Fatos & Crítica 33: 2021: um ano marcado pela tragédia social
Coletivo do CVM
Há doze meses este boletim previa que o ano de 2021 seria caracterizado pela ampliação da miséria, da fome e da doença no país. Infelizmente, a previsão se concretizou.
A pandemia vitimou 616 mil pessoas
No ano de 2020, já haviam morrido 195.000 pessoas pela pandemia do novo coronavírus, mas do início de 2021 até agora se somaram mais 421.000 vítimas a essa estatística, chegando-se à tenebrosa cifra de 616.000 mortos desde que a pandemia começou.
Fatalidade? Claro que não. Em junho, um estudo levado à CPI do Senado por um renomado epidemiologista estimava que 80% das mortes registradas até então poderiam ter sido evitadas, caso o governo federal tivesse acelerado a aquisição de vacinas e apoiado as medidas de distanciamento social. Por que não o fez? De onde brota esse negacionismo obcecado em relação à pandemia, praticado por Bolsonaro e seus apoiadores até os dias de hoje?
Por trás desse comportamento aparentemente irracional, de defesa aberta a exposição da população ao vírus (denominada de imunidade coletiva ou de rebanho), encontra-se a burguesia e a pequena burguesia do comércio e dos serviços, em todas as escalas de negócio: da pequena mercearia de bairro ao maior dos shoppings centers. Parcela significativa dessa gente integra a base política e social do governo e encontra em Bolsonaro o seu porta-voz natural.
Particularmente a pequena burguesia desse ramo de negócio é formada no dia a dia da competição capitalista, sempre sob o risco de falência, é naturalmente individualista, habituada a pensar no curtíssimo prazo e não admite de forma ostensiva que os seus lucros sejam afetados por qualquer medida de distanciamento social, seja qual for o custo humano.
Em relação ao apoio à campanha de vacinação em massa, a burguesia se apresenta dividida, porém tem sido uníssona e faz vista grossa ao descumprimento medidas de distanciamento social, seja no que se refere à superlotação diária dos meios de transportes coletivos, seja na aglomeração e condições desfavoráveis no ambiente de trabalho presencial da produção fabril, colocando, sobretudo a classe trabalhadora, ao maior risco de adoecimento e morte nesta pandemia, como demonstram as análises publicadas em nosso portal (clique aqui e aqui).
Mesmo atrasada e contando com a má vontade explícita do capitão, a campanha de vacinação em massa se impôs e os seus efeitos se mostraram positivos: com 65% da população plenamente vacinada até o momento, a média móvel de mortes diárias caiu de 3.100 em abril para cerca de 190 e as internações em hospitais pela doença também diminuíram bastante. Mesmo assim, a pandemia não pode ser considerada como controlada. A essa altura, a cobertura vacinal completa já deveria ter alcançado pelo menos 80% da população. Com o atraso nessa cobertura, o número de mortes diárias atual pelo COVID 19 ainda é elevado, principalmente considerando que essas mortes seriam evitáveis, uma vez que 96% dos óbitos foram de pessoas não vacinadas.
Como vimos acima, o calcanhar de Aquiles nessa luta contra a pandemia continua sendo as medidas de distanciamento social. A tendência dos governos locais à liberação geral também favorece o surgimento de novas variantes do vírus, eventualmente resistentes às vacinas utilizadas. As festas de fim de ano, a insuficiente cobertura vacinal e os limites das imunizações existentes é um convite ao coronavírus à produção de novas ondas da epidemia, tal como vem ocorrendo na Europa e se espalhando pelo mundo, exigindo ações mais amplas e drásticas, que o governo bolsonarista até agora se recusou a colocar em prática.
Economia anêmica, miséria e fome
A recuperação em “V” (queda seguida de recuperação rápida) prevista pelo governo para a economia, ao não se concretizar, demonstrou que os problemas econômicos do país são bem maiores do que aqueles causados pela diminuição do consumo e pelo fechamento de negócios por conta da pandemia.
De fato, os economistas burgueses reunidos pelo Banco Central para fornecer previsões para o Boletim Focus não cessam de apresentar projeções declinantes para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2021, agora situado em 4,71%, o que mal recupera o decréscimo de 4,1% em 2020.
Para 2022, ano eleitoral, a previsão é de um crescimento pífio de apenas 0,51%, embora alguns bancos já trabalhem até com números negativos.
Como o PIB no segundo trimestre de 2021, segundo o IBGE, teve uma queda de 0,4% em relação ao trimestre anterior e, no terceiro trimestre, foi observada uma nova queda de 0,1%, a luz amarela da economia se acendeu: “recessão técnica”, dizem os economistas ao observar o crescimento negativo por dois trimestres seguidos.
Mas o crescimento industrial consegue ter um desempenho ainda pior do que o da economia como um todo: em setembro de 2021 foi constatada uma queda de 0,4% em relação a agosto, a quarta queda mensal consecutiva. O produto industrial de setembro não recuperou sequer o nível anterior ao início da pandemia (na verdade, é 3,2% inferior a ele) e é 19,4% menor que o produto industrial recorde do mês de maio de 2011.
Para configurar o pior dos mundos para a economia capitalista, o cenário de “estagflação” – estagnação com inflação – começa a se revelar no país. A previsão do Boletim Focus é de uma inflação de 10,18% em 2021, muito acima da meta governamental de 5,25%. Para tratar da “doença inflacionária”, o Banco Central só conhece um remédio: aumentar a taxa de juros básica (Selic) para frear a atividade econômica, isso numa conjuntura em que esta já está naturalmente anêmica. E, assim, o Comitê de Política Monetária do Banco Central acabou por sacramentar o aumento da taxa Selic, que passou de 7,75% para 9,25%.
Para os trabalhadores, uma economia estagnada e com inflação alta tem dois significados: desemprego e perda do poder aquisitivo dos salários. E os números a seguir mostram esses dois efeitos.
O desemprego, segundo a PNAD, atingiu 13,5 milhões de trabalhadores no terceiro trimestre de 2021, o que corresponde a 12,6% da força de trabalho. Se considerarmos, além dos trabalhadores desocupados (os que procuraram emprego), os subocupados (que gostariam de trabalhar mais tempo) e os desalentados (que desistiram de procurar emprego), a taxa de subutilização da força de trabalho chega a um total de 26,5%.
É certo que o declínio da pandemia pela vacinação tem diminuído um pouco esses números. No terceiro trimestre de 2020, o desemprego atingira 14,1 milhões de trabalhadores, o que correspondia a 14,6% da força de trabalho, e a subutilização era de 30,3%. Mas essa redução se deu principalmente nos setores informais, que geram menor renda para o trabalhador. A prova disso é que o rendimento médio – segundo a PNAD – no terceiro trimestre de 2021 foi de apenas R$ 2.459,00, valor 4,0% inferior àquele observado no segundo trimestre deste ano e 11,1% inferior ao do terceiro trimestre de 2020.
Rendimentos menores dos trabalhadores são acompanhados, entretanto, por itens de subsistência cada vez mais caros, por conta do recrudescimento da inflação. Em doze meses, o açúcar aumentou 38,37%, a carne, 24,84%, o arroz, 11,37%, o botijão de gás, 34,67% e a energia elétrica, 28,82%.
O aumento do custo de vida para os que ganham de 1 e 40 salários-mínimos (IPCA) chegou a 10,67% em novembro, mas a conta fica mais pesada para quem ganha entre 1 e 5 salários-mínimos (INPC), ou seja, a quase totalidade dos trabalhadores brasileiros, pois a taxa medida pelo índice nacional de preços ao consumidor atingiu 11,08%.
O custo de 13 itens de alimentação da cesta básica calculada pelo DIEESE alcançou 52,60% do valor do salário-mínimo atual, de R$ 1.100,00. Ou seja, os trabalhadores tiveram de gastar em agosto de 2021, na cidade de São Paulo, R$ 650,00 apenas para comprar batata, tomate, frango, café, óleo e outros produtos que tiveram maiores aumentos neste ano. Isso sem contar o consumo de gás de cozinha, transporte, aluguel, roupas, medicamentos. “Tiveram de gastar mais” significa dizer que tiveram de trabalhar mais, fazer “bicos” ou envolver mais membros da família na geração dos rendimentos para a manutenção do consumo no mesmo nível.
Obviamente, o valor do salário-mínimo vigente sequer atinge o necessário para um trabalhador sobreviver. Ele deveria corresponder, em setembro e também para São Paulo, a R$ 5.657,66, para uma família de quatro pessoas, ou seja, 5,14 vezes o valor do salário-mínimo vigente.
Panorama político
O cenário econômico atual e o previsto para 2022, que não é melhor, colocam para Bolsonaro a hipótese muito provável de que não conseguirá se reeleger no ano que vem. Tendo falhado a sua tentativa de golpe em setembro, restou-lhe agarrar-se ao Centrão, à custa de emendas parlamentares secretas que derramam dinheiro público nos bolsos de seus apoiadores no Congresso.
Fez mais, filiou-se ao PL, partido símbolo do toma lá dá cá e que tem como princípio basilar apoiar qualquer governo, desde que em troca de cargos, verbas e bons negócios. Para vice, pensa em um militar como Braga Netto, o seu Ministro da Defesa, como um “seguro” anti-impeachment, já que a apólice anterior (o General Mourão) venceu e não será renovada.
Garantido o apoio parlamentar para suas iniciativas e o bloqueio a qualquer tentativa de impeachment, pode agora se dedicar a iniciativas destinadas a angariar apoio eleitoral junto à população mais pobre. A metamorfose do “Bolsa Família” de Lula em “Auxílio Brasil” de Bolsonaro, com o valor aumentado para R$ 400,00 por mês, deve ser obtido por uma combinação de “pedalada fiscal” e adiamento do pagamento de dívidas judiciais do governo, dois expedientes que desagradaram bastante os defensores burgueses do sagrado teto de gastos e da não menos sagrada segurança jurídica dos contratos.
O pacote de bondades parece que será complementado com a abertura de crédito para pessoas físicas “negativadas” (ou seja, sem crédito da praça), com recursos do FGTS, um fundo formado com recursos dos trabalhadores. Além disso, foi aprovado um “vale gás” de R$ 52,00 para famílias carentes, a ser pago pelo governo a cada dois meses até 2026.
Se essa conversão tardia de Bolsonaro às políticas compensatórias vai conseguir diminuir o mal-estar social gerado pelo desemprego e pela carestia, só o tempo dirá. Provavelmente, será insuficiente, embora possa significar alguma melhoria em suas perspectivas eleitorais.
Desgastado por suas políticas relativas à pandemia, ao meio ambiente, às relações exteriores e às vacilações da política econômica, a burguesia procurara uma terceira via, entre Lula e Bolsonaro, e talvez Sérgio Moro, com 11% de intenção de voto (O Globo, de 09.12.2021) no momento atual venha a ser a opção mais viável. Moro é o “justiceiro” da luta anticorrupção, que saiu queimado politicamente, após servir ao governo Bolsonaro por alguns meses enquanto Ministro da Justiça e ao serem reveladas suas manobras com os procuradores para a perseguição judicial de Lula.
Sérgio Moro recebeu o apoio imediato da mídia empresarial e foi logo apresentando o seu guru econômico, para não deixar dúvidas sobre a política que o seu hipotético governo adotaria: nada mais nada menos que Affonso Celso Pastore, conhecido professor neoliberal que presidiu o Banco Central no último governo militar. Além disso, Moro possui no seu currículo boas relações com o imperialismo americano, bastando lembrar a insólita visita que fez em companhia de Bolsonaro à sede da Central de Inteligência Americana (CIA), logo depois da posse do capitão, em 2019.
A estratégia da candidatura Moro é a de dividir a direita, tirando votos de Bolsonaro, e atrair os eleitores decepcionados com o capitão, para disputar no segundo turno com Lula. Para isso busca apoio também entre os militares, dentre os quais poderá sair o seu vice. É provável que venha a ter sucesso no bloqueio do crescimento à direita de outras candidaturas, como as de Dória, Ciro e outras menos importantes.
Todas as pesquisas eleitorais até agora apontam que Lula é o provável vencedor das eleições presidenciais de 2022, seja no primeiro ou no segundo turno. Consciente desse favoritismo, ele vai tentando construir a estrutura política que o permitirá se apresentar como candidato, realizar a campanha eleitoral, tentando ao mesmo tempo diminuir as resistências que a burguesia tem ao seu nome. Para isso, vem sendo arquitetada uma federação de partidos de esquerda, constituída pelo PT, PSB e PCdoB. Simultaneamente, vai à procura de um vice.
O vice de Lula também representará um “seguro”, como o de Bolsonaro. A diferença é que, no caso do capitão, quem detém a apólice é ele próprio, com vistas a sua preservação no poder executivo. No caso de Lula, quem detém o seguro não é o candidato, mas a burguesia, que poderá substituir o petista por alguém de sua confiança, caso julgue que os seus interesses fundamentais estejam sendo ameaçados. No primeiro caso, o impeachment é desincentivado; no segundo, há quase um convite para isso.
E quem é o candidato à vice que Lula anda cortejando? Ninguém menos que Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo em quatro mandatos, candidato à Presidência da República duas vezes pelo PSDB, católico conservador (segundo alguns, próximo à Opus Dei) e criatura considerada acima de qualquer suspeita pela burguesia paulista.
Mais uma vez, repetindo as campanhas desde 2002, o PT apresenta um candidato a vice que diz mais sobre o programa de governo do que qualquer peça escrita ou declaração de intenções. Novamente, a política de frente ampla com setores da burguesia exige a garantia de que o novo governo não mexerá uma vírgula no que foi imposto pelos governos anteriores contra os trabalhadores.
Nada será feito em relação às “reformas” da previdência e trabalhista e às privatizações. Nada será proposto que possa favorecer o fortalecimento da organização dos trabalhadores de forma independente, premissa para uma alteração radical nas relações de força entre as classes fundamentais de nossa sociedade – a burguesia e o proletariado.
Na melhor das hipóteses, com Lula, teremos um governo implementando políticas econômicas neokeynesianas, políticas sociais compensatórias – não muito diferentes das que o próprio Bolsonaro vem agora colocando em prática – e defensor de pautas identitárias, ao gosto da fração da pequena burguesia interessada em promover a conciliação de classes, em benefício próprio.
O crescimento eleitoral de Lula poderá ser utilizado por Bolsonaro para brandir que haveria uma ameaça à “ordem constituída” (leia-se ao domínio social da burguesia), ameaça que só poderia ser afastada mediante um golpe. Evidentemente, faltam condições objetivas para que isso se concretize, assim como faltaram em setembro deste ano. Isso não o impedirá, entretanto, de acusar seu oponente de ser uma ameaça à ordem, mesmo que Lula reitere o contrário e tenha demonstrado o contrário em seus dois mandatos anteriores.
CVM – 09/12/2021