Desafios da esquerda na UE

Ana Barradas
Bandeira vermelha em 17 de janeiro de 2021

 

Com a pandemia covídica a cumprir o seu curso inevitável, o ano terrível de 2020 terminou com a Europa esparvecida e paralisada pelo medo dos contágios, pelas restrições às liberdades individuais e pelos constantes confinamentos sanitários. Por cima disso, e perante o anunciado aprofundamento da crise económica iniciada em 2007, alargando ainda mais o fosso entre ricos e pobres, os trabalhadores receiam ser lançados numa crise muito grave de privações, fome e miséria.

De facto, torna-se desde já por demais evidente para os cidadãos em geral o alastramento do desemprego, da precariedade e da pobreza em todo o continente. Bombardeados a todo o momento pela propaganda oficial, esta prestamente secundada pelos média, os cidadãos têm sido intimidados, neutralizados e amestrados pelas medidas de excepção cada vez mais arbitrárias, e agora são atordoados com os prometidos sucessos da vacinação, também ela matéria de autoengrandecimento dos poderes centrais da União Europeia e respectivos governinhos nacionais. Estes surgem como salvadores da saúde pública, ao mesmo tempo que, prometendo tudo resolver, anunciam a distribuição de fundos comunitários para enfrentar a crise económica que se aprofunda.

Entretanto, uma grande proporção dos desempregados corre o risco de agravamento da pobreza e exclusão, condição social cada vez menos silenciosa, como se pode comprovar pelas longas filas de abastecimento alimentar, mesmo nos países mais afortunados. Antes da pandemia, esperava-se que a taxa de pobreza extrema caísse para 7,9%. Agora, ela deve atingir 9,1% a 9,4%.

Ao mesmo tempo, acumulam-se novas fortunas, conseguidas à custa da crise e de golpes financeiros, jogos bolsistas, reduções de encargos salariais por lockdown e despedimentos, inobservância da contratação laboral, tudo isto coadjuvado por prestações de fundos governamentais, favorecimentos bancários, perdões fiscais e regimes fiscais de excepção. Mais de 800 mil milhões de dólares foram arrecadados pelos 500 mais ricos do mundo em resultado da Covid, que os tornou 30% ainda mais ricos.

Apesar da intoxicação a que está sujeita a opinião pública, seria de esperar que pelo menos a esquerda não se deixasse neutralizar pela situação e reagisse como lhe compete. E no entanto, não é isso que acontece. Logo para começar a compreender o fenómeno, temos que nos pôr a questão: mas afinal o que é a esquerda?

Há que dizer claramente que em toda a Europa deixou de existir uma verdadeira esquerda anti-sistema. Desde os anos 80, assiste-se a uma viragem à direita em todo o mundo, com os partidos revolucionários e anticapitalistas a aderir à social-democracia, e os partidos social-democratas e a esmagadora maioria dos “comunistas” ortodoxos, a aderir aos liberalismos, em particular nos países de Leste, onde esse liberalismo económico se funde com o novo fascismo político. Esta deriva que a atrai para a social-democracia começou a acentuar-se nas últimas duas décadas e hoje acelera-se com o deslizamento mais ou menos acentuado das forças organizadas em partidos de esquerda na direcção do mergulho total no pântano do jogo institucional, parlamentar e eleitoral. Deslocando-se para fora do campo proletário e semiproletário, isto é, dos interesses dos trabalhadores produtivos e semiprodutivos, esses partidos conquistam para si as simpatias das camadas inferiores das classes intermédias pequeno-burguesas – pessoal dos serviços públicos, pequenos patrões, agricultores arruinados, professorado, estudantariado, uma parte do lumpen-proletariado e profissões liberais.

 Esta aproximação da esquerda institucional às camadas intermédias faz-se à custa de se ocupar em primeira linha das causas que mais tocam estas camadas: criticam os governos anunciando-se como mais competentes que eles e capazes de os substituir, mas no seu próprio terreno institucional e cedendo às suas chantagens; apelam ao saneamento político e ao reforço da democraticidade das forças da ordem; reclamam contra a corrupção sem realmente a combater; silenciam a verdadeira causa dos estados de emergência em curso, acerca dos quais seria mais sério dizer que são de facto impostos à cidadania devido à incapacidade do governo de combater a epidemia, em razão do persistente desinvestimento estatal em recursos financeiros e humanos dos serviços de saúde pública, nos transportes públicos e na educação, desviados os fundos mais robustos para outras despesas como injecções no sistema bancário e nas grandes companhias e no perdão de dívidas aos grandes devedores); pronunciam inconsequentes profissões de fé contra a extrema-direita, sem lhe dar combate sério; esforçam-se por indicar soluções, dar conselhos sobre como actuar, chegando a tomar partido por uma parte da burguesia contra a outra (as vantagens da saúde pública sobre a privada e vice-versa, por exemplo); calam a falta de medidas que protejam os trabalhadores do empobrecimento e do desemprego, substituídas pelo tráfico humilhante da caridade e das sopas dos pobres, cada vez mais visto como uma alternativa aos sistemas de protecção social; abraçam causas identitárias sem as relacionar minimamente com o apodrecimento do capitalismo, etc. E tudo isto se processa sem um gesto ou uma palavra de incentivo às dispersas lutas laborais que ainda se vão organizando por pressão das bases sobre os burocratas sindicais ou aos surtos de revolta inorgânica que se acendem momentaneamente e depressa se extinguem por falta de enquadramento.

Competiria a uma esquerda digna desse nome denunciar que os governos e suas alianças regionais e internacionais, em particular a União Europeia, fazem uma gestão política da pandemia em que nos querem fazer crer que é aceitável e justificado suspender liberdades políticas, limitar direitos, reduzir salários e regalias laborais, etc., em nome da salvaguarda da saúde pública; além disso, haveria que denunciar que essa gestão não protege todos por igual, já que os trabalhadores do sector produtivo e outros que não podem resguardar-se com o teletrabalho, não têm maneira de se defender da contaminação porque só lhe resta a alternativa de utilizar transportes públicos superlotados e sujeitar-se a trabalhar nas condições sanitárias que os patrões entenderem.

Uma esquerda fiel aos trabalhadores devia-se sentir na obrigação de salientar que a intervenção selectiva e dominante do Estado nesta crise comprova mais uma vez a sua imensa fidelidade ao capital e aos seus interesses e que, até mesmo quando na aparência está a auxiliar as massas, na realidade está defendendo a reprodução do capital, pelo que a situação bárbara que vivemos hoje se deve à crise do capital e à pandemia sob o capitalismo.

Era preciso também fustigar e combater energicamente a normalização do teletrabalho e da uberização, novas formas cada vez mais requintadas de exploração da mão-de-obra assalariada e de libertação dos patrões de encargos com segurança social, indeminizações, gastos de produção e obrigações contratuais, que impossibilitam ou tornam muito difícil qualquer acção organizada de resistência e revolta dos trabalhadores. Uma esquerda decente deveria fazer a demonstração de que esta nova liberalização dos laços podres entre o capital e o trabalho, se continuar a ser amplamente consentida, passará a ser, a pretexto da pandemia, o estado normal da exploração capitalista, muitos graus abaixo das conquistas anteriormente conseguidas pelo mundo laboral, remetendo-o quase manietado para padrões de existência virtualmente insuportáveis.

Fica assim por pôr a nu o aproveitamento oportunista que os governos, países, bancos e grandes empresas fazem para se promover a si e aos seus negócios, reformas e reestruturações a coberto da pandemia – na aviação, no turismo, na circulação internacional de pessoas, bens e mercadorias (usada como chantagem de uns contra os outros), Por cima de tudo isto, paira sem travão o grande cambalacho das vacinas, o negócio do século, que impõe que na União Europeia só se comercializem as vacinas produzidas pelas farmacêuticas europeias e norte-americanas, ignorando-se e desacreditando-se as da China, Rússia, Índia, Cuba, etc.

Cabe aqui uma menção àquela esquerda que se alinha mais à esquerda dos partidos da esquerda institucionalizada , essa que se vai social-democratizando e acima descrevemos: aquela que se apelida de extrema-esquerda marxista. É impressionante a fraqueza numérica, ideológica e intervencionista destes grupos dispersos, que não conseguem congregar-se em partidos com um mínimo de base social de apoio e se resumem a tertúlias desgarradas e amiguistas, sem nenhuma perspectiva de acção táctica, e muito menos de um programa de conquista do poder apontado a abolir a propriedade privada e socializar os meios de produção.

É uma esquerda que se nega a si própria porque subsiste actuando ao arrepio dos próprios princípios que apregoa. Desligados das massas exploradas, esses “marxistas” estão mais interessados em discutir  criticamente, à sua particular maneira, a política burguesa e as suas reviravoltas escabrosas. Não estarão nunca à altura das tarefas que deles seriam de esperar, a menos que um inesperado e decisivo surto de lutas populares os arraste na sua senda. E no entanto, há muito tempo que não se apresentava àqueles que anseiam por derrubar o sistema capitalista uma tempestade tão perfeita de circunstâncias objectivas favoráveis a fazer abalar os alicerces corroídos do edifício da exploração. Veja-se: as grandes multinacionais financeiras vão arrecadar fundos com as vendas mundiais das vacinas; as empresas petrolíferas continuarão a explorar e produzir livremente, sem preocupações ambientais. O patronato vai reduzir postos de trabalho e direitos laborais. Acentuam-se as desigualdades, o aquecimento global continua a agravar-se. A pobreza no hemisfério sul vai atingir níveis absurdos, enquanto os lucros nas bolsas seguirão o seu curso ascendente. Por seu lado, os governos preparam-se para fazer apertar o cinto com mais austeridade e impostos, para se ressarcirem dos gastos em subsídios do ano de 2020, ao mesmo tempo que distribuirão os fundos da UE aos lóbis e clientelas à sua volta e darão prioridade a obras de prestígio, em vez de privilegiarem os sectores públicos como educação, saúde e habitação, cada vez mais degradados.

Caso não haja reacções consistentes e maciças das massas exploradas e um activismo vigoroso no seu seio por parte da esquerda não reformista, fica o terreno aberto à extrema-direita, actualmente empenhada em reforçar a sua base de apoio entre nos sectores mais populares para melhor se apropriar dos mecanismos da governação. A velha máxima “revolução ou caos” nunca foi tão verdadeira.

Uma esquerda que se queira autêntica tem de se auto-regular e ganhar pé no terreno da luta de classes, optando sem ambiguidades por pôr-se sem transigências do lado certo da barricada, se quiser alguma vez contribuir para derrubar o capitalismo. Terá de assumir plenamente a luta pela defesa dos interesses dos produtores de riqueza, os proletários hoje abandonados à sua sorte, começando por formular e disseminar entre eles um programa anticapitalista e anti-reformista que dê corpo a uma estratégia revolucionária, separando águas em relação aos interesses das restantes classes e distinguindo os aliados, os companheiros de percurso e os inimigos. Será isto possível nos tempos mais próximos? É que se não for, só nos esperam mais desgraças. Mas se for… um mundo melhor estará ao nosso alcance.

17 Jan 2021

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