As jornadas de junho

por Raul Estrada

Texto seguido de debate entre leitores do Portal CVM (ao final).

O país foi surpreendido no mês de junho por gigantescas manifestações de massa em quase todas capitais da federação. Originadas da convocação do Movimento Passe Livre para barrar os aumentos das passagens do transporte urbano, em uma semana tomou conta das ruas e provocou sentimentos difusos de mobilização.

Inicialmente discutiu-se à exaustão sobre a origem pequeno burguesa dos representantes do MPL e muito pouco sobre a justeza das reivindicações. O transporte urbano no Brasil é um dos piores serviços oferecidos à população e aos trabalhadores em particular, que perdem muitas horas de seu tempo de descanso e lazer em deslocamentos de ida e vinda ao trabalho. Aliás, é bom ressaltar, trata-se de um serviço privado, monopolizado por empresas que controlam parte do poder nos municípios, aliadas com vereadores e parte dos executivos municipais de todas as colorações. São, em sua imensa maioria, compostas por verdadeiras máfias que precisam ser afastadas do transporte coletivo, que precisa ser estatizado urgentemente, para servir melhor a população.

A partir da pauta inicial, o movimento foi ultrapassado por sua própria dinâmica e arrastou, em suas próprias diluições, uma multidão de manifestantes, em geral muito jovens, que iniciaram agora sua participação na política. Pesou para a ampliação do movimento, o inexplicável autismo da prefeitura de São Paulo, que menosprezou o papel do MPL e tentou gerir a crise a quilômetros de distância, de Paris. Pelo desenrolar dos acontecimentos a comitiva parisiense parece não ter levado dispositivos apropriados para comunicação em rede, retardando decisões e estimulando, por omissão, o crescimento do movimento. Pesou também a imprensa, este verdadeiro partido das classes dominantes no país hoje. Também surpresa, a imprensa de início atuou por instinto, clamando por violência contra os manifestantes. Posteriormente redefiniu sua estratégia e conseguiu vocalizar sua pauta como se fora a dos manifestantes. Posicionada nos altos edifícios das grandes cidades, para garantir a segurança dos jornalistas expulsos das manifestações, a Globo, a empresa de maior audiência no país, resumiu tudo a um espetáculo de imagens de violência com uma narrativa de interesse político da emissora, o desgaste do governo Dilma e o aniquilamento político do PT. Outras emissoras privadas de TV aberta seguiram caminho idêntico, mas foram menos precavidas e perderam equipamentos de tomadas externas, incendiadas nas manifestações.

A rigor, o crescimento imediato do movimento surpreendeu o país. Inicialmente pelo excessivamente propalado caráter apartidário das manifestações. Mas o fato não é novo, pois o MPL existe há pelo menos seis anos e mantém esse diapasão desde então. Nem todas as lideranças atuais são exatamente fundadoras do movimento. Com o passar do tempo, as lideranças dos primeiros tempos já são profissionais e estão no mercado de trabalho cedendo sua vez para lideranças mais jovens. Ou seja, o MPL não surgiu agora. Também não é novo o fato de movimentos sociais realizarem manifestações sem símbolos partidários, a exemplo do MST e da Via Campesina. Em quase todas as situações em que o movimento escolhe essa forma de manifestação e prefere fortalecer seus próprios símbolos está tentando resguardar sua identidade política, para preservar sua autonomia política frente às organizações partidárias e ao Estado. Isto já é tradição na luta dos trabalhadores no país. Fato novo, esse sim, foi constatar durante as manifestações, desde o início, a absoluta falta de representatividade ativa dos partidos nos movimentos sociais. E como não poderia deixar de ser, esse desgaste, essa ausência de representatividade profunda nos movimentos sociais, pesou principalmente contra o PT.

O Partido dos Trabalhadores, também surpreso, demonstra dificuldade em entender exatamente as causas mais profundas desse desgaste. Fundado com base nas greves operárias de 78 a 80, inaugurou uma nova fase na luta de classes do país. A ideia dos sindicalistas de fundar um partido de classe, independente de todas as facções burguesas atraiu lideranças e intelectuais de esquerda em todo o país. Foram com essas marcas que o partido cresceu e lutou para ocupar o governo federal até 1989, quando foi derrotado por Collor. A partir de então passa a dominar no partido uma tendência precoce à prioridade eleitoral em substituição a luta anticapitalista. Mesmo as experiências de orçamento participativo nos municípios foram esvaziadas com o tempo. Com o descenso do movimento de massas da classe operária ao longo da década de 90, ganhou força o realismo eleitoral e uma acomodação do partido ao aparato de Estado, do Estado capitalista brasileiro.

Mais recentemente, ao eleger Lula, oficializou sua acomodação com a “Carta aos Brasileiros”, comprometendo-se inclusive com contratos que não havia assinado.  E o PT é, atualmente, o resultado desse processo de integração com a política e o Estado capitalista, dominante no país. Mesmo os eleitores que continuam fiéis ao partido, lamentam, em número cada vez maior, da dificuldade em encontrar diferença entre o PT e os demais partidos uma vez que seus métodos de organização e de decisão estão cada vez mais verticalizados e parte das tendências políticas girarem em torno de seus parlamentares. É esse giro de cento e oitenta graus na orientação política do partido que permitiu o PT se descolar da base e liderar uma ampla coligação de classes cuja ideologia resume-se a um projeto nacional desenvolvimentista.

As condições objetivas que permitiram a implantação do projeto desenvolvimentista foram dadas pela particular situação econômica internacional nos últimos dez anos. Uma valorização excepcional das commodities, sustentada pelo desenvolvimento econômico chinês, e a crise econômica nos países centrais que motivou a fuga de capitais do centro para a periferia propiciando acúmulo de divisas e a valorização do real, diminuição drástica da dívida externa e o controle da inflação via aumento das importações. Foi neste quadro favorável de quase dez anos que o governo petista conseguiu promover uma melhoria inédita dos salários e de novos empregos para os trabalhadores. Diminuiu também a miséria ao institucionalizar as políticas compensatórias do programa Bolsa Família, melhorando a renda dos trabalhadores e das famílias mais pobres. E finalmente, tentou, ao mesmo tempo, com relativo êxito, um maior protagonismo internacional. Sua importância política na América Latina tem sido fundamental.

No entanto, ao tentar substituir a anêmica burguesia brasileira a partir dos fundos de pensão de empresas estatais, dos fundos sociais e dos bancos públicos, sem tocar nos interesses fundamentais do capital financeiro, do capital industrial e do capital agrário exportador o partido adota duas estratégias que se complementam. Ao mesmo tempo em que tenta concretizar o sonho temporário de uma harmonia entre as classes sociais, alimenta um economicismo primário, saturado de desonerações fiscais, que desconhece as contradições subjacentes às lutas de classes e ao papel do Estado capitalista. Durante os dez anos de governos petistas, toda a energia política foi concentrada em processos eleitorais com o sistemático desestimulo a organização própria dos trabalhadores em seus locais de trabalho e de moradia. O resultado está nas ruas. No momento, o resultado é uma derrota política.

As classes dominantes, através de seus destacados representantes nos meios de comunicação de massas dirigem politicamente os protestos, transformando a pauta inicial de luta contra o aumento das passagens em sua pauta própria e abstrata contra a corrupção e a PEC37. O MPL foi então, involuntariamente, engolfado por uma pauta das classes dominantes. E, no momento, reverter essa derrota exige uma pauta específica dos trabalhadores e seus aliados em seus locais de trabalho e moradia. O que está em jogo no momento é:

– O congelamento das tarifas do transporte;

– Preparar a estatização do transporte de massa;

– Por um transporte coletivo público e de qualidade;

– Pela Regulamentação das Concessões Públicas dos Meios de Comunicação.

Segue um debate entre leitores do portal CVM:

29/06/2013

Prezados companheiros,

Minhas críticas ao texto:

1. Não acho que as classes dominantes estejam dirigindo os movimentos através dos meios de comunicação. As classes dominantes estão também acuadas, pois as manifestações questionam o sistema de representação política, apelam (mesmo que pontualmente) para a violência e as reduções tarifárias podem afetar o lucro das empresas de transporte e dificultar aumentos no futuro. É certo dizer que elas querem dar uma alternativa política via luta anticorrupção, pensando em 2014, mas até agora não conseguiram. A palavra de ordem “fora Dilma” não pegou.

2. Pela mesma razão, não vejo que o governo tenha sido derrotado. Ao contrário, conseguiu se recompor com a proposta de plebiscito e reforma política. A reunião dos governadores mostrou coesão em torno da preservação da institucionalidade. Vejo até a grande imprensa bater menos na Dilma agora do que antes das manifestações.

3. Também não dá para tratar o movimento como um todo único. As divisões entre a esquerda e a direita já são visíveis em várias capitais.

Augusto Tavira

 

29/06/2013

Caro Augusto Tavira,

Nós estamos com interpretação diferente para os fatos. Eu não creio que a ação dos meios de counicação seja neutra nem corporativa. Elas se inserem mais, ou menos, no dia a dia da luta de classes, com maior ou menor sucesso. No movimento “cansei” foi pífia, assim como foi pífia no mensalão.

No momento atual, não foi a burguesia nem seus meios de comunicação que lideraram, nem vão liderar movimento de massas desse tipo, muito óbvio. Também é óbvio que o movimento questiona o sistema de representação política, incluindo todos os partidos. Aqui caberia o “te fabula narratur”. Tanto é que mesmo os candidatos a sucessão de Dilma amofinaram-se.

Eduardo enquadrou-se, acelerou a diminuição do preço da passagem e agora está participando  da frente junto com o PT, PCdoB e parte do PDT. Aécio só aparece para cumprir o ritual de oposicionista e não tem tido muito o que dizer. Estamos de acordo.

Quando eu interpreto como uma derrota política de Dilma e do PT são por dois motivos. O PT por não ter inserção ativa no momento nos movimentos sociais. A maior parte de sua energia está sendo gasta no aparelho estatal. Na segunda fase do movimento, quando pequenos grupos de militantes foi expulsa das ruas pela direita, ficou evidente naquele momento sua fragilidade.

Quanto a Dilma, foram quinze dias ou mais, de obsequioso silêncio frente aos acontecimentos.
E seu ativismo posterior, que se mantém até hoje, é uma reação um pouco tardia de quem estava nas cordas. Os resultados desse ativismo ainda não estão consolidados.

Mas o resultado do movimento que interpreto como derrota política do governo já começou a aparecer em números. Depois de perder oito pontos em popularidade antes do movimento, agora perde mais 27. Mesmo considerando o viés de oposição do Data Folha, a perda é relevante.

Como a disputa política tem no componente voto algo determinante em processos eleitorais na democracia burguesa, ao fim do período mais agudo do movimento, o governo Dilma, sofreu um revés político, uma derrota política.

Vamos tentar continuar discutindo a conjuntura, cujos acontecimentos estão ocorrendo de forma muito rápida.

Grande abraço,

Raul Estrada

 

02/07/2013

Prezado Raul,

Creio então que estamos de acordo que não foram os meios de comunicação que dirigiram o movimento e que ele desgastou por igual todos os partidos e políticos, de situação e de oposição. A única que pode pretender pescar algum peixe nessas águas turvas parece ser a Marina da Silva, que lucra mais em silêncio do que falando.

Quanto a se mencionar uma derrota política, seria preciso examinar então quem é o vitorioso político do movimento até agora. Retirando-se a redução do preço das passagens de ônibus, que pode ser considerada uma vitória parcial do MPL, a proposta do plebiscito para a reforma política ameaça mais os partidos de oposição e as legendas de aluguel do que o PT e não é um tema que tenha aparecido explicitamente nas manifestações. A oposição desconfia de “chavismo”, teme que isso seja um precedente para outras consultas populares e não está nada interessada em alterar as regras eleitorais, especialmente o esquema de financiamento pelas grandes empresas, que garante que o poder econômico da burguesia se transforme em poder político.

Se o afastamento do PT em relação aos movimentos sociais pode ser visto como uma derrota política, então ela já se deu há muito tempo, praticamente desde a subida de Lula em 2003, quando o partido retirou suas bandeiras da rua em prol da governabilidade.

A piora da situação econômica pode colocar no processo a classe operária, que terá, entretanto, de se livrar das tutelas políticas impostas pela burocracia sindical que apoia o governo. No dia 11 de julho poderemos avaliar a sua disposição.

De todas as análises que li até agora sobre o atual movimento, a que me pareceu a mais lúcida foi a do Stédile, em forma de entrevista.

Abs,

Augusto Tavira

 

02/07/2013

Caro Augusto,

Vamos a alguns ajustes finos. O que eu escrevi, ou pensei em escrever, é que no segundo momento das mobilizações, após a quinta massiva, os meios de comunicação se reposicionaram.

A Globo, por exemplo, que detém altos índices de audiência, tentou e conseguiu ser “a voz” do movimento para a sua pauta política específica: Contra a PEC e a corrupção. Ela não dirigiu o movimento, mas para 99% da população que não estava nas ruas, tudo se dirigia aos dois pontos.

Por enquanto está ganhando, com a PEC e com a prisão do deputado.

Também concordo Augusto, foi um jogo de perde-perde, no entanto, para o PT a perda foi bem maior:
1. Ficou nú. Muitas das bandeiras que eram suas deixou de representar, na prática. A estatização dos transportes que foi levantada por Erundina na década de 80, foi esquecida, despareceu da pauta.

2. A ausência do PT nas ruas não foi só uma característica “apartidária” do movimento. Foi também ausência de militância naquela hora. O “apartidarismo” forneceu um álibi ao PT.

Por que o partido não está no vigoroso movimento das favelas cariocas?

3. Finalmente e de acordo com a estratégia do PT, tudo obedecia a lógica da reeleição. A perda de quase trinta pontos sugere que, se não houve vencedores, houve quem perdeu bem mais que outros.

Tudo isso numa conjuntura de curto prazo.

Concordo também que o melhor documento foi o de Stédile, longe dos demais.

O de Valter impressionou muita gente, mas reflete a principal base da AE, o movimento da esquerda socialista na classe média. Tem que ser considerado, mas consciente dessa limitação.

Fica um ponto para nossa discussão: Apoiamos o plebiscito?

Se sim, como? Com quais bandeiras?

Ontem a Intersindical soltou uma nota em apoio às manifestações do dia 11.

Grande abraço

Raul Estrada

02/07/2013

Companheiros,

Concordo com as observações do Augusto, enfatizando que não podemos considerar a ação das classes dominantes como unitária. Acrescento:

1. O processo ainda está em curso; o prosseguimento não ficou restrito as capitais, avançou por quase todas as cidades polos do país.

2. As manifestações ganharam força como instrumento de pressão as negociações que começaram a acontecer com as diversas prefeituras; o Governo de Goiás chegou a garantir o passe livre para estudantes na região metropolitana de Goiânia, Tarso Genro promete a implantação no RGS; em diversos municípios o movimento passa a exigir a transparecia das planilhas de transporte e interfere nas definições.

3. As Centrais Sindicais se mobilizam e tentam levar suas bases a manifestar-se – vamos aguardar o que efetivamente irão conseguir; os trabalhadores rurais também tentam mobilizar suas bases com uma plataforma própria.

4. O aparecimento das organizações neonazistas e anarquistas com atuações marcantes em várias manifestações.

Saudações,

Nelson Gama

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