a economia capitalista portuguesa enfrenta um futuro incerto. E um mínimo de equilíbrio econômico é necessário para o funcionamento de instituições democrático-parlamentares.

Seria ingenuidade esperar que a ajuda do capitalismo ocidental possa resolver os problemas estruturais da sociedade portuguesa. Na melhor das hipóteses ajudará a cobrir déficits na balança de pagamentos, mas aí enfrentará um poço sem fundo.

Uma integração de Portugal à Comunidade Econômica Europeia não é visada sequer. Teria para a economia portuguesa o efeito de novo Tratado de Methuen [2]. Fala-se de uma “associação” que deveria assegurar às exportações portuguesas maiores cotas no mercado europeu. Mas esses produtos, principalmente agrícolas processados, não encontram perspectivas muito favoráveis num mercado, que, entre outros, se ressente de uma superprodução agrária. Em todo caso, qualquer concessão que a Europa industrial fizer nesse sentido, não será um ato unilateral, será acompanhada por “retribuições” portuguesas ao capital estrangeiro e criará problemas novos e numa escala ainda não conhecida por esse país, no qual o capital estrangeiro até agora não desempenha o papel predominante que tem entre nós, por exemplo, na América Latina. Mas, ajuda capitalista é igual a exploração capitalista.

A ofensiva do capital contra a classe operária, que começou com o congelamento dos salários e contratos coletivos, visa a reprivatização das indústrias e o restabelecimento da autoridade patronal dentro das empresas. Mas visa também o descarregamento do ônus da crise nas costas da classe operária e dos assalariados em geral. Todos esses problemas requererão soluções e medidas que limitarão o jogo da democracia burguesa. Isso evidentemente não está em contradição com os “princípios democráticos” das classes dominantes ocidentais. A “bandeira democrática”, tendo esgotado o seu papel na luta contra as aspirações revolucionárias do proletariado, é arreada, dobrada e guardada até o próximo round, até próximo confronto aberto entre trabalho assalariado e capital.

Este virá em Portugal, provavelmente mais depressa do que esperam as forças, que atualmente se regozijam com a sua vitória fácil. Virá na medida em que os vencedores de hoje, que tomaram a responsabilidade pelo governo do país, não resolverem os seus problemas mais prementes. Isso criará uma fase de novas polarizações internas, na qual o potencial fascista já presente liderará a oposição da direita contra a democracia burguesa. Mas esse novo round virá também sob o impacto das lutas de classe na vizinha Espanha, que ainda estão longe de terem atingido o seu auge, mas que desde já partiram de um nível mais alto do era o caso em Portugal. Na Espanha é a classe operária, que iniciou e lidera fisicamente a luta contra o antigo regime. Só podemos esperar que acabe liderando-a politicamente também.

As perspectivas dessa futura onda revolucionária na península ibérica dependem, entre outras, da capacidade do proletariado português de tirar os indispensáveis ensinamentos da derrota. Para nós implicam em algo mais do que uma simples experiência teórica. No Tejo e no Ebro antecipa-se também o futuro desenrolar das nossas lutas de classe, no Brasil e na América Latina.

Ernesto Martins (Érico Sachs) – Fevereiro de 1976

 

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Notas do CVM:

[1] COPCON – Comando Operacional do Continente: estrutura de comando militar para Portugal continental (enquadrado no Estado-Maior General das Forças Armadas) composta por forças especiais militares como os fuzileiros, paraquedistas, comandos, polícia militar, Infantaria de Queluz e pelo Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS) sob o comando do major Otelo Saraiva de Carvalho. O COPCON foi criado em 8 de julho de 1974 pelo MFA no período que se seguiu à Revolução de 25 de Abril de 1974 e extinto após 25 de Novembro de 1975.

[2] O Tratado de Methuen, também conhecido com “Tratado dos Panos e Vinhos”, foi um acordo comercial celebrado entre Inglaterra e Portugal no ano de 1703, que, no seu aspecto econômico, estabelecia que a Inglaterra teria o monopólio dos tecidos importados por Portugal, que, em contrapartida, teria o monopólio da importação de vinho pelos britânicos, e no seu aspecto militar, estabelecia uma aliança ofensiva e defensiva entre as duas potências. Foi assinado em um momento em que Portugal enfrentava grandes dificuldades econômicas, decorrentes do emprego de recursos para expulsar os holandeses do Brasil e em outros conflitos com a Holanda (fonte: wikipedia).

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