A «Doutrina Soares»
Raquel Varela
12 de janeiro de 2017
Mário Soares morreu com honras, merecidas, de funeral de Estado. Era o seu Estado, o seu regime democrático-representativo. De que ele foi não o pai – isso seria uma oligarquia –, mas um dos dirigentes fundamentais. A sua importância como dirigente político foi marcada não pelo que fez como resistente antifascista, preso 12 vezes, ou pela liberalização das leis laborais dos anos 80 ou pela resistência à troika neoliberal pós 2008. Nenhum destes acontecimentos exigia homens excepcionais, recordo.
Onde ele foi extraordinário, o que o levou ao pódio da história mundial, foi em 1974-75. Não por acaso no dia da sua morte – de uma vida de 92 anos – as duas grandes polêmicas que envolveram a sua figura e dominaram as redes sociais foram «Soares, o culpado da contra-revolução», «Soares, o culpado da descolonização». Penso que em relação às duas afirmações há muito de memória e pouco de história.
Em 1974 aconteceu em Portugal algo raro. Muito raro. Um golpe de estado abriu as portas a uma revolução social. E o que é uma revolução? É esse momento da história em que o poder de Estado é questionado pelas massas – ao início são só isso, massas. Depois, paulatinamente, organizam-se conscientemente em comissões de trabalhadores, moradores, comissões de gestão democrática e são disputadas pelos partidos políticos.
O Partido Socialista(PS) não existia e passou de um pequeno grupo marginal com poucas dezenas de militantes para um partido de massas com 80 mil pessoas no Verão de 1975; o Partido Comunista Português( PCP) passou de um partido de vanguarda de 2 a 3 mil militantes em Abril de 1974 para um partido com 100 mil um ano depois. Percebem a força social? A história muda num dia o que não muda em décadas. Isto acontece porque milhões de pessoas, «de baixo», passam a ter uma palavra direta sobre a sua vida. A política deixa de ser uma atividade de especialistas e profissionais. É o espectro da autodeterminação.
Esta revolução não esperou sequer pelas eleições para a Constituinte em Abril de 1975: em poucos dias ou semanas, a seguir ao 25 de Abril, foi quase totalmente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um regime democrático. A democracia nasceu aí. Quando Soares e Cunhal chegaram do exílio a Portugal, este já era um país democrático, onde se podia organizar, falar, publicar. Votar, e muito, nos locais de trabalho.
Foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferência, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodução biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e universal à educação, à saúde e à segurança social. Ou seja, o Estado Social.
Dar uma direção a este rio avassalador é tarefa de homens e mulheres que jogam um papel individual insubstituível na história. A luta entre as classes e frações de classes seleciona os mais capazes – pacientes, emocionalmente firmes, destemidos, determinados. Acreditam num programa político maior, para além de si próprios – não são homens de carreira individual, mas de direção coletiva. São raros. São os dirigentes.
Em 1976 Kissinger agradece pessoalmente a Olof Palme o apoio dado a Soares contra a Revolução dos Cravos. Soares estava muito mais próximo ideologicamente de Allende, morto por um golpe de estado co-dirigido por Kissinger, do que do secretário de Estado norte-americano. Nesta altura o SPD alemão tinha transferido para Portugal a maior soma de dinheiro alguma vez transferida para um partido fora da Alemanha, para construir o PS – recrutar quadros, abrir sedes, ir gerir sindicatos, câmaras municipais e instituições. O mesmo fez o PCP, com a apoio da URSS, via em grande medida a Alemanha de Leste. Disputavam, PS e PCP, a organização daquele mar de gente.
Soares convenceu os seus pares nacionais e internacionais de uma estratégia absolutamente nova no quadro das revoluções pós 1945. A derrota da revolução não seria feita com recurso a um golpe militar sangrento e repressão generalizada, como era hábito, mas com um misto de golpe militar controlado (25 de Novembro) e instauração de um regime civil, de democracia representativa. Tudo ao contrário do Chile. Começa assim, a partir de Novembro de 1975, com a imposição da “disciplina”, isto é, da hierarquia, nos quartéis. E consolida-se através de um processo de “contra-revolução democrática”.
Portugal é o primeiro exemplo de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime de democracia representativa. Modelo que vai ser usado na Espanha franquista e mesmo no Chile, Brasil e Argentina dos anos 80, a «doutrina» Carter. Podia e deveria ser chamada a doutrina Soares.
Mas para esta contra-revolução, ou normalização democrática como lhe chamam os media hoje (curioso que mesmo os historiadores mais conservadores nos anos 80 não fugiam ao termo contra-revolução), digo, para esta contra-revolução se impor teve de pôr fim à democracia de base, nomeadamente nos quartéis, nas fábricas, nas empresas, nas escolas e nos bairros. E isso era o lado mais impopular de Soares. É aí que nasce o mito fundador do regime, o de que o fim da democracia de base, que Soares dizia apoiar, era o mal menor face à ameaça de uma ditadura soviética. Tanto que Soares diz fazer o 25 de Novembro contra a «social-democracia capitalista e socialismo ditatorial soviético».
O PCP nunca quis fazer uma revolução socialista em Portugal. E tinha tanto medo das fábricas controladas pelos trabalhadores como o PS. Isso não significa que o PCP não tenha querido ocupar lugares no aparelho de Estado. Quis e muito. E o PS também. Até Setembro de 1975 ocupou muitos lugares no aparelho de Estado e partir daí há um volte-face e é o PS que passa a ocupar esses lugares, de tal maneira que Cunhal tem um texto onde diz que “o nosso apoio ao VI Governo diminui consoante os lugares que nos dão no Governo e consoante nos abrem ou fecham a torneira do Estado”.
O discurso do PCP é um discurso em que defende a revolução socialista mas que vai às portas das fábricas distribuir folhetos para acabarem com as greves, porque as greves são contra os Governos Provisórios onde o PCP está em…aliança com o PS e o PPD. Carlos Carvalhas em 1975 no Governo aprova dois documentos contra o controle operário que existia de facto nas fábricas dizendo que o controlo operário não podia pôr em causa a economia nacional e a economia nacional tinha 92% da mão-de-obra trabalhando na economia privada, cuja propriedade não é questionada pelo PCP. É um discurso em defesa da revolução socialista que põe fim ao V Governo porque diz que o V Governo não pode avançar, tem de haver uma coligação com o PS, com o sector do Grupo dos Nove, tem de haver uma reconstituição do MFA.
O importante não é o que o PCP diz, mas sim o que faz. Quem põe fim ao V Governo é o PCP. Quem impede a Intersindical de sair é o PCP, quem impede os fuzileiros de sair no 25 de Novembro é o PCP. A história política do PCP não se pode fazer sem as fontes. A estratégia do PCP não tem como objectivo a revolução socialista. Tem como estratégia que Portugal fosse uma democracia no quadro da divisão do Mundo pactuada em Ialta e Potsdam, no final da II Guerra Mundial. Portugal estaria na esfera da Aliança Atlântica. Por isso, o PCP não defende nem apoia em 1975 a saída de Portugal da NATO.
O PCP é parte da construção da democracia e não uma ameaça à democracia. É parte do regime e dentro do regime disputa os trabalhadores organizados e melhores condições para os trabalhadores e fê-lo em 1974 e 1975, não questionando o regime, não questionando o sistema político. Quem não compreende isto não percebe o que é Portugal, os sindicatos e o pacto social nascido em 1976.
As tentativas de controlo do aparelho de Estado por parte do PCP (IV Governo) e por parte do PS (VI Governo), que existiram efetivamente, não têm nenhuma ligação com a democracia que vigorava nas empresas e nas fábricas e que foi cada vez maior ao longo de 1975, colocando sucessivamente em causa medidas de Governos que jamais foram eleitos. Estado e revolução não andaram de mãos dadas. O PS e o PCP estavam no Estado, a revolução fora deles.
Soares não foi o culpado da descolonização. Não havia nem nunca houve descolonização boa. A colonização é que foi culpada do seu trágico fim. Porque era um modelo de economia assente no trabalho forçado, deslocação de populações e polícia política – a PIDE nas colônias era uma pequena Gestapo, que atuava de facto em ligação direta com o exército colonial, recorrendo, por exemplo, ao assassinato direto de elementos «subversivos».
Foi dado a escolher aos portugueses pobres nos anos 50 do século XX se iam para França trabalhar como robôs nas fábricas da Renault ou ser pequenos patrões, comerciantes e funcionários nas colônias. Alguns escolheram a segunda via – e perderam tudo em 1975. Não porque Soares lho tirou mas porque eles ergueram as suas casas em cima da destruição das casas dos outros.
A PIDE nas colônias não escondia os seus informadores porque quando os pides entravam num lugar público os colonos levantavam-se e faziam uma vênia. Na vida tudo são escolhas e todas têm consequências. 60% do salário dos mineiros moçambicanos forçados pelo exército português a trabalhar nas minas da África do Sul era entregue em ouro ao Estado português, que depois lhes pagava uma parte em moeda local desvalorizada. O restante vinha para os cofres de Lisboa e era transferido para os 5 grupos econômicos que dominavam o país. E que antes disso não eram grupos econômicos mas mercenários. A Soares e dezenas de outros políticos ficou a responsabilidade de fechar a porta de um dique que se tinha aberto irreversivelmente depois de em Janeiro de 1961 os trabalhadores forçados da Cotonang terem feito greve por tempo indeterminado e terem sido regados com napalm pelo exército português. Com alta inflação aqui, desemprego galopante e milhares de pessoas em bairros de lata em 1975 os retornados foram colocados em hotéis na linha do Estoril – por Soares também. Vieram mal, perderam, tudo; muitos ficaram chocados com o país que encontravam, de mulheres de lenço preto na cabeça. África, para eles, era uma terra de liberdade. Mas foi o país que os acolheu, centenas de milhares, da noite para o dia, tentando acomodá-los o melhor possível.
Descobriram, em 1975, que ninguém é livre na prisão dos outros.
Nunca tanta gente decidiu tanto na história de Portugal como em 1974 e 1975. Hoje esse passado revolucionário — quando os mais pobres, mais frágeis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos — é uma espécie de pesadelo histórico das atuais classes dirigentes portuguesas.
Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela imprensa internacional de então, porque as imagens das pessoas dos bairros de barracas sorrindo de braços abertos ao lado de jovens militares barbudos e alegres encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia, Brasil… E de júbilo a maioria dos que aqui viviam.
Hoje a tendência em Portugal e na Europa é de alta concentração da riqueza. Em 1945, a diferença entre um rico e um pobre, ou um trabalhador manual qualificado na Europa, era de 1 para 12. Em 1980, subiu de 1 para 82. E hoje é de 1 para 530. A União Europeia é uma corporação de acumulação de capitais. E a acumulação é incompatível com a manutenção de serviços públicos de qualidade, por causa da queda tendencial da taxa de lucro. A consequência é a destruição do Estado de Bem-Estar Social, um país atrasado, de baixos salários, declínio da qualidade do trabalho, emigração.
O que vemos em Portugal em particular e em outros países é na verdade a ascensão da assistência social, com a educação e a saúde públicas focadas cada vez mais nos pobres e desempregados e não em toda a sociedade. O modelo que fundamenta a social-democracia esvaiu-se. E Soares assistiu, ainda em vida, ao fim do seu projeto político.
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Raquel Varela é Historiadora. Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, onde coordena o Grupo de História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais e investigadora do Instituto Internacional de História Social, onde coordena o projecto internacional In the Same Boat?Shipbuilding and ship repair workers around the World (1950-2010). É coordenadora do projecto História das Relações Laborais no Mundo Lusófono. É doutora em História Política e Institucional (ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa).É neste momento Presidente da International Association Strikes and Social Conflicts. É vice coordenadora da Rede de Estudos do Trabalho, do Movimento Operário e dos Movimentos Sociais em Portugal.
Publicou sobre a revolução dos Cravos os livros:
História do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011)
História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-1975 (Bertrand, 2014)
25. April 1974 – Die Nelkenrevolution (25 de Abril. A Revolução dos Cravos, publicado na Alemanha, Berlim, Laika Verlag, 2012).
Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012)
Greves e Conflitos Sociais no Portugal Contemporâneo (Colibri, 2012)
O Fim das Ditaduras Ibéricas (1974-1978) (Centro de Estudios Andaluces/ Edições Pluma, 2010)
Artigo publicado originalmente em http://esquerdaonline.com.br/2017/01/12/adoutrinasoares/