Futuro do presente: centralização sindical ou luta de classe?
João Ferreira
Os trabalhadores – especialmente os operários – estão sendo chamados outra vez a sustentar a retomada do crescimento do capitalismo no Brasil, cujas alavancas se mantém, contudo, firmes nas mãos da classe dos capitalistas, da burguesia.
O apelo, feito pelo novo presidente da República, tem amplo apoio no movimento sindical. A voz audível agora é a dos dirigentes entrincheirados no Ministério do Trabalho e Emprego. Será este o futuro do presente? Acreditamos que não. Suportar a pressão pela produção em contexto de baixos salários, inflação persistente e carestia significa nada menos do que um novo aumento na taxa de exploração acrescentando o arrocho salarial.
Assim, examinar as manobras do Fórum das Centrais Sindicais e recusá-las significa apontar outro caminho, o caminho da luta de classe, enraizado nas experiências concretas.
A centralização sindical
Ao apoiar formalmente as eleição de Lula em abril de 2022 (Conclat) e, em seguida, ratificar o compromisso de sustentar o governo eleito na cerimônia oficial no Palácio do Planalto ocorrida em 18 de janeiro de 2023, os dirigentes do Fórum das centrais sindicais subscreveram uma espécie de carta de servidão dos trabalhadores ao capital. Naquele dia, ouviram Lula afirmar a necessidade dos trabalhadores apertarem os cintos, ao lembrar da sua prisão pela ditadura militar em 1980 quando, fazendo greve de fome, se contentou em comer pouco a pouco “quando sentia à vontade de comer um frango assado inteiro.”
Os dirigentes sindicais do Fórum obviamente não podem usar palavras assim tão francas. A exigência de sacrifício dos trabalhadores ao capital é disfarçada na ideia da “reconstrução do Brasil”, principalmente do Estado nacional, destruído pelo governo ultraliberal e de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Será o Brasil contudo, os símbolos nacionais da bandeira, do hino e da língua adotados por todos? Ou a sociedade real, profundamente desigual e opressiva, na qual os símbolos servem para encobrir a divisão e a dominação de classe dos patrões (isto é, da burguesia) sobre os trabalhadores assalariados? O símbolo mais importante para a burguesia, porque resume o conjunto dos interesses de suas diversas fações (industrial, agrária, bancária e comercial), é a “Faria Lima” – avenida da capital paulista que constitui o centro físico do mercado financeiro do Brasil. Pois é quem governa de fato, estabelecendo um poder de vida e de morte sobre quem somente dispõe da força de trabalho para existir.
Não podendo admitir semelhante “desequilíbrio”, os dirigentes aceitam sim, o mando dos capital, mas “não podem mandar sozinhos”. Quer dizer, exercendo sempre, até a exaustão, o direito de reclamar, como o espernear da criança inconformada com uma ordem dos pais. Um exemplo notório bem recente deixa isso bem claro quando, na reunião com Fernando Haddad, o novo ministro da Fazenda, em 3 de março de 2023, o presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores disse a ele que “não dá só para ouvir a Faria Lima” nas discussões sobre reformas, por exemplo.
É bem verdade que essa posição tem sido defendida há muito tempo. Mas para ficarmos no tempo presente, lembremos da Conferência das Classes Trabalhadoras (Conclat), reunião do Fórum das centrais sindicais ocorrida em 7 de abril de 2022. A Proposta de pauta da classe trabalhadora – 2022 chama atenção pela linguagem pretensamente neutra e isenta de interesses de classe para falar de uma crise que “destrói o país”, a defesa do “trabalho decente” enquanto núcleo para “uma nova proposta de desenvolvimento social e crescimento econômico” e reivindicações vagas como “revisar os marcos regressivos da legislação trabalhista e previdenciária no setor público e no setor privado”. Posições formuladas desta forma, como se afirma no boletim Fatos & Crítica 35, tinham o sentido político de viabilizar a candidatura de Lula junto às diferentes frações da burguesia. A unidade sindical protagonizada pelo Forum das Centrais Sindicais foi demonstrada pela participação de Lula no encerramento do 9o. Congresso da Força Sindical, realizado em 9 de dezembro de 2022, na qual o ainda candidato afirmou que “esse país precisa mais uma vez da classe trabalhadora. E nós vamos ter que resolver, porque vai depender de nós.” A confirmação dessas intenções, como afirmamos acima, teve lugar na cerimônia de 18 de janeiro de 2023.
Que o mundo não funcione na base das intenções boas ou más e sim dos atos ficou claro quando, um mês depois, Sérgio Nobre, presidente da CUT “concedeu” uma entrevista à Rede Brasil Atual no Youtube – com perguntas previamente formuladas que continham em si as respostas. Sérgio Nobre, em meio à deturpação dos fatos históricos (a ditadura militar não teve a ousadia de interferir na vida dos sindicatos enquanto o “golpe de 2016” destruiu os sindicatos, comparando-o com o que Hitler fez na Alemanha), defendeu a “unificação” do movimento sindical, propondo reduzir o Fórum de 10 a apenas três centrais, a saber, CUT, Força Sindical e UGT, não por acaso as maiores em termos de número e de peso dos sindicatos de suas bases na economia, como também em termos de influência política na Câmara dos Deputados. A repercussão negativa das centrais excluídas não demorou a se manifestar, sobretudo das federações e confederações, quer dizer, da burocracia sindical criada desde a época de Getúlio Vargas.
A centralização do movimento sindical pelo alto pretende estar legalmente respaldada pelas “três grandes”. Comenta-se que um projeto de lei, em fase de elaboração para rever a posição do Supremo Tribunal Federal contrária à contribuição assistencial obrigatória aos não associados dos sindicatos, incluiria a redefinição dos critérios de “representatividade” das centrais e, portanto, facilitaria a centralização sindical pretendida. Outra medida seria a criação de uma instituição de arbitragem de conflitos entre trabalhadores e empresários autônoma da Justiça do Trabalho. Provavelmente todas essas pretensões irão esbarrar na oposição burguesa de extrema-direita, no bolsonarismo parlamentar. Esta corrente política é abertamente contrária à organização dos trabalhadores (suas bases são capazes de recorrer a medidas como a ameaça de morte da presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo) e atualmente advoga pelo fim da fiscalização sobre o trabalho escravo, reivindicada pela massa pequeno-burguesa sobretudo nos empreendimentos do comércio e dos serviços, base da UGT.
Em contrapartida, para a grande burguesia, o sindicato é um mal necessário, porque constitui uma resposta histórica à exploração capitalista, ou seja, uma organização que os trabalhadores conseguiram impor e que a burguesia, de seu lado, conseguiu enquadrar, com maior ou menor sucesso em diferentes países, nos termos da sua ordem. Seu ideal é o sindicato organizado por empresa, onde possa interferir abertamente pelo poder “econômico” de empregar, desempregar e corromper. Nesse sentido não deseja uma unificação ou centralização sindical, mas se for levada a aceitar pelo resultado do jogo parlamentar, será para conter, controlar e minar as lutas. E a CUT tem um “currículo” de serviços prestados nesse sentido, a exemplo da atuação de Vagner Freitas, tesoureiro nacional da CUT despachado para Rondônia após a sublevação dos operários da construção da hidrelétrica do Jirau, no sentido de acabar com a revolta, estabelecer o comando da central e conduzir os trabalhadores de volta ao trabalho. É o que apontou o artigo “Os trabalhadores de Jirau e a direção da CUT”, de Waldemar Rossi, publicado no Correio da Cidadania, de 06 de abril de 2011.
A centralização “pelo alto” também impulsiona a ofensiva das três centrais sindicais para arregimentar as diretorias de sindicatos das outras centrais ou dividi-las nas campanhas eleitorais entre os metalúrgicos e os servidores públicos. Os petroleiros são outro “alvo” a ser atingido. No caso dos metalúrgicos, o exemplo é o apoio à “Frente Sindical Popular Socialista” que disputa o Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas, integrante da Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora.
Entre os servidores públicos, deve-se considerar a desfiliação da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES) da CSP-Conlutas ocorrida no 41o. Congresso da entidade, realizado em 10 de fevereiro de 2023, em nome da unidade sindical para o enfrentamento da extrema-direita no Brasil, conseguida pelos dirigentes cutistas.
Certamente o impulso para a centralização pretendida vai tomar maior impulso com a sindicalização massiva dos metalúrgicos e de outras categorias de trabalhadores fabris a partir do 1o. de Maio.
A alternativa da luta de classe
Esta tendência de repactuar a escravidão assalariada e subordinar politicamente o movimento sindical ao novo governo tem raízes históricas no tipo de sindicalismo imposto no Brasil há quase um século. Desde 1931, quando Getúlio Vargas impôs a primeira legislação sindical oficial, o sindicato deixou de ser um instrumento de luta do trabalho contra o capital para se transformar em instrumento de colaboração de interesses entre capital e trabalho. Mesmo quando os operários se movimentam e os sindicatos sofrem a influência da força da classe trabalhadora, a cúpula sindical acaba por fazer prevalecer a conciliação.
Foi a partir da onda das greves no ABC nos anos 1978-1980 que os chamados dirigentes sindicais “autênticos” (Lula em primeiro lugar) conquistaram esse nome e papel de representantes da classe operária, estabelecendo a base do Partido dos Trabalhadores. No início de sua trajetória, esses dirigentes defenderam o sindicato livre em nome das negociações diretas entre trabalho e capital. Por que, vale perguntar, esses dirigentes nunca conduziram a luta contra o atrelamento sindical até o fim? Porque precisaram (e ainda precisam) usar o Estado burguês para garantir a unicidade sindical, quer dizer, a existência de um único sindicato na base territorial de modo a garantir o monopólio da representação. Esse monopólio não surge como resultado da luta, mas do enquadramento sindical garantido pelo Estado.
Mais ainda: esse tipo de sindicalismo não é a favor de greves, mas na medida em que elas são inevitáveis por conta da resistência dos trabalhadores à exploração capitalista, agem sempre para terminá-la rapidamente e conduzi-la a uma negociação “razoável”, de modo a manter as posições na máquina sindical e garantir o emprego dos sindicalistas. É o que aconteceu na greve dos metalúrgicos do ABC em 1979, quando Lula defendeu o fim da greve enquanto condição para acabar com a intervenção do Ministério do Trabalho no sindicato. Naquele momento, a paralisação geral organizava-se em torno do Fundo de Greve, um embrião de sindicato livre. Vaiado pela massa disposta a prosseguir na luta, inclusive de enfrentar a repressão, Lula teve de assistir ao esvaziamento da assembleia no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. É o que relatam Luís Flávio Rainho e Oswaldo Martins Bargas no livro “As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo (1977-1979), aliás uma publicação do Fundo de Greve, a “FG/Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos”, datada de 1983. Porém Lula aprendeu a lição: no ano seguinte, quando liderou nova greve e foi preso por isso, admitiu ter alcançado uma vitória política, apesar da derrota das reivindicações econômicas do movimento. De fato, recuperou o prestígio na massa operária e saiu da prisão para presidir o Partido dos Trabalhadores.
As greves de 1978 a 1980 aparentemente ficaram para trás, mencionadas de modo vago e difuso décadas por alguns sindicatos como parte de uma tradição de luta, a ser lembrada, mas não seguida, pois “os tempos agora são outros”. O principal ensinamento, porém, nunca é ressaltado: o de que um sindicato que não apela ao sentimento de classe e, encontrando ressonância junto às massas dispostas a lutar, deixa de encaminhar o enfrentamento da exploração capitalista, ou, ainda, quando privilegia o emprego em detrimento da resistência, serve aos patrões e seu governo.
Aparentemente as greves gerais de categorias como as dos metalúrgicos ficaram para trás, por que numa época de agravamento da exploração, de fome e de opressão política assistimos apenas a lutas isoladas, a exemplo das greves de 2020 (Renault), 2021 (General Motors) e 2022 (CSN).
Apesar do isolamento, o heroísmo renasce sempre que os patrões querem subjugar a força de trabalho. Foi o que aconteceu na greve dos metalúrgicos da Companhia Siderurgica Nacional, entre 11 e 22 de abril de 2022. Esta greve foi dirigida por uma comissão de base eleita dentro da usina durante a própria mobilização, independente do sindicato que se encontrava nas mãos de uma diretoria pelega; tinha por objetivo aumentar o salário real e retomar o turno de 6 horas de trabalho. A oposição sindical liderada pela CUT, ao invés de solidarizar-se, foi contra a paralisação, considerando-a precipitada dada a proximidade da eleição para a nova diretoria do sindicato, no mês de junho. Repisaram os mesmos passos de Lula de 1979. Os operários levaram a paralisação adiante com força e destemor até o limite de suas forças; mesmo depois de demissões massivas e a exclusão da comissão de base pela CSN, realizaram, em 27 de abril, uma assembleia em praça pública derrotando a proposta patronal com 6.509 votos, 290 a favor, 6 nulos e 1 em branco.
Portanto, se os tempos são outros, o capitalismo ainda é o mesmo: faz-se necessário examinar as condições de luta, mas cada experiência, mesmo isolada, deve ser entendida como uma referência para o desenvolvimento da solidariedade de classe. Afirmar isso significa apoiar ativamente a luta, deslocando ativistas e destinando recursos financeiros, assim como divulgar amplamente as reivindicações, o processo e as formas do enfrentamento, com destaque para a necessidade de romper as amarras da legislação trabalhista que limitam a luta ao plano econômico e a uma categoria profissional numa base territorial delimitada e apontar a necessidade de unificar a luta em torno das exigências de interesse de todos os trabalhadores. Experiências neste sentido ocorreram em várias greves gerais na história do Brasil; aliás, uma das que melhor exprimem o sentido do movimento de classe foi a chamada “greve do pacto”, dos operários de todos os ramos industriais ocorrida em São Paulo em fins de outubro e início de novembro de 1963, que por isso merece ser lembrada.
A unidade sindical, como nos idos da greve geral operária paulista de 1963, precisa ser a consequência da mobilização efetiva dos operários nos locais de trabalho. No caso daquela greve, a brutal inflação que corroía o poder de compra dos salários levou à radicalização e generalização da luta pelo aumento salarial. Contudo, a organização aconteceu espontaneamente na luta e a cúpula sindical, que estabelecera um pacto de unidade de ação, deixou o trabalho de base de lado para privilegiar a influência junto ao governo de João Goulart.
Todas as considerações acima apresentadas nos levam a concluir que, doravante, na medida em que os operários e trabalhadores se mobilizarem para defender seus interesses específicos serão “advertidos” para não assustar a burguesia, para evitar o avanço da extrema-direita e para refrearem a sua luta, em nome da “reconstrução do Brasil”. Pelo contrário, somente quando assumem a luta por seus interesses específicos podem os operários conhecer a si mesmos e despertar como classe. Nesse sentido, um sinal animador nos chega por meio das notícias recentes de greves gerais na Alemanha e Inglaterra em defesa dos salários corroídos pela inflação, assim como da luta dos trabalhadores franceses, de caráter político, contra medida estabelecida pelo governo Macron de acréscimo de 1 ano, de 42 para 43 anos, como tempo de contribuição para ter direito da pensão no valor integral.
Sabemos que o futuro do presente é incerto, porém as contradições entre capital e trabalho continuam a se desenvolver e o caminho da luta exige a independência de classe. Como sempre na história, a vontade de vencer faz parte da vitória.
Março de 2023
JF